"A missão suprema do homem é saber o que precisa para ser homem."
Emmanuel Kant
“Olá”- ouvi uma voz feminina.
Claro que eu estava distraído, depois do dia horrível, com o telefone ainda na caixa, o presente que havia comprado para minha filha, o objeto que esperava ser o salvador de tudo, deveria ter sido o presente ideal, pois perguntei antes para a minha ex-mulher o que minha filha gostaria de ganhar e ela prontamente me informou.
O telefone moderno transformou-se na minha esperança para recuperar 16 anos de desleixo como pai.
Distraído não vi que ela se aproximou, depois ela completou com a voz melodiosa e com naturalidade: “pode me emprestar o carregador do seu celular, ele é igual ao meu, está quase na hora do meu embarque, queria carregar um pouquinho, para falar com meu pessoal antes do embarque”, apontou para a caixa do novíssimo celular que estava entre as minhas mãos.
Aos cinqüenta anos e com uma forma física invejável, cirurgião chefe, não me intimidava fácil com meninas de dezoito anos, com tatuagens, bonita e dona de um sorriso luminoso, no entanto sofri uma inquietação e quase deixei cair toda a bagagem de mão e a caixa do celular, ela pediu desculpas, por ter me assustado, eu disse que não tinha importância é que estava com a cabeça longe. Prontamente emprestei o carregador e tivemos que sentar juntos perto de uma tomada.
-Meu nome é Laís – ela disse e estendeu a mão, apertei a mão pequena e suave, por algum motivo ela estava feliz, seu semblante demonstrava, eu que pensava que todos adolescentes estavam infelizes.
Havia uma grande energia ali que me contagiou e sem perceber estava sorrindo. O aeroporto era um local de contradição, gente feliz, gente triste se encontra, se cruzam e às vezes se conhecem.
Disse a ela que meu nome era Antonio, falamos um pouco sobre as características dos celulares, depois ficamos em silêncio, eu lia uma revista semanal e ela assistia ao filme em seu tablet, Footloose (1984), filme com Kevin Bacon e John Lithgow, um musical, ela curiosamente balançava a cabeça enquanto o protagonista dançava.
Arisquei um diálogo.
Laís conversava comigo e só agora sabia o que significava esta conversa. O fato terrível dessa relação não ter existido com minha filha por todos esses anos. A verdade é que quando acordamos para o amor perdido nos apegamos a tudo, quando o perdemos o achamos em qualquer lugar.
-Eu vi esse filme, 1984, você nem tinha nascido, acho que marcou uma geração, não só pela trilha sonora como pela história de superação.
-Com certeza marcou, pois foi meu pai que colocou esse filme aqui, ele é fanático por esse musical, acho que ele já viu umas vinte vezes, ele queria que eu entendesse o adolescente rebelde da época dele, não aceita que eu deixe a famosa UFMG.
-Olhando pelo lado dele, penso que é bem difícil de aceitar. Certamente é inegável que ir a França é uma experiência e tanto. Vai para estudar? – disse olhando de lado, sem convicção nas palavras.
-Mais ou menos – ela disse desligando o Tablet – ganhei um concurso de poesia, vou receber o prêmio e ficarei dois anos estudando literatura francesa na Sorbonne. Meu pai ficou alegre e triste ao mesmo tempo.
-Na minha idade posso entender o seu pai, mas existe uma diferença entre o sensato e o que torna a pessoa feliz, meu pai queria que eu fosse Agrônomo e tocasse a fazenda, eu hoje faço o que sempre quis fazer, acho que todos têm que ter essa chance, tente entender o seu pai, afinal está aqui, então ele concordou, não é?– eu disse sorrindo.
-Verdade, mas eu amo o meu pai, acho que você daria um bom pai também – ela disse olhando nos meus olhos.
Eu não respondi, não podia, não tinha autoridade para falar nada, minha filha havia rejeitado nosso encontro e o presente que comprei. O que mais doía em mim é que pensei centenas de vezes nesse encontro, porém algo me impedia, fui adiando.
Dediquei-me a profissão, sou um cirurgião famoso que nunca ligou para a paternidade, acordei tarde, nunca estive lá, por medo. Ela estava errada, não fui um bom pai.
-Quer o aparelho? – eu disse sem colocar qualquer dramaticidade nas palavras – fique pelo menos com o carregador, posso comprar outro.
-Ok. Vou aceitar. Sei que por algum motivo nos encontramos aqui, acredito nessas coisas, todos temos nossa história, um dia você me conta a sua – ela olhou para o relógio – é minha vez de partir.
O que aconteceu foi súbito e embaraçoso: um garotinho veio correndo e tropeçou no fio do carregador, jogando os dois celulares no chão, bem na hora da última chamada para o embarque, a ação foi turbulenta, preocupados com ele corremos para ajudá-lo, mas estava bem e deu uma gargalhada.
Laís com pressa pegou o carregador e um dos celulares que estavam no chão, convicta que era o seu, despediu-se e embarcou.
Cheguei à vitória seis da manhã, sem o carregador aquele celular seria inútil, resolvi jogá-lo no lixo no dia seguinte. Porém havia uma dúvida, eu não tinha a mesma convicção e queria ter certeza que o celular não era de Laís. Liguei e ele ascendeu, pois havia um resto de bateria,no visor mostrou a foto de um homem da minha idade abraçado com Laís, tinha um sorriso aberto.
Os celulares haviam sido trocados!
Desci até a loja e comprei um carregador, deixei o celular carregando desligado, depois caí no sono. Ao dormi, refleti sobre a vida, estive pensando em coisas que nunca podemos resolver de fato, erros do passado são marcas na carne que ficam, lembrei do que a minha filha disse.
-Você nunca foi um pai, graças ao meu avô não enlouqueci, agora aparece aqui assim, só porque meu avô morreu, eu tenho a memória dele, de você não tenho e não quero nada. Não quero, pode voltar para as suas famosas cirurgias, pois nunca fui nada para você.
-Tive medo! – disse com sinceridade.
-Medo de que?
-Medo, de arrastá-la para uma vida difícil, medo para arrastá-la para o turbilhão das coisas que eu fazia, nunca tinha tempo.
-Não existe uma vida mais difícil que uma vida sem pai.
Acordei e liguei o telefone, dez minutos depois ele tocou, era o homem da foto.
-Graças a Deus! – Ele disse, pensando que eu fosse alguém muito íntimo de sua filha, tive que negar e fiquei um pouco apreensivo.
-Não entendi. – Eu disse meio atordoado, procurei me certificar que ele era o pai dela, ele disse que era e que havia acontecido uma coisa horrível, quando ele me falou, minhas pernas bambearam e eu caí, não acreditei. Peguei o telefone e disse que sentia muito, ele parou de falar e depois perguntou por que eu estava com o telefone dela, contei o caso, ele pediu que entregasse o telefone.
Aceitei prontamente, deveria entregar o telefone, apesar da viagem, além disso, tinha a curiosidade de conhecer a família.
Viajei para BH no mesmo dia e encontrei o homem aos prantos, não podia acreditar a menina parecia minha filha, havia morrido em um acidente de avião, o pai estava devastado, me senti um pouco como ele, e as lágrimas caíram sem que controlasse.
Deixei o celular com uma menina ruiva, que depois fiquei sabendo era a irmã, estava inspecionando o celular e disse.
-Tem um vídeo, uma mensagem dela.
Todos correram para perto.
A filmagem foi feita minutos antes de nos encontrarmos, ela disse:
“Gente amiga, crianças do meu coração, principalmente meu pai, amigo Marcelo, Tati, estou viajando em busca do sonho de aprender e um dia escrever poesia para valer. Escrevi sobre o amor, sobre a verdade de ser eu, desculpa pai se queria que fosse outra pessoa, mas o meu interesse é viver minha vida com intensidade agora, escrever e ver todo o mundo que puder, um dia eu volto para abraçar vocês, pois foi o melhor pai que uma menina poderia ter, mesmo sem uma mãe por perto. Tivemos tudo de você, pai, mãe, amigo exemplo, eu e a Tati, nunca vamos esquecer esse cara – ela enchugou as lágrimas - esse caráter. Tati, agorinha estará comigo na Sorbonne é só você crescer, sei que é o seu sonho, (matemática – horrível, mas é o seu dom a sua praia), Marcelo, meu amigo, amo você, assim que puder mando o vídeo pelo face, quando achar a porcaria de um carregador, valeu gente.
A vida tem dessas coisas, tristeza de outros que colide com a tristeza da gente, dei meia volta e sai devagar com as pernas trêmulas e passos incertos, quando o pai de Laís falou.
-Senhor Antonio – ele tinha os olhos vermelhos, porém algo de dignidade que havia nele jamais consegui ter, olhei nos seus olhos e ele ainda disse- obrigado.
Fiz um cumprimento com a mão, precisava resolver algumas coisas.
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