“O dia no hospital estava tenso. No principal corredor, bombeiros e
médicos corriam desesperados carregando uma maca. Haveria muitos corpos
chegando naquele dia, naquele local.”
“O paciente gritava aos prantos
com a voz completamente embargada de sangue. Não fosse pelas mãos
hábeis do médico, ele certamente teria morrido antes mesmo de chegar na
sala de trauma.”
“As explosões soavam do lado de fora, acho que ninguém nunca vai esquecer o dia daquele atentado.”
-Cara, volta pra história!
“Ah,
sim, claro. Eles corriam em desespero, mas o que ninguém sabia é que
aquele não era um paciente de guerra, mas sim uma vítima de um terrível
ritual.”
“Dizem que nesta sala, exatamente aqui, ele se levantou
no meio da operação e com uma mão arrancou seu coração. Os cirurgiões
viram seu corpo flutuar até ser arremessado contra a parede. Ele se
levantou com o pescoço quebrado e começou a persegui-los.”
“Os
médicos nunca viram algo assim. Ele ficara corcunda e só Deus sabe de
onde, tirou um crucifixo e começou a furar o peito de um dos
enfermeiros.”
“Todos tentaram sair da sala, mas como vocês devem
imaginar, eles não conseguiram. Tentaram conter o paciente, mas ele era
muito mais forte. O pessoal do hospital teve que trancar a porta por
fora enquanto os pobres homens do lado de dentro eram devorados pela
criatura.”
“Ninguém sabe hoje como ele era. Meu avô disse tê-lo visto na época, mas hoje não consegue descrever com exatidão.”
“Ele
só sabe que depois de quatro semanas o homem morreu. Ele gritava muito,
esperneava palavras inaudíveis, e seus olhos eram vermelhos como chamas
vindas do inferno. O pior mesmo foi ver que não era um vampiro, não era
um lobisomem.”
“Era apenas um homem, vítima de algum ritual maluco
que fizeram por aí. Ele estava possuído. Disso ninguém tinha dúvidas.
Chamaram um padre. O coitado quis entrar lá dentro e acabou morto
também.”
“Quatro semanas depois do incidente, ele acabou
falecendo. A autópsia apontou ataque cardíaco e desnutrição, eu acho.
Meu avô disse que essa sala fedia muito, um cheio de enxofre muito
forte, e que depois que tiraram o corpo daqui, demorou três meses para
alguém utilizar a sala de novo. Foi uma enfermeira.”
“Ela entrou aqui
e pirou. Ficou louca. Se cortou toda com um bisturi e quando ouviram os
gritos dela e foram ver o que estava acontecendo, encontraram-na
andando com as costas arqueadas, os olhos todos negros, e estava ali,
naquele canto.”
“Ela não estava no chão. Parecia um réptil se arrastando pela parede.”
“Quando
meu avô e o avô do Caio entraram, ela se contorceu ainda mais e
grunhiu. Juro por Deus, que meu avô disse que jamais entraria aqui
novamente.”
“A enfermeira morreu na mesma hora que eles entraram. Foi um grito alto, seguido do corpo dela caindo no chão.”
“Dizem
que quando foram preparar seu corpo para o velório, encontraram um
crucifixo no ânus dela, e que seu corpo estava tão duro que foi preciso
quebrar suas mãos para que ficassem direito no caixão.”
-E o que aconteceu depois disso?
“Meu
avô disse que fecharam a sala e não falaram mais no assunto.
Trancaram-na como estava, ninguém nunca mais pisou os pés lá dentro. As
vezes as pessoas passavam aqui em frente e diziam ouvir choro, lamentos,
e de vez em quando, gritos desesperados de alguém.”
-Meu Deus...
*************************************************************************
As crianças estavam reunidas dentro da sala de cirurgias do antigo hospital São Sebastião.
Após
anos de funcionamento, a unidade de pronto atendimento havia sido
desativada por falta de verbas. A cidade do interior fora palco de uma
pequena guerra civil nos anos 50, época em que as coisas ficaram bem
movimentadas por lá. Nesse tempo, as atrocidades eram tantas que todos
os meios de tortura eram utilizados. Inclusive rituais satânicos, para
induzir a vítima a loucura e suicídio.
Esta é mais uma das
histórias brasileiras que não estão nos livros. Ninguém se lembra, a não
ser os poucos velhos que ainda insistem em conta-la para as crianças e
os jovens da antiga cidade.
-Pedro, estou com medo. Não acha melhor a gente sair daqui?
As
crianças sempre se reuniam na rua para contar essas histórias, mas
naquela noite, Pedro sugeriu que se todos fossem homens de verdade,
deveriam se reunir na sala do hospital, onde tudo acontecera.
No
calor do momento, Caio, Renan e Alisson concordaram em ir até lá. O
local ficava distante a apenas duas quadras da rua onde moravam e não
havia segurança. Era um lugar velho e pouco convidativo.
Esporadicamente, moradores de rua eram removidos de lá pela prefeitura,
mas não passava disso.
Quando as crianças chegaram à sala estava
trancada. O cheiro do lado de dentro parecia ser tal qual os avós de
Pedro e Caio descreveram. Enxofre certamente. Era tão forte que fazia
seus narizes arderem, mas ainda assim, a curiosidade infantil falou mais
alto, e sem muita dificuldade, os garotos arrombaram a porta que abriu
com um rangido.
A noite era alta, quase 20 horas. Todos sentiram
certo receio, mas para provar uns para os outros que eram mais fortes,
ambos entraram e ouviram Pedro, que de pé e na posse de uma lanterna,
contava com detalhes a história tantas vezes ouvida...
-E foi isso gente – Pedro concluiu.
-Pedro, estou com medo. Não acha melhor sairmos daqui?
Caio era o mais novo da turma, e, portanto, segundo os meninos o mais covarde.
-Medo? Mas medo de que? – Alisson ergueu a voz.
Renan interviu a favor de Caio.
-Gente, acho melhor a gente sair daqui mesmo. Já está tarde e minha mãe...
-Shhh!! – Caio praticamente sussurrou – Escutaram isso?
Um barulho veio do corredor. Algo se arrastava ali, próximo a eles.
As crianças se encolheram e por um instante pareceram esquecer que estavam ali.
-O que vamos fazer? - perguntou Pedro.
Ninguém
respondeu. O barulho parecia mais perto, e as crianças deram passos
para trás. Sem notar, eles deram as mãos uns aos outros. Caio começou a
tremer.
-Pare Caio... A gente não sabe o que tem ali – Disse Alisson apontando em direção à porta.
-Estou com medo... – respondeu o garoto.
Subitamente,
um grunhido alto pareceu partir de um canto de dentro da sala. Os
meninos correram em direção a porta, e atrás deles, passos começaram a
ecoar.
Pedro corria em desespero pelo corredor buscando a saída.
Tentava olhar para trás para ver os amigos, mas tinha certeza de que se o
fizesse, veria algo que não queria ver.
Caio era gordinho.
Sentiu o cansaço nas pernas bater mais alto que o pânico que sentia. Viu
uma porta aberta com os dizeres “Banheiro” e entrou, fechando-a atrás
de si.
Lá dentro tudo estava escuro. O menino tremia chamando
pela mãe, mas só o silêncio parecia responder. Quando o seus olhos se
acostumaram ao breu, uma figura curva surgiu diante dele. A enfermeira
com as costas arqueadas e passos de lagarto viu o garoto e investiu.
Caio gritou e caiu, sentindo um frio intenso se apoderar de seu corpo.
Fechou os olhos, e quando os abriu, uma vermelhidão tomou conta deles.
Renan
e Alisson conseguiram sair do hospital. Pararam em frente à portaria e
olharam para trás. Pedro corria aos trancos e barrancos, com uma
expressão de pavor no rosto. Atrás dele, passos de alguém correndo e
mãos negras se esforçavam para pega-lo e arrasta-lo para dentro.
Quando
o garoto enfim cruzou a porta de saída, Alisson e Renan viram aquele
que um dia tinha sido o jovem, vítima do ritual. Ele urrou em ira,
contemplando as crianças que escaparam. Em sua mão, um enorme crucifixo
negro pendeu e caiu no chão, produzindo um alto ruído.
Os meninos correram juntos, sem olhar para trás, e juraram nunca mais voltar a aquele lugar novamente.
No
dia seguinte, ao cair da tarde as sirenes de carros de polícia tomavam
conta da rua em frente ao hospital São Sebastião. Jornalistas cercavam o
prédio, entrevistando os pais dos garotos que fugiram. Incrédulos a
versões, alguns deles riam, do que julgavam ser apenas histórias de
crianças assustadas.
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