DESDE SEMPRE FORA OBRIGADO A CONVIVER com os olhares de espanto dos
outros, como se fosse uma espécie de monstro, uma aberração. Era
diferente, sim, era incompleto; mas não tinha culpa da maldição que
recaíra sobre ele. Existirá uma inextricável lei universal a escolher os
indivíduos para serem tristes portadores de certas deficiências, ou se
trata apenas de uma infelicidade aleatória, de um sorteio perverso? Que
espécie de macabra ironia, que abominável senso de humor escolhe, desde o
ventre que o entretece, um ser vivo para vir ao mundo imperfeito,
incompleto, sem todas as habilidades e características físicas
necessárias? Quem, dentre as multidões que o deploram ou lhe devotam
justificado ódio ou pavor, poderia conceber as adversidades e privações a
que ele, por conta de sua estranha e solitária condição, foi submetido a
cada minuto, a cada incessante minuto de cada dia após dia após dia?
Nunca
foi capaz de discernir e apreciar as delícias da comida; sua boca (sua
boca?) desconhece os incontáveis sabores, ignora a textura dos
alimentos, é alheia às vastas combinações de ingredientes que, em sua
busca pela deleitoso pão diário, a inventividade humana foi capaz de
produzir em sua jornada. Seus olhos (seus... olhos?!) jamais
contemplaram o vertiginoso espetáculo de cores e luzes proporcionado
diariamente pelo sol quando emerge da noite, nunca vislumbraram a sutil
miríade de esfuziantes tons que explodem nas asas de um colibri em seu
vôo, nem se extasiaram nas delicadas feições da mulher amada. O perfume
das flores é completamente estranho às suas narinas, assim como jamais
ali penetraram o forte aroma do café revigorante ou o suave odor da
alfazema. Seus ouvidos desconhecem o perfeito som do riso do bebê e a
alegre algaravia matinal dos pássaros e o poderoso trovão e a estrondosa
onda chocando-se infinitamente contra o rochedo eterno.
Ninguém
infira, pela sua estranha condição, ser ele ignorante acerca da
circunstância de que nem todos os sabores são doces, nem todos os sons
são melodias, nem todas as visões, tampouco a totalidade dos odores
sejam suaves, deleitáveis ao espírito; não. Ele tem total consciência
disto. E também do fato de que mesmo as sensações mais desagradáveis
captadas pelos sentidos contribuem para forjar a têmpera dos homens; que
mais, muito mais do que as moedas acumuladas num velho baú onde ladrões
escavam e roubam, importa cobrir de riquezas o espírito, e o espírito
se alimenta através dos sentidos e nisso e por isso ele será
definitivamente pobre, eternamente pobre.
Sempre que recorda suas
tristezas passadas e antevê seu futuro-maldição-destino, estéril de
qualquer sensação, mesmo as mais comezinhas, o fel inunda sua alma.
Nestas ocasiões, de seus olhos (de seus... olhos...) irrompem escassas
lágrimas impossíveis. Negro é o horizonte para ele.
Portanto,
quando, numa noite fria e sem lua, você, sozinho, de repente se deparar
com ele naquela estrada deserta, corra e tenha medo. Sim, tenha medo e
corra para salvar sua vida. Será inútil, será em vão; assim mesmo,
corra.
Mas, antes do momento derradeiro em que o preciso aço frio
percorra sua garganta e, num só golpe, separe definitivamente sua
cabeça do restante de seu corpo, pense que o pavoroso Dullahan, o
Cavaleiro Sem Cabeça, é sanguinário e cruel e brutal e implacável;
contudo, ele também compartilha com o restante de nós a sina de trilhar
com dores seu caminho nesta terra de homens.
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