Não tenho medo de fantasmas. Quero dizer, quase nunca. Porém, confesso
que me assustei. Era apenas um sonho, mas nele vários seres de outro
mundo me perseguiam. Corri, corri e, já desesperada, acordei. Dei um
pulo ao despertar na minha poltrona no final do ônibus. Fazia frio e
mesmo assim eu estava suando. Olhei pela janela na tentativa de me
recompor e vi a fumaça ao longe. Cerrei os olhos para ter mais nitidez e
por alguns segundos tentei enquadrar o incêndio, mas tudo o que pude
ver foi o imenso mato que corria pela beira da estrada e lá na floresta,
escondido, o telhado de uma casa velha. Assim como apareceu, sumiu. O
cheiro ficou no ar.
A viagem estava tão cansativa que nenhum dos passageiros pareceu se
importar. Muitos ainda dormiam. A impressão que tive é que somente eu vi
aquilo. Dei de ombros. E o ônibus veloz deixou o fogo para trás.
Apesar do pequeno susto ao acordar, os pensamentos finalmente foram se tornando mais claros.
Éramos uns 30 passageiros naquele veículo. Cada um
carregando seus sonhos e planos. Os meus eram simples: instalar-me
confortavelmente na pacata cidade e recomeçar a vida. Aceitei o emprego
numa casa de família. Pelo anúncio no jornal seriam duas crianças que
ficariam sob minha responsabilidade. Perfeito, pensei entusiasmada. Fiz
as malas e lá fui eu.
A pousada que reservei era perto da prefeitura. Desembarquei e a pé
mesmo achei o endereço. Instalada, refeita da viagem, fui tomar posse no
meu novo emprego. Salário digno, casa e comida. Para aquele momento, me
bastavam.
Chegando lá fui muito bem recebida. As crianças? Educadas e prestativas.
Uma menina linda de cabelos cacheados e o irmão gêmeo de sorriso
maroto. Imaginei que não teria muito trabalho com eles.
Em poucos dias deixei a pequena pousada e fui morar no quarto de
hóspedes da casa. Logo me adaptei à rotina. Os patrões rapidamente se
transformaram em pais adotivos para mim. Eu estava muito feliz ali.
Acumulei algumas funções e além de cuidar da educação das crianças,
passei a organizar a cozinha e a casa. Também passou a ser minha
responsabilidade as compras no mercado.
Certo dia, indo em direção ao centro para comprar frutas e legumes,
passei em frente a uma casa velha, quase caindo aos pedaços. Achei
estranho, nunca tinha reparado na tal casa. Mas lá estava ela, fria e
mal acabada, quase mal assombrada. Acelerei o passo e não olhei para
trás. Mesmo não acreditando em fantasmas, nunca se sabe. Nos sonhos eles
me assombram.
Na pressa de me livrar do calafrio que senti ao passar pela construção antiga, dobrei na rua errada.
– Ah não, errei o caminho, lamentei a um gato que me olhava de soslaio.
Mas fui em frente. Vi que lá longe a rua se bifurcava. Rua deserta,
apenas terrenos arenosos ou abandonados. Caminhava rapidamente. Perdi de
vista a casa velha. E me deparei com outra esquisitice: uma casa
escondida atrás das árvores. De muitas árvores. Quase uma floresta.
Curiosa, fui vencida pelo impulso e entrei pelo matagal. A minha
esperança era conseguir alguma informação de como chegar ao centro da
cidade.
Vindo do nada, apareceu um homem mais assustado que eu, pedindo ajuda.
Desesperado, em pânico, falava de um incêndio na casa. Estiquei o
pescoço e avistei a fumaça. Imediatamente me vi de volta ao ônibus,
apavorada olhando pela janela e encarando a mesma nuvem negra, o mesmo
telhado. Tentei afugentar a visão, disfarcei e me prontifiquei a chamar
os bombeiros ou carregar água para reduzir as chamas. O homem implorou
para eu não fazer isso, ele queria apenas que eu cuidasse de uma caixa
que carregava nas mãos. Eu disse que sim, cuido, mas o que você vai
fazer?
– Vou voltar, me disse ele. Preciso voltar.
– Não, insisti. Está um cheiro forte de queimado, pelo barulho das labaredas imagino que esteja muito perigoso entrar por ai.
Mas ele implorou para que eu pegasse a tal caixa e correu em direção a
casa. Fui atrás dele, mas me perdi entre tantas árvores que cercavam o
lugar. Quando finalmente enxerguei a fachada da casa percebi que não
havia fogo. Nem o homem estava lá. Atônita, dei uma volta completa no
terreno. Nem sinal de fumaça. Bati na porta e nada. Ninguém atendeu.
Voltei para o matagal aos gritos por alguém. Eu não podia acreditar: ele
entrara por aquelas árvores e não saiu em lugar algum! E o fogo, se
foi?
Ouvi um carro ao longe. Fui correndo em direção à rua e fiz sinal para o
motorista que estacionou. Surpreso me deu boa tarde. Perguntei se tinha
visto um rapaz, sujo, apavorado, correndo por ali e ele me garantiu que
não. Contou inclusive que estava há algum tempo no início da rua
trocando o pneu furado e jurou que não viu ninguém, nem indo, nem vindo.
A não ser eu. Fogo? – Não senhora, só o sol quente mesmo.
A mesma sensação de medo dos meus sonhos invadiu meu corpo. Fiquei com
as pernas bambas. Esqueci que estava indo fazer compras e voltei para
casa dos patrões. Aos prantos. Eu sabia o que tinha visto, o que tinha
sentido. O cheiro de queimado estava lá. Eu não podia ter imaginado tudo
aquilo e finalmente lembrei: eu tinha a tal caixa comigo. Eu não estava
louca.
Corri para meu quarto e quase quebrei a caixa ao abri-la afoitamente.
Dentro dela, uma chave. Nada escrito. Nem uma pista do que poderia ser.
Escondi embaixo da cama. Caixa, chave e medo. Limpei o rosto, dei uma
desculpa qualquer sobre voltar de mãos vazias das compras e fui cuidar
do jantar.
Os dias seguiram como se nada dos últimos acontecimentos fosse verdade.
Quando o medo quase sumiu voltei a ter pesadelos. E eles se repetiam e
se repetiam . Acordava no meio da madrugada com a nítida impressão de
que alguém estava comigo no quarto. O pânico tomou conta de mim. Com as
noites insones meus afazeres ficavam a desejar. As crianças se
afastaram. Os donos da casa já me olhavam desconfiados. Com o tempo além
dos sonhos, o cheiro de queimado passou a me atormentar. Sentia no
quarto, no banheiro, na cozinha, na sala. Eu, sem saber o que fazer ou
pensar, procurava o fogo e não encontrava nada. Procurava embaixo das
escadas, atrás das portas, afastava os móveis para achar alguma fagulha,
uma fumaça que fosse. Minha figura já estava de dar pena.
Comecei a imaginar que a tal caixa com a chave tinha alguma coisa a ver
com isso. Cansada de me sentir apavorada, falei com o filho do
jardineiro para me acompanhar até a casa onde encontrei o homem
apavorado. O rapaz foi comigo e encontramos tudo bem, nada destruído.
Ele também sentiu um leve cheiro de fumaça e chegou a ouvir um barulho
que me descreveu como algo queimando. Mas não havia sequer indícios de
que alguém estivesse por lá. Tentei a chave em todas as portas e nenhuma
abriu. Desistimos.
Não me dei por satisfeita e voltei no dia seguinte por conta própria.
Será que a chave abre algo que está dentro da casa? Forcei uma entrada
na janela mais velha que encontrei. Apenas o reboco caiu. Inútil. Gritei
de tanta frustração. A única resposta foi o vento balançando as
árvores. Aliás, a floresta que cercava a casa estava mais densa e
parecia ainda maior naquele dia.
Agora estou aqui. Louca e sozinha. As crianças choram ao chegar perto de
mim. Dizem que estou sempre com esse cheiro de queimado na roupa, nos
cabelos, na pele e sentem medo dos meus olhos endiabrados. Meus patrões
mandaram me internar. Eu continuo a sentir o calor do fogo. Às vezes
tenho a nítida impressão de ver no corredor do sanatório as labaredas
subindo pelas paredes. É só manter os olhos bem fechados que a visão vai
embora. Menos o cheiro. E a chave? Está aqui comigo, dentro da caixa.
Todos os dias olho para ela e imagino que porta a chave abre. Ou pior,
que porta ela deveria manter trancada
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