Mato. Não porque gosto, mas porque sou obrigado a matar.
A
minha ilustre e grande foice muito já ceifou. Ela é o portal entre a
vida e a morte do pobre ser humano. Ela é a sentença. Ela é o fim do
enorme ciclo de sobrevivência, o fim da carreira.
Simplesmente, o fim de tudo.
Através dela perfurei corações, atravessei artérias, eletrocutei, queimei, explodi...
Através dela causei insuficiências cardíacas, degolações, atropelamentos, cânceres, AIDS, resfriados...
Através da minha foice causei acidentes, puxei gatilhos, apunhalei, quebrei membros, amputei membros...
Enfim... Através da minha foice, causei aquilo cujo nomeia o meu invisível ser:
A morte.
Eu mato.
Mato. Não porque gosto, mas porque sou obrigado a matar.
Mato sem prévio aviso, sem enviar cartas, bilhetes, e-mails, mensagens...
Mato instantaneamente ao observar na lista a próxima pessoa a morrer.
Não
deixo despedidas, não permito que se despeçam... Simplesmente ceifo o
coração e levo sua alma para descansar até o dia do juízo final.
Não
choro, não rio, não canto, nem danço. Apenas ceifo. Ceifo
incansavelmente até que não haja mais seres nesse universo. Posso matar
um, dois, três, dez, cem, mil, um milhão... Todos. Posso matar quantos
humanos eu quiser, à hora que eu quiser...
E
ceifo. E o sangue não mancha as minhas vestes negras, porque a única
coisa que levo na ponta de minha arma são as almas roubadas. E então as
levo para um lugar... Desconhecido até por mim.
Eu mato.
Mato. Não porque gosto, mas porque sou obrigado a matar.
Mas
mesmo que não tenha sentimentos, sempre tive vontade de ser um humano.
De respirar, de rir, chorar, comer, transar... E morrer...
Eu não posso morrer, mas queria. Já tentei morrer, mas não sinto nada, não acontece absolutamente nada.
Já apunhalei a foice em minhas vestes, mas o objeto some na escuridão e eu não sangro, não agonizo, não morro...
Eu queria morrer. Queria tanto morrer...
Oh,
Deus... Mestre Divino! Por que me escolhestes para matar? Por que me
escolhestes para ser a encarregada de buscar as almas perdidas no mundo
exterior?
Por quê? Por quê? Por quê?
Por
que não me colocaste entre os seres vivos para respirar, para expressar
sentimentos, para amar, para odiar, para salvar, para viver... Para
morrer?
Eu
queria, eu quero morrer! Não importa como. Seja atropelado,
assassinado, queimado, congelado, perfurado, doente... Apenas quero
sentir as dores finais, fechar os olhos e abri-los em um novo mundo.
Mundo esse que nem mesmo eu conheço.
Deus...
Eu faria de tudo para poder respirar o ar poluído da civilização
humana. Faria qualquer coisa para nascer do ventre de uma mãe... E
nascer, não importa em qual sexo. Faria tudo para engatinhar, andar,
aprender a falar a língua deles... Faria o impossível para crescer, ir à
escola, aprender a ler os códigos humanos... Faria qualquer coisa para
chorar nas horas tristes, rir nos momentos engraçados, brigar e apanhar
quando fosse necessário...
Faria
de tudo para conhecer um alguém, a pessoa certa que ficaria comigo até o
fim dos meus dias na terra... Faria qualquer coisa para sentir o
verdadeiro significado da palavra ‘AMOR’... Procriaria, teria filhos que
continuariam a procriar de minha geração...
Teria uma família.
Enfim... Daria qualquer coisa para ser um ser humano e viver livremente... Até a morte.
Ah... O que é isso? O que está acontecendo comigo?
...
Meus
olhos... Meus olhos... Meus fundos, negros e cintilantes olhos... O que
é isso que está... Que sensação é essa? Que substância, líquido são
esses que estão vazando dos meus olhos... Estão escorrendo lentamente...
Que sensação... Triste... Gélida... Está ardendo aqui... Aqui abaixo das vestes... Entre o peito...
Que dor é essa?
Não. Não. Não! Não pode ser! Isso é... Isso é...
Batimentos... Fortes batimentos... Fortes e dolorosos batimentos... Líquidos... Líquidos incessantes, doces e tristes... Não...
Estou incrédulo... Isso que estou sentindo... Não deveria estar sentindo...
Sofrimento. Dor. Tristeza.
Coração.
Lágrimas.
Nada.
Nada disso deveria estar se manifestando em mim. Eu não tenho alma...
Eu sou um espírito que vaga a escuridão e luz, que paira sobre o
infinito, o nada... Que é encarregado de buscar as almas para seus
respectivos destinos...
Eu sou a Morte! A Morte! Eu não tenho sentimentos. Não tenho sequer um coração!
Eu não tenho.
- Você tem...
Essa voz... Essa incrível, Divina, Gloriosa voz...
Que
luz é essa? Está obstruindo toda essa escuridão... Uma luz forte,
embranquecida... Que sensação boa, prazerosa, confortante...
Senhor? Deus? Meu Lorde... Meu Mestre...
...
O
que está acontecendo, Senhor? Por que minhas vestes estão se dissipando
com a escuridão? Por que minha foice está se desintegrando a pó? Por
que essa resplandecente luz está vindo em direção a mim? Por que estou
sumindo?
Para onde essa luz irá? Para onde eu irei?
Onde...?
Dor. Gritos. Berros. Agonia...
Choro. Um choro abafado. Um choro pequeno, comovente.
Um choro de criança.
As
mãos do médico seguravam aquele perfeito recém-nascido de algumas
gramas e poucos centímetros, que naquele momento engatinhava o início de
uma vida inteira.
- É um milagre... – o cirurgião disse emocionado, com olhos brilhantes direcionados àquela batalhadora mãe.
- Não – ela contradisse com graça e alegria na voz –. Foi Deus quem fez isso... Ele me prometeu... E cumpriu a promessa...
Aquela
mulher, então, segurou aquele pequenino ser humano que chorava
incansavelmente... Ela sorriu e chorou ao mesmo tempo, e sussurrou ao
menino:
-... Você é o filho que eu tanto sonhei... Renan...
Renan – significa: Renascido em Deus.
Vitória, até a alguns meses atrás, era uma mulher com diagnóstico de infertilidade. Não podia engravidar. Jamais teria um filho.
Ela rezou. Pediu a Deus que lhe desse um filho. Deus lhe prometeu.
E então, a promessa fora cumprida.
Renan
de Souza – um menino que não fora planejado... Mas que, de algum lugar
no universo, fora escolhido por Deus para nascer daquele ventre, do
ventre de uma mulher que nunca perdera as esperanças... Esperanças de
que o momento chegaria... O momento em que um ser nasceria de suas
narinas...
Renan. De onde viera? Onde estaria antes de seu nascimento?
Onde os bebês estão antes de entrarem no ventre das mães?
Onde estão?
Ninguém sabe...
Porém,
Renan sabia... E mesmo sendo um recém-nascido, sua mente lembrava-se
aos poucos de onde viera... Da escuridão... Do infinito, do nada... Do
mundo interior.
Ele
cresceria. Sim. Cresceria saudável, ficaria doente em algumas vezes,
choraria, entristeceria, sorriria, namoraria, se casaria, teria filhos,
seria avô... E morreria...
E
durante esse processo, aos poucos esqueceria como viera àquele mundo
dos humanos... Porque os próprios jamais entenderiam os motivos pelo
qual ele nascera...
E
então, ao morrer, a alma de Renan teria seu desejo realizado: Teria
vivido até o último dia que lhe restasse, fecharia o ciclo humano e
voltaria de onde veio...
Quem é a morte?
Quem?
Como ela é?
Como?
Não sabemos, jamais saberemos.
Ela
pode estar entre nós, com nós... Ou, então, poderá ser uma de nós...
Porque não sabemos se ela vive, ou está morta, se respira, se chora, se
ri... Não sabemos...
A morte é um mistério. Talvez ela já tenha vivido entre nós. Talvez ainda viva...
Não
importa como, seja em carne ou osso... Em alma e espírito... A dona
Morte sempre nos espreitará, com sua grande e afiada foice, esperando
pelo momento certo em que nos ceifará e nos levará para o mundo do
além... Um mundo ainda desconhecido pelos vivos... pelos mortos e pela
Morte...
Morte. Não é homem, nem mulher... É um espírito perdido no mundo...
Ela mata. Não porque gosta, mas porque é obrigada a matar.
A morte faz parte da vida.
A vida – quem sabe – já fez parte da morte...
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