A noite estava morna e eu acabava de abalar a corda de minha
guitarra, soando uma última nota de uma melodia lenta que eu
improvisara. Me veio à mente a lembrança de certa ocasião em que eu,
pela primeiríssima vez, beijei uma garota. Eu era bastante novo. Eu e
minha estimada amiga fomos embalados por uma súbita curiosidade à cerca
de tal representação de amor dos adulto. Em seguida, percebi que pouco
tempo depois, me foi solicitado, por outra menina, um beijo meu. Cedi-o
sem hesitar. Seguiu-se, ulteriormente, outras solicitações desse tipo.
Às quais eu atendia da melhor forma possível. Aprendi que eram
cumplicidades deliciosas e busquei-a em diversos lábios femininos ao
longo do meu início de juventude. Lá pelos meus quinze anos, tornei-me
extremamente envaidecido pelo fato de ser desejado pelas mais desejadas
meninas da pequena cidade em que morava. Para alimentar minha
auto-estima eu precisava estar sempre pondo em prática minhas
habilidades sedutoras. Sem que eu percebesse, havia me tornado um menino
muito inseguro. E notavelmente bonito. Aprendi, com o tempo, que não
deveria desperdiçar meu belo rosto juvenil. Também percebi que meu poder
social consistia em não ter, por menina alguma, um beijo negado.
Precisava disso para sentir-me aliviado. Aprendi a beijar sem amar,
arrancar o recheio e jogar fora o biscoito. Aprendi a amar para fazer
drama. Desejando, sem perceber, que não me amassem de volta. Assim, eu
poderia ser o pobre coitado de quem as gurias tinham vontade de cuidar.
Pratiquei, por toda a minha juventude, o crime de (através de
consolidações físicas de afeto) representar afeto onde não havia sequer
um pingo de sentimento. Matei em mim a capacidade de amar e ser amado.
Ajudei a disseminar por aí o beijo vazio, a simulação de um namoro que
dura algumas horas. Afinal, é tudo o que resta aos pobres coitados
abençoados geneticamente com a beleza visível aos olhos. A capacidade de
exaurir, aos amassos, a própria beleza e a beleza do próximo, como a
produção industrial que mata o charme do trabalho artesanal. Hoje, de
tanto beijar por beijar, herdei de minha juventude a habilidade de
tratar uma mulher como um instrumento musical. Para exprimir de qualquer
uma o prazer, aprendi as técnicas de todos os acordes da anatomia
feminina. Mas não sei fazer brilhar em nenhuma a melodia da paixão
duradoura. Eu não sabia até então, mas hoje percebo que o recheio
sozinho, não preenche nenhum campo vazio da alma. Porém, não sei mais o
que fazer com o gosto do biscoito. Isso daria uma história boa, repleta
de conflitos e amores conquistados ou perdidos, se eu não houvesse
compreendido tudo isso. Toda vez que desligo o telefone, depois de uma
conversa com Sandra, digo-me que todas as outras foram mera curtição e
posso colocá-las em um canto da minha mente e dizer ao contemplá-las:
"é, eu curti a vida, foram válidas, apesar de agora eu curtir tudo isso
em uma pessoa só".
Mas isso não passa de auto-consolo. Eu
nunca precisei delas. Fui simplesmente fraco e cedi aos elogios. Fui
medíocre ao deixar-me transformar em um fantoche da sociedade, seguindo a
moda da mocidade. Quisera eu, agora, ter beijado somente Sandrinha.
Quisera agora somente poder retribuir a ela todo o amor que ela tem por
mim. Ao me beijar, sei que ela põe no beijo todo o amor dela. Ela parece
eletrocutar minha alma ao passar para mim aquela paixão devastadora
através de beijos e de caricias espontâneas. Enquanto eu a manejo com
mera técnica, uma superficial necessidade de agradá-la fisicamente, sem
nada sentir. E muito embora ela ainda não tenha percebido, sem nada
fazê-la sentir verdadeiramente. Arrependo-me agora, nessa noite morna,
com a juventude morta, de ter transformado meu coração em uma fábrica
capitalista de prazer. Quisera tê-lo privado de certas garotas, para
saborear completamente essa que eu tenho agora.
Tenho hoje
vinte e tantos anos de vida e me sinto acabado neste quarto de hotel.
Poderia estar tocando a macia pele dos dedos de Sandra, mas só tenho
estas cordas de minha mais nova guitarra. Ah, é claro: a mão esquerda
intercalo entre precisar os acordes na guitarra e trazer à boca o
gargalo de uma legítima cachaça mineira de Uberlândia. Se
perguntassem-me como é Uberlândia, eu não saberia dizer, estou aqui há
dois dias e nem me dei ao trabalho de sequer explorar o hotel no qual
estou hospedado. Só percebi um cheiro esquisito que vem das paredes que,
apesar de fazerem parecer que é cheiro de tinta (cheio que eu amo de
paixão), colocando alguém a todo instante ao corredor, fingindo pintar a
parede, dá pra perceber que o odor azedo vem de detrás da tinta, talvez
de dentro da parede. Porém, pouco me importa o cheiro de podridão que
exala de dentro das paredes. Minha alma me ameaça mais que segredos
paranoicos que eu guardaria nas paredes de um hotel mineiro.
Entre acordes e bebericadas, argumentava em minha mente sobre como
consenti-me ao aceitar, desde pequeno, as vicissitudes da minha vida. E
como a minha vida e as pessoas que fazem parte dela se recusaram a
aceitar-me, muito embora digam que aceitem para, em seguida, argumentem
algo e contradizerem-se, sem perceber. Minha vida sempre fora muito
simples. Morei em diversos lugares diferentes, estudei em inúmeras
escolas e me adaptei ao ambiente e às pessoas que iam e viam em minha
vida. Aprendi a beleza da diversidade. Mas de repente, à certo ponto de
minha escalada em direção à felicidade, largaram-me na multidão e me
vieram com conselhos que leram no espelho e exigências implícitas no
fundo dos próprios olhos (onde eu não podia evitar de lê-las, enquanto
as pessoas próprias não as viam). Eu já não sabia o que era importante e
o que não era, muito embora o importante é aquilo que se considera
importante, simplesmente. Sentia-me burro, pois a inteligência era
aquele brilho que iluminava, com um pouco mais de alegria, a satisfação,
e dava prudência para viver. Ajudava a criar e desenvolver novas
ideias, melhorar constantemente o mundo e as pessoas e etc. O mundo me
veio com a ideia de que aquele que está a todo instante buscando
notícias na mídia e que soubesse reproduzir aos amigos no bar o que
estava ocorrendo com algum presidente distante, não era uma pessoa
meramente bem informada e sim, alguém muito inteligente. Aquele que se
submete a ser moldado por professores, que aprende o que lhe é mandado
aprender, que vive ensaiando para a próxima apresentação, no intuito de
arrancar sorrisos e aplausos de alguém, achando que é o próprio sorriso
que busca, mas não percebendo que vive em prol dos ladrões de sorrisos
desavisados, também não são pessoas meramente responsáveis que cumprem
com as obrigações impostas por outros. Convenceram-me que esses são os
inteligentes. E assim, apagaram em mim, a luz da inteligência que eu
achava ter. Talvez eu ainda tenha essa gigantesca lâmpada dentro de mim,
ainda agora, que minha alma é um breu total. Mas dispensaram o brilho
de meu talento. Sufocaram com mediocridades e conceitos impregnados na
sociedade o meu conhecimento analítico. Se eu quiser brilhar, vai ter
que ser de fora pra dentro. Talvez essa guitarra seja meu interruptor,
ou (como eu quisera certa vez, com mais intensidade), um lápis e um
caderno.
Já havia lido em tantos livros, histórias assombradas
que ocorriam em hotéis macabros e já havia assistidos inúmeros filmes
de terror onde alguém se matava num quarto escuro e frio de hotel.
Larguei a guitarra na cama, no lugar onde deveria estar minha pequena
Sandra, e peguei na gaveta da mesa de cabeceira meu caderno e meu lápis.
Senti-me compelido a escrever algumas páginas de angústia, tendo como
cenário aquele soturno quarto de hotel. Contudo, me pareceu clichê
demais e logo abandonei a ideia. Eu já havia escrito várias páginas
naquele caderno velho e pus-me a lê-las, somente. Constatei na leitura
que eu havia decididamente abandonado qualquer acentuação. Já estava
preparado para a próxima reforma ortográfica. Cada vez mais,
abandonam-se os acentos. Me pareceu, naquele momento, ao ser
ortograficamente incorreto, estar sendo, na verdade, super clarividente.
Afinal, escravos da gramática são os alunos de ensino médio que avaliam
massantemente as grandes obras de ilustres autores, enquanto os
verdadeiros, outrora, gênios literários, brincavam com a ortografia,
criando e recriando com as palavras, sem respeitar demasiado as regras,
orientando-se nelas apenas. Deixando para os responsáveis e bem
informados queridinhos, inteligentemente dissecar poesias em busca de
regras gramaticais.
Decidi abandonar aquela leitura que nada
me acrescentava e fui tomar um banho. Enquanto a água do chuveiro
derramava-se em mim, minha mente pôs, mais uma vez, a deleitar-se em
mórbida nostalgia, só pra me irritar um pouco mais. Meus pensamentos
voaram ao meu passado um instante e trouxeram de lá fatos. E mesclaram
os novos fatos das antigas, nos pensamentos frescos do meu raciocínio.
Isso resultou em certas conclusões e ideias frescas. Apesar de eu ter
tido muitas meninas para dançar a melodia do amor, seguindo a apologia:
sem música. Eu passava muito tempo sozinho com meus pensamentos. E a
solidão me ensinou a cultivar ideias próprias. Coisas das quais o mundo
não tinha acesso. Eram pensamentos e conclusões minhas e somente minhas.
E quando eu os colocava para fora, modelados com criatividade, pessoas
aplaudiam ou balançavam a cabeça sorrindo e dizendo “só você mesmo,
hein.” Mas isso não durou muito. Logo minha ideias, outrora admiradas
por ter aquela benção de serem virgens, a graça de fazer rir, fazer
espantar, agraciar as engrenagens mecânicas e cansadas daqueles que se
limitavam a decorar velhas ideias e conceitos, agora não tinham mais
brilho. Muito pelo contrario, ultimamente minhas peculiaridades, outrora
admiradas, agora fazem de mim, uma pessoa imprópria para viver em
sociedade. Minhas ideias são a causa de toda discussão e mal entendido.
Tornei-me um veneno para mim mesmo. Aliás, falando em veneno, foi nesta
parte da história em que bateram à porta. O som ressonou oco no
ambiente. O barulho do baque dos nós dos dedos à placa de madeira que
separava o quarto do compridíssimo corredor alvirrubro me fez
sobressaltar e errar um acorde. Fui atender e deparei-me com um
simpático funcionário do hotel. Trazia-me uma garrafa de Champanhe que
dizia ser cortesia por parte do senhor Alvarez, dono do hotel Bona
Solistina. Ao menos foi o que entendi. Trouxe para dentro a garrafa, a
taça e o abridor. Abri, fingi festejar algo e deixei, sem querer, a
garrafa cair ao chão. Praguejei, sabe-se lá por que, mas surpreendi-me
quando uma fumaça subia do carpete bege. Demorei a perceber o que estava
ocorrendo. Primeiro por que estava bastante bêbado por causa da
cachaça, e depois que entendi, avaliei bem se era fruto de minha
imaginação embriagada ou era fato verídico. O dono do hotel então teve a
gentileza de compreender que eu não me sentia bem neste mundo e decidiu
mandar-me para o além, certo? Maldito seja o bendito. Na minha
concepção, por mais cruel que possa parecer, somente três pessoas neste
mundo tem o direito de tirar minha vida, as duas primeiras são as que
“me deram a vida”, e depois, eu. Afinal de contas a vida é minha, então
eu faço o que quiser com ela. Estragar, consertar, tecê-la em qualquer
direção ou atirá-la no precipício eterno. E meus pais, sendo eu, deles,
minha vida também os pertence, até certo ponto. Antes de tentar
compreender as razões "assassínias" do estimado senhor Alvarez, arrumei,
de pronto, as minhas coisas, afim de partir daquele lugar o quanto
antes.
No dia seguinte eu amanheci naquele quarto. Devo ter
desmaiado, provavelmente. Não lembrava de ter ido dormir
voluntariamente. Só sei que apaguei na noite anterior, porque despertei
na manhã seguinte. A cabeça doía e eu sentia toda aquele mau estar
contido na ressaca de meia garrafa de cachaça. Bom, pelo que constei, eu
estava vivo. Não sabia, porém, se por isso vibrava ou lamentava.
Enquanto Tico e Teco discutiam a respeito, desci, prestando bastante
atenção ao redor, para tomar café da manhã. Estava preparado para
qualquer coisa, menos para deparar-me com duas belas (e põe belas nisso)
jovens garotas no corredor do terceiro andar (um andar abaixo do qual
eu estava hospedado). Ambas sorriram e cumprimentaram-me. Eu
cumprimentei-as friamente. Não sei demonstrar afeição, assim de pronto,
normalmente eu preciso sempre arquitetar minhas atitudes, até para
improvisar ao ser pego de surpresa, sabe-se lá como, eu consigo estar
previamente preparado. O cheiro ali embaixo, que tenho quase certeza,
vinha das paredes, de dentro delas, estava pior. Era um cheiro azedo, de
podridão. Chegando lá embaixo (surpreendi-me comigo por ter demorado
tanto para decidir tal coisa), optei por tomar café da manhã em uma
padaria, não muito longe do hotel. Quando voltei, o recepcionista,
sorrindo nervosamente, entregou os pontos com uma inconfundível
expressão de “como diabos você ainda está vivo?”. Tendo constatado no
rosto do funcionário tal exasperação, desaprovando implicitamente o meu
viver, o meu “ainda” viver, senti-me estranhamente inclinado a viver. À
alguns degraus de distância do quarto andar, pude ouvir alguma
movimentação pouco sutil no corredor. Ao caminhar pelo corredor em
direção ao meu quarto, observei que um funcionário do hotel ficou
subitamente preocupado com a minha indesejável presença e apanhou
desesperadamente um balde de água e esfregou a parede, com força, um
produto de limpeza de cheiro muito forte de álcool. Quando me aproximei
perguntei:
– Incomodo?
– Não, não senhor! – respondeu com tremor na voz.
Sem que eu planejasse, meu olhar caiu sobre o balde de tinta
vermelho-sangue pousado no chão. Entretanto, antes que pudesse ver ou
sentir o cheiro da tinta para avaliar melhor, o pintor jogou em cima da
lata uma tampa e carregou suas coisas no carrinho. Arrastou-o às pressas
corredor afora. Duas portas à frente ficava a suíte em que eu estava
hospedado. Abri a porta, entrei, tranquei a porta atrás de mim e
atirei-me na cama. Eu tinha sérios problemas de concentração e,
portanto, esqueci-me logo que corria risco de vida naquele antro
melancólico e cheio de mistérios sombrios. Passei a mão pelo rosto
involuntariamente e percebi que precisava fazer-me a barba. Não por
vaidade (é claro que não). Mas não me restava disposição para isto.
Nunca me resta disposição para tais minúcias. Porém, eu gostava de
conservar-me o mais jovem possível, ao menos na aparência. Assim, eu
acreditava amenizar as pressões das obrigações que jogavam sobre mim ao
me perceberem. A vida cobra a todos de acordo com sua vontade.
Igualmente, os homens cobram aos seus semelhantes, também de acordo com
sua vontade, e percebi que quanto menos idade possuir o ser humano,
menos lhe é cobrado pelos homens. A vida, no entanto, não nos faz
distinção alguma. Nem de idade, nem de cor dos olhos, dos cabelos ou tom
de pele. Maior sendo sua idade, você, como imã, atrai frases como:
“você já tem vinte anos nas costas”. Como se, ao completar dezoito anos,
você magicamente se tornasse adulto, capaz de atender à demanda de
responsabilidade dirigida, costumeiramente, aos adultos. Como se as
fases da vida fossem impostas pela natureza e não fossem conceitos
sociais abstratos que não existem efetivamente em campo físico. Como se
todos fossem sujeitos a sofrerem místicas mudanças de comportamento para
tornarem-se adolescentes, adultos, idosos e etc. Para tentar livrar-me
disso, tento manter fresca minha aparência, o rosto mais de menino que
puder, para que ao me olharem, mesmo sabendo de pronto que tenho vinte
anos de idade, eu possa atrasar um pouco tal conclusão, ao enganar os
olhos de quem me vê. Dos que não sabem minha idade, é ainda mais fácil,
pois a única certeza que eles têm é a que lhes é concedida pela visão.
Na hora do jantar, abri cautelosamente a porta da minha humilde
suíte e adentrei o corredor. Atento à tudo e à todos. Quando já me
aproximava das escadas, ouvi atrás de mim, o início de uma sessão de
passos femininos. O sutil estampido oco ecoava corredor adentro.
Abstive-me ante o primeiro degrau e olhei para trás. Vi uma menina de
roupas casuais, daquelas que se usa para ir até a padaria da esquina e
na ausência do pijama que foi posta para lavar, ou na ausência de
disposição para trocar pelo uniforme de dormir, se deixa no corpo para
deitar-se. Apesar de o som revelar-me que ela calçava um salto fino e
firme, daqueles que se usa com vestidos chiques, meus olhos desmereciam a
sentença do áudio e me mostravam que a menina calçava um par de
sandálias altas. Vendo que eu a olhava, sorriu-me, graciosamente. Tinhas
os cabelos claros, mas não muito. Parecia ser do tipo que não tem o
hábito de pentear-se nunca. Umas mechas escorridas ocultavam as laterais
de seu rosto fino e solene. Sorri de volta, gentilmente, e pus-me a
descer lentamente os degraus, permitindo assim, que ela se aproximasse.
Esperando que caminhássemos juntos ao corredor do primeiro andar, que
levava ao salão de jantar.
Lá jantamos. Eu em uma mesa e ela
em outra. À uma distancia de quatro outras mesas um do outro. Olhávamos
de soslaio vez ou outra. Ambos comemos bastante pouco e, primeiro eu,
depois ela, voltamos aos nossos respectivos quartos. Sei que ela subiu
depois de mim porque ouvi seus passos sincopados ressonando no corredor.
Mais uma noite morna. Coloquei em um aparelho de som empoeirado,
um CD qualquer de Marilyn Manson. Entre a garrafa de cachaça mineira que
estava pela metade e a garrafa virgem de vodca, optei por despertar a
vodca caloura. Peguei meu caderno e meu lápis e tentei escrever algo,
qualquer coisa que fizesse aumentar a angústia da pessoa que encontrasse
meus escritos após minha morte prematura. À esta pessoa, meu estreito
talento para a escrita lhe pareceria um imenso talento. Curto, pois não
teve a chance de ser desenvolvido. O que acrescentaria lamento à
fatalidade à mim ocorrida. Mas enfim, acordei no dia seguinte e ainda
era noite. A primeira explicação que me veio a mente foi a de que o sol
havia esquecido de dar as caras, pela primeira vez na história da
humanidade. Ou quem sabe, a escuridão se desse decorrente de um eclipse
do qual eu não fora avisado? O que não é muito improvável, uma vez que
eu não presto atenção à grande parte dos pormenores que me cerca, não
digno atenção à essas minúcias que fazem órbita em torno das pessoas que
me orbitam. Desliguei o som onde girava desenfreado um álbum de Marilyn
Manson. Mesmo apesar de o som estar desligado, meu amigo Manson não
parou de cantar. Na busca da certeza absoluta, mesmo sabendo que o som
não vinha das caixas de som de dentro da minha suíte, retirei o aparelho
da tomada e constatei que Manson continuava a gritar uma canção
animadoramente "assustiva". O telefone tocou, fazendo-me sobressaltar.
Atendi.
- Alô?
- Boa tarde, senhor Carlos. O perigo
está crescendo, estou ligando para pedir-lhe encarecidamente que não
deixe o hotel hoje.
- Porque não? – perguntei.
-
Porque não é seguro. Entendo que não é seguro aqui dentro tampouco. Mas
ao menos dentro das paredes desse hotel, teremos alguma diversão.
Pude sentir um sorriso moldando aquelas frases, o que, é claro, me
assustou um pouco. Sorri, sem omitir, por precaução, deixando o perceber
minha indiferença. Privando-o do prazer de ver-me assustado ou confuso.
Afastei as cortinas após pôr o telefone no gancho para procurar no céu
algum vestígio de resposta, ao menos. Não havia céu. Onde deveria estar
algumas nuvens, e além delas algum céu, havia um oceano. Ou seja lá que
nome tenha uma enorme quantidade de água, em seu mais puro estado
líquido, flutuando no lugar das nuvens. Mas acho que ainda não tinha
nome um fenômeno desses. Atrás de mim, baterem à porta com tamanha
força. Nada ouvi dizer da boca da pessoa que espancava a pobre porta de
madeira branca, mas sabia que ao fazer calar aos lábios o desespero, era
mais do que gritar. Uma enorme demonstração de desespero, ainda maior
que o desespero demonstrado aos berros. Pois ainda trazia ao desesperado
a incerteza de estar sendo ouvido. Abri a porta, um pouco emburrado com
a falta de educação do indivíduo, e me deparei com um rosto solene que
me fez sentir alívio e abandonar o mau humor que eu havia armado contra
quem assolava a porta de minha suíte.
- Oi, deixa eu entrar? – perguntou com a voz doce e sedutora, e foi-se entrando.
Apesar de manter uma aparente, e até convincente calma,
transparecia-lhe, na mesma intensidade, o pavor. Entrou no quarto e, de
supetão, virou-se e mandou que eu fechasse a porta e a trancasse.
Obedeci. Ao fechar a porta me veio a mente a preocupação com o estado de
minha suíte. Na cama, mau havia lugar para sentar-se. Ao virar-me para
dentro do quarto, vi-a sentada na cama. Havia encontrado um espaço
naquela bagunça. Era a habilidade exclusivamente feminina de lidar com a
bagunça de qualquer homem.
- Desculpe-me invadir dessa forma o seu quarto. – disse gentilmente.
- Tudo bem, só não repara a bagunça. – pedi, e forcei-me a mexer
em alguma coisa aqui e ali, fingindo arrumar, ou fingindo tentar
arrumar.
A menina dos cabelos desgrenhados e oleosos, que lhe
caíam nas laterais do rosto, formando um wide-screen no ângulo de
noventa graus, olhou ao redor com certo espanto leviano.
- Impossível não reparar. – e sorriu como quem não da importância.
- Mas então... Está tendo uma chacina no corredor, ratos no seu
quarto, ou o que? Não me entenda mal, é um prazer recebê-la aqui. Só por
curiosidade. – perguntei, imediatamente arrependendo-me, ao sentir-me
um tanto grosseiro.
Ela se limitou a pedir algo para beber e
eu percebi, inexplicavelmente, que não se tratava de algo que matasse a
sede do corpo, mas sim, a desidratação das emoções. Entre vodca e
cachaça, ela optou pela vodca. Bebemos juntos, o resto da tarde negra,
naquele quarto de hotel. Conhecemo-nos, contradizemos-nos e
percebemo-nos muito semelhantes na essência de nosso ser. Muito embora
nossas ideias se confrontassem em diversos pontos. Obviamente eu não
tentei cortejá-la. Eu tinha o meu orgulho. Sou do tipo que só prepara o
terreno, molha a horta, mas deixo que os outros colham e me entreguem
nas mãos os frutos. Tentar colher os frutos dela, significaria trair a
minha querida Sandrinha. Mas dar umas bagunçadas sinistras com aquela
bela menina não me faria amar menos minha adorável Sandra. Eu sei que no
fim de minha vida, sempre vai me restar aquela velha opinião
acolhedora: “ao menos eu curti a vida”.
Do corredor soou o
berro de uma criatura. Parecia-me o urro arrancado da garganta de um ser
alienígena. Impôs medo, instantaneamente, em mim e na menina.
Abracei-a, e ela não demonstrou nenhuma objeção. Aguardamos o destino,
quem sabe fatal, que nos advinha, encurralados pelo medo (ótimo nome
para um filme do qual eu me sentia pertencente, aliás). Entretanto, mais
tarde, encorajados pelo álcool, depois que o perigo silenciou por algum
tempo, abrimos lentamente a porta, afim de verificar o corredor. A
princípio havia silêncio no corredor. Mas enquanto olhávamos para a
direita, à esquerda uma porta se fechou, quase que imperceptivelmente.
Ouvimos somente o pequeno estalido da lingueta da porta. De supetão,
olhamos naquela direção. Dei um passo à frente para ter uma visão melhor
do corredor estendido a nossa esquerda e não vi nada demais. Mas então,
atrás de mim, ouvi um certo gorgolejar que vestia uma melodia límpida e
solene, mas não desprovida do calor do terror e do arrepiante frescor
vívido do horror. Antes de verificar a origem do som crescente que se
formava atrás de mim, meus olhos demoraram-se, inevitavelmente, em
Bárbara. Olhos vidrados em algo, aquela expressão inexplicável por
palavras que são ouvidas quando proferidas, mas lia-se nela o alerta
desesperado, escrito em braile para que se decifre ao esfregar-lhe um
olhar ligeiramente atento. Seus cabelos, agora negros e altamente
oleosos, tinham um brilho opaco emprestado pela luz vacilante do
corredor. O reflexo das partes inferiores das paredes lhe emprestavam um
rubor fúnebre às pupilas. Foi-me tremendamente atormentador ver o que
ela via. Ao olhar, vi um pedaço de um braço humano mutilado, tateando a
parede. Um cadáver pálido e repleto de cortes profundos tentava escapar
de dentro da parede. Na parede oposta, as costas de um homem, com o
mesmo aspecto repulsivo do outro, desmanchava a parede deslizando de
dentro dela lentamente. E logo, toda a extensão do corredor era invadida
por corpos monstruosos que saíam de dentro das paredes. O sangue
escorria em pavorosa quantidade de dentro das paredes, misturando-se e
camuflando-se na tinta vermelha da parte inferior da parede, que agora
eu compreendia, era também sangue.
Adentramos a suíte correndo
e precipitamo-nos à janela. Olhamos para cima e vimos o oceano sobre
nós, revolto. Abaixo, as nuvens carregadas, ocupadas a trovoar suas
dúvidas. Abri a janela. Procuramos nos olhos um do outro o
consentimento, a dúvida, e por fim concordamos. Demo-nos as mãos e
pulamos, caindo em direção às nuvens. Tudo pareceu cinza-escuríssimo e
lento demais. A umidade me asfixiava e a certeza da solidão me
acariciava. Mexendo os pés involuntariamente, logo toquei o chão.
Caminhei alguns metros, sentindo-me sufocado e levemente desesperado.
Muito embora meu corpo já caminhasse em alguma superfície, minha mente
ainda caía em algum abismo. Senti meus braços tocarem uma parede macia,
como um colchão, e senti-me, de repente, atraído por aquela superfície
confortável. Contudo, não conseguia respirar e minha cabeça rodava.
Senti que aquele era algum tipo de fim. O fim de um pesadelo, talvez.
Percebi, para logo em seguida desperceber, que minha convicção tinha a
mesma forma que a falta de convicção. Involuntariamente, empurrei com
força a tal superfície e senti que não consegui empurrar o piso.
Entretanto, empurrei a mim mesmo e encontrei-me em posição de fazer
flexões, encarando, à alguns centímetros na minha frente, o travesseiro
cinzento que me asfixiava. Do meu lado, remexia-se incomodada, como se
dançasse com graça, minha formosa Sandra. Cabelos despenteados e
graciosamente oleosos, sua respiração tão humana e feminina. Olhando
seus olhos selados, encontrei minha redenção, que não existiria sem suas
íris azuis mirando-me. Independente da distância física ou abstrata. A
espessura de nossas pálpebras era mais do que o suficiente para
isolarmo-nos um do outro, pois ao fechar os olhos afundamos cada qual em
nossos próprios abismos. E o mais pavoroso de todos os abismos é aquele
no qual a gravidade é surpreendentemente mais feroz. Esse é o abismo do
passado referente a nós, que reside nas profundezas da mente do outro.
Lá, nosso passado já não nos pertence, é território alheio e está
sujeito às leis daquelas paragens. Negando minhas pálpebras ao passado,
estatelei os olhos para o futuro... e tudo o que vi foi uma garrafa de
tequila disposta fortuitamente sobre uma mesinha repleta de cigarros.
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