quinta-feira, 9 de julho de 2015
Ahh, a vida..
Acho que foi em 2004 que a vovó parou de andar.
Simplesmente não conseguia mais, ela nunca foi muito ativa, dessas avós
corre-mundo de novela, fazia mais o tipo avó de palavras-cruzadas, rezas
católicas, Roberto Carlos e jogos do Internacional no radinho de
pilhas. Meu avô era o oposto, estava sempre zanzando, sempre trazendo
algo novo da rua, ou o usual hálito etílico da birita dominical com seus
cupinchas de bar (quantas vezes ouvi a ordem “o almoço está quase
pronto, vá buscar o seu avô!”). Eles não admitiriam – nem poderiam,
entre tantos outros – mas sempre me senti o neto predileto, eu estava
sempre por perto, era amoroso, gostava de brincar com os lóbulos
molengas dela e assistir filmes de bang-bang e jogos de vôlei feminino
com ele. Um dia meu avô me chamou no quarto. Supostamente minha avó não
queria se levantar para tomar o último café do dia, e a lenga-lenga
estava o deixando irritadiço. Então eu tive de dizer “ei, vô, a vó não
caminha mais” e ele ficou meio confuso, as mãos na cintura, ofegando.
Não deu outra, após alguns exames detalhados, o diagnóstico foi o tal do
Mal de Alzheimer, coisa que só se dava com o avô dos vizinhos. Com mais
alguns anos, minha avó deixou de se alimentar como um adulto, passou a
se comunicar apenas com gemidos e sinais. E meu avô foi esquecendo quem
eu era, quem era todo mundo. Só não esquecia da sua “Deusa”, como ele
dizia, que estava sempre ali, na poltrona próxima à janela. Era um tanto
irônico. Ela, com a memória de ferro intacta, vegetando. Ele, pra lá e
pra cá nos corredores, perguntando às enfermeiras que horas o carro
chegaria para levá-lo de volta para sua casa – onde ele já estava, de
onde dificilmente saia. Na cabeça dele, estava, vai saber, na agência de
Correios onde sempre trabalhou até uns 30 anos atrás. O tempo foi
passando, ele deixou de assistir filmes de bang-bang, foi ficando cada
dia mais esquecido, mas agressivo e impaciente, às vezes protagonizando
umas cenas engraçadas, que a gente ria antes de chorar. Mas sempre
zanzando. Corredor, cozinha, porta da frente sempre trancada, corredor,
sala, banheiro, quarto de dormir. Como se estivesse num lugar nada
residencial, trancado fora do mundo que levou décadas para construir.
Então a vovó pegou uma pneumonia. Aí melhorou. Ficou ruim outra vez, os
antibióticos não funcionavam. Até que me ligaram no meio da noite. “Ela
piorou muito”, eu sabia, era apenas um eufemismo de quem não sabe como
dar a notícia. Ao chegar no quarto, o rosto frio de quem não havia
sofrido muito, os socorristas preenchendo formulários, legalizando o
sono eterno. Ele deitado do lado, olhos fechados e o neuro-tique de
mastigar as gengivas, sem nada desconfiar. Igual ele não discerniria,
seria árduo explicar a diferença de vida e morte a um velhinho agredido
por uma doença degenerativa avançada. Foi consenso não contar, às vezes a
realidade apenas traz dores desnecessárias, felizes são os que vivem no
mundo da lua. Pela manhã, enquanto ele contava piadas na sala, a
funerária passou com o corpo. Isso foi há umas duas semanas, mais ou
menos, e até hoje ele não perguntou por ela. Parece feliz, daquele jeito
dele, dias bons, dias ruins, nenhum é igual. Não sei se foi o certo a
fazer, mas foi o melhor. Há casos em que a correção não alivia o
sofrimento de ninguém. Mas uma coisa me veio à cabeça, enquanto o padre
fazia a extremunção divertindo o pessoal melhor do que faria Jerry
Seinfeld, um verdadeiro showman. Será que ela não segurou a barra de
viver entrevada esse tempo todo só para morrer quando justamente não o
faria sofrer? Impossível saber, mas eu acho que sim, seria uma prova de
amor contundente no meio dessa matilha de relações egoístas. E, apesar
de não crer muito nessas coisas, também gosto de pensar que ela foi para
um lugar melhor. Um lugar onde as pessoas lembram do seu nome.
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