quinta-feira, 15 de maio de 2014
Vida que Segue
Se passaram o quê? Quatro anos? Vinte? Dez
mil? Sei lá, só sei que eu mentia pra mim, dizendo repetidas vezes: já
passou, cara, já passou. Até olhar no espelho e enxergar ela refletida
ali atrás, sorrindo com escárnio, sussurrando suas monossílabas
irritantes no meu ouvido, bem devagar, pra foder com a porra da minha
razão. Quem inventou essa coisa de razão devia ter deixado um manual de
instruções tatuado na minha testa, dizendo como usá-la nessas horas. Vai
ver, o filho da puta deve ter passado por uma situação assim e quis que
a maioria da humanidade compartilhasse a porcaria de não saber o que
fazer, mesmo nos raros momentos quando há o que fazer. E são raros
mesmo, cara. Falo sério. Tão raros que eu quase nunca percebo quando
aparecem. E quando percebo, acabo não tendo tempo pra pensar em algo,
porque um par de meias rosas, uma escova de dentes, um dvd de uma
cantora que eu não sei o nome e uma calcinha do Bananas de Pijamas se
esconde entre um objeto e outro, na bagunça do meu quarto, me obrigando a
levantar a bunda da cadeira e ir arrumar. Ela não teve tempo de levar
toda essa parafernália, e nem fez questão de voltar pra buscar. Eu não
tive tempo de levar ela daqui, e nem fiz questão também. Esse sempre
fora o motivo de quase todas as minhas encrencas: os meus desejos
carnais acerca de garotinhas teimosas não me permitiam jogar tudo fora
de uma hora pra outra, de um ano pra outro. Mas, como me tornei um bom
campeão na arte de se sentir indiferente a tudo nesses muitos anos de
autodepreciação pós-rejeição, já não ligo muito. Joguei fora o par de
meias, a escova de dentes, o dvd, a calcinha, eu, ela, nós, a coisa
toda. Adeus, Banana de Pijamas. Não volte mais. Não faça como ela tentou
fazer, quando me viu com outro sorriso, me reerguendo aos poucos com a
ajuda daquela minha meio-colega meio-ficante de escola, que me deu umas
boas palpitações nesse negócio que chamam de coração, e algumas poucas
histórias pra contar – pra mim mesmo, enquanto fui capaz de lembrar com
detalhes. Em geral, é assim que as coisas funcionam. Tudo se vai por
algum lugar e você se acostuma a narrar seu próprio roteiro para si
mesmo, devido a ausência de um ouvido que ouça atenciosamente toda a
merda que você tem pra falar. E, quando vê, lá está você novamente,
futucando o cotovelo e de cara emburrada no canto do quarto ou numa mesa
solitária de um desses bares que ficam em avenidas pouco movimentadas.
As nossas próprias desgraças já não são boas pros nossos próprios
tímpanos, quem dirá pro dos outros, que já ouviram as mesmas histórias
contadas por outras bocas que já ouviram de outras bocas que estão
procurando outras para o caso de não ter com quem reclamar, amanhã, ou
até mesmo em dez mil anos, numa noite de carência exterminadora de
corações acinzentados. Foram quantos anos assim, hein? Quatro? Vinte?
Dez mil? Não sei. Além do mais, certas histórias viraram histórias
porque tiveram a necessidade de virar. Está tudo bem. Sempre está, é o
que eu digo a quem pergunta. Não penso mais nessas coisas como
antigamente, como eu disse. Já que meu coração partiu, e agora
aparentemente escolheu outro lugar que não permite novos inquilinos,
devo passar os meus próximos meses na fossa, de novo, pensando naquela
carinha angelical e naquele meio-sorriso que conheci num dia desses, sem
saber muito o que fazer. Em silêncio, claro. Isso é uma lei que eu
mesmo criei, mesmo sem estar consciente ao averiguar os prós e os
contras: Artigo número um: gostar, em silêncio; Artigo dois: sei lá o
que eu faço agora, então continuarei em silêncio. Tudo bem, tudo bem.
Vou ao inferno de novo, se preciso. Não me importo mais em queimar por
lá. Da próxima vez que eu for passar pela passarela em chamas, tentarei
pedir um manual de instruções a alguém que não seja eu. E o guardarei
pra mim, até achar alguém que, estranhamente, queira dividi-lo comigo,
me ensinando a compartilhar as coisas como um ser humano normal. Nem que
demore quatro, vinte ou dez mil anos.
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