Peguei no sono novamente. E mais uma vez fui sugado para um mundo de
trevas e medo. Como das outras vezes, fazia frio. Um nada que machucava a
alma. Não sei se estava de olhos abertos ou fechados. A escuridão era
tamanha que tanto fazia enxergar ou ser cego. E eu ali novamente. Mas
onde é ali? Estou perdido no silêncio. Um vazio infinito. Medo. Pavor e
solidão. Uma solidão tão dolorida, que só restou chorar. Fiquei
paralisado, como que suspenso no ar. Tentei ouvir alguma coisa, qualquer
coisa. Nada.
Até que ao longe ouvi um sussurro. Tentei falar, mas minha voz não
respondeu. Fiquei naquele breu o que pareceu uma eternidade. Aquele
limbo estava me matando. Se eu pudesse sentir mais alguma coisa além de
medo seria meu suor. Tenho certeza que escorria por todos os poros do
meu corpo. Corpo? Eu não sentia meu corpo. Nadava no nada.
Quando o mais puro terror tomou conta de mim, pensei que iria morrer
sufocado. Não havia ar. Puxei uma respiração que imaginei ainda ter e
não veio. Sufoquei. Entrei em completo surto e acordei.
Acredito que gritei ao acordar. Naquele ônibus
noturno, pequenos pontos de luz iluminavam o interior do veículo. O
carro chacoalhava de um lado para o outro numa velocidade acima do
razoável. E ninguém acordou. Somente eu. Ou pelo menos eu não ouvia
ninguém. Como tentava me recuperar do maior medo que já havia passado na
vida, nem percebi que ao meu lado, o banco antes ocupado por um menino
chorão, estava vazio. A mãe do garoto já tinha tentado de tudo para
acalmar a criança. Cantou, brincou, brigou, e por fim meteu uma
mamadeira nas mãos do menino, que gordo, se engalfinhou naquilo. Nem a
mãe, nem o garoto estavam por ali.
Sequei o suor da testa, tentei arrumar os cabelos que despenteados
deveriam estar dando a impressão de que eu era um maníaco endiabrado. Se
fosse possível um espelho, eu veria a própria face da morte em meu
rosto. Minha língua seca grudou no céu da boca. Meus lábios estavam
rachando. Minha roupa amarfanhada exalava o cheiro forte do medo. Limpei
a garganta e olhei ao redor. Não só os bancos ao meu lado estavam
vazios como os da frente e os de trás. Levantei subitamente com o susto
de não ver ninguém. E o pavor mais uma vez tomou conta de mim. Eu estava
sozinho naquele ônibus. Sozinho? Imediatamente fui procurar o motorista
que não estava lá. Me vi em alta velocidade em um ônibus desgovernado
dirigido por ninguém. Quase gritei. Corri até o volante na tentativa de
colocar o carro no rumo, mas só consegui derrapar e bater com força nas
rochas que ladeavam a estrada. Com forças não sei de onde, deixei o
ônibus em linha reta. Aos poucos os freios foram parando aquela enorme
máquina vazia. Apenas a lua dava cor à estrada. Escuridão que também
tomava conta de mim. Quando finalmente estacionei não tive reação. O que
havia acontecido? Onde estava todo o mundo? Andei por entre os bancos e
só vi os objetos pessoais dos passageiros, alguns largados de qualquer
jeito. Tão de qualquer jeito que muitos se quebraram. Alguém levara
todos embora? Mas como? Foram todos abduzidos? Não, seria uma explicação
muito fora da imaginação coerente de um homem letrado como eu.
Desci do ônibus e fui andando estrada à fora, sem escutar uma alma.
Estava frio. Ato contínuo, me encolhi. Um peso caiu sobre mim, como se
mil corpos sentassem em meus ombros. Andei devagar, olhando para todos
os lados. Apressei o passo, ensaiei gritar, chamar alguém, mas foi
inútil. O ar estava rarefeito e os sons prejudicados. Ao longe vi uma
luz tremulante. Uma tocha? Sim. Fogo. Corri em direção a ele. Nem
percebi que saia da estrada e me embrenhava numa floresta fechada. O
mato alto batia em minhas pernas. Feridas se abriam. Lanhos não muito
profundos deixavam um pequeno rastro de sangue por onde eu passava.
Fui em direção à luz sem ao menos raciocinar. O fogo se aproximava e
percebi que não era apenas uma tocha, mas várias. Muito próximo do
clarão que as chamas formavam parei minha corrida. Tomei fôlego, minhas
pernas doíam, meus braços, meus ossos, músculos. Tudo em mim parecia
moído. E a dor era excruciante. Respirei e olhei com mais atenção ao que
se passava na clareira. E ai eu morri. Ou praticamente. Todas as
pessoas que se perderam no ônibus estavam ali, mas não eram mais
humanas. Não se podia chamar aquilo de humano. Eram uma espécie de
mortos-vivos.
Desligados do mundo, alheios, sangrando, babando, machucados e imóveis.
Seguravam as tochas e olhavam o além com olhos rasos, furados,
carcomidos, mortos.
– Meu Deus, eles estão mortos, pensei comigo mesmo. Até o menino chorão.
Depois de alguns segundos eternos, desnorteado fui andando para trás
devagar, sem nem respirar, sem fazer barulho, sem ao menos piscar. Eu
não conseguia ter pensamentos coerentes. Tudo que se passava na minha
mente era que tinha que voltar para a estrada, para o ônibus. Precisava
ir embora dali e me salvar.
Zumbis. Como? Por quê? E por que não eu? Não entendia. Andei de ré até
uma distância que julguei suficiente para começar a correr sem ser
notado. Mas o azar fez com que eu pisasse forte em um galho velho. Foi o
suficiente para um de aqueles monstros encontrar meus olhos. Em nossa
troca de olhares eu gelei. Senti todo o ódio, medo, fome, crueldade que
tomava conta daquele corpo. E ele gritou. Na verdade o monstro grunhiu. E
todos eles olharam em minha direção.
Corri. Corri como nunca, como um louco. Corri como se corre da morte.
Sentia aquelas bestas nos meus calcanhares. Bati em árvores, pisei em
poças de água e lama. Lágrimas molhavam meu rosto já sujo de terra
daquela maldita floresta. A noite parecia estar ainda mais fechada.
Cheguei à estrada. Fui em disparada em direção ao ônibus e ao chegar na
porta do carro ela estava fechada. Empurrei com toda a força que ainda
achei em meu corpo. Uma daquelas mãos cadavéricas conseguiu me alcançar.
Eu lutei para jogar longe aquele saco de ossos, mas não consegui.
Estava desesperado, até que num chute abri a porta e cai ensandecido me
esparramando pelo piso. Fechei a porta de qualquer jeito. Empurrando com
força enquanto os dedos daqueles mortos insistiam em lutar. Finalmente a
porta trancou.
Pulei para o banco no motorista e tentei desesperadamente dar a partida,
mas a bateria estava gasta. Girei a chave e nada. Continuei tentando.
Um mar de gente semiviva rodeava o ônibus. De todos os tamanhos, idade,
sexo. Batiam famintos nas janelas. Quase rosnavam. Se jogavam nas
laterais do ônibus e se desfaziam em podridão. Uma janela quebrou. Meu
pânico só aumentava e finalmente o motor resolveu funcionar. Sai em alta
velocidade. Atropelei o que vinha pela frente. O menino chorão explodiu
no vidro da frente.
Sangue escorria pelos vidros. Eu precisava sair dali. Dirigi quilômetros
cegamente tendo a lua para iluminar meu caminho. Perto de uma
estalagem, um hotel velho, parei. Mas um sentimento de alerta já tomava
conta das minhas decisões. Desci do ônibus com cautela. Corri para trás
da parede dos fundos do prédio, e espiei pela janela. Ninguém. Entrei
pela portinhola protegida por uma tela e atrás do balcão de atendimento
encontrei uns óculos e uma bíblia caídos no chão. Quem quer que por
acaso estivesse por ali tinha abandonado tudo e rapidamente. Ou se
escondeu ou virou monstro.
As luzes estavam acesas o que facilitou minha busca por explicações,
comida, qualquer coisa. Encontrei uma garrafa de água pela metade e
rasguei minha garganta ao engolir em grandes goles o que restava.
A sala da recepção do hotel era minúscula. Um corredor escuro se abria
logo ao lado da máquina registradora. Todas as portas fechadas. Eu não
queria saber o que havia atrás delas. Mas precisava. Na primeira porta
que abri encontrei um quarto completamente sujo de sangue. Respingos de
restos humanos caiam do teto. Sangue pingava e um cheiro de podridão
tomava conta do lugar. Fechei a porta imediatamente, com náuseas
difíceis de controlar.
Fui para o outro quarto e o único cheiro era o de mofo que já estava lá
antes mesmo de se pensar na existência de mortos-vivos. No terceiro
quarto, também vazio, só olhei de relance. Ao fechar a porta ouvi lá
dentro um som abafado. Um baque surdo. Meu coração acelerou de tal forma
que veio até a boca. Abri novamente a porta e acendi as luzes. “Tum”.
De novo aquele barulho dos infernos. Fui até o guarda-roupa lentamente.
Como que esperando que pulasse lá de dentro o maior e mais sanguinário
dos monstros de todos os tempos.
Quando minha mão encostou na maçaneta do armário, novamente o “tum”.
Pulei e olhei para trás. Vi um rosto me encarando. Gelei. Demorei a
perceber que era a minha própria figura refletida em um espelho. Eu
estava sujo de sangue. Tomado pelo medo. Voltei a me concentrar no
armário. Num fôlego só abri a porta e lá estava ela. Uma menina de pouco
mais de oito anos, encolhida e abraçada a um urso velho e encardido. O
barulho era ela tentando abrir a porta.
Nos encaramos e ela chorava. Me inclinei diante dela e menti:
- Vai ficar tudo bem, disse calmamente.
Ali mesmo eu fiquei. Esqueci de ver o último quarto no final do
corredor. Tranquei a porta frágil do quarto onde estava. Escorei uma
cadeira na tentativa de dificultar o que quer que forçasse a entrada.
Puxei a menina de dentro do armário. Tentei secar as lágrimas dela, mas
ela não deixou. Perguntei se estava sozinha e ela não respondeu.
O banheiro imundo de secreções ainda humanas e cheirando a mijo tinha
toalhas encardidas penduradas. Peguei uma daquelas e limpei meu rosto.
Lavei meus olhos, minhas mãos. Eu estava muito machucado e sujo.
A menina sentou em uma das camas e estava em estado de choque. Eu não
ouvi mais nada. Nem lá fora, nem aqui dentro. Revistei o quarto todo, e
achei estes papéis na pequena escrivaninha do canto. Escrevo neste
momento minha história, sentado no chão, sem saber se alguém vai
conseguir sobreviver a isso tudo. Esta noite eu preciso esticar minhas
pernas, curar minhas feridas, mas não posso cair no sono. Se eu dormir
corro o risco de parar mais uma vez naquele local onde mora o medo. Onde
flutuei sem ar na escuridão. Se bem que agora não faz a menor
diferença. O medo está aqui comigo. Lá fora escutei um grito abafado. Eu
e a menina nos olhamos e decidimos em silêncio deixar pra lá. Estamos
cansados, famintos, em pânico. Somos um nada. Nos encolhemos. Ela na
cama e eu aqui no chão. Vamos ficar assim até o dia amanhecer. Ai
pensaremos no que fazer.
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