Todos sabiam que nas terras do imperador Helêus, nos últimos dias da
primavera, caía uma chuva tão torrencial, que o céu tornava-se negro
como o fumo, e os raios desciam tão furiosos que assombravam até mesmo
os mais experimentados guerreiros. Era assim fazia longos trinta anos, e
todos sabiam disso. No mesmo dia do mês, na mesma hora, exatamente há
três décadas, a mesma chuva caía, resoluta e pontual, por exatos sete
dias, até desaparecer, assim como surgira, quase como que por encanto.
O
velho imperador, imobilizado em sua cadeira, devido à sua idade,
sentia-se ainda mais melancólico nesses dias – se é que seria possível
torna-se mais lânguido do que de costume. Ele ficava ali, sobre a
sacada de seu castelo, observando a chuva lá embaixo, como se contasse
cada uma das gotas refletidas em sua Iris perdida. Havia sido assim por
todos aqueles anos...
Um dia, há muito tempo, um grande guerreiro
atravessou aquelas terras amaldiçoadas, e a sua fama e glória veio com
ele, pois todos, em todas as partes, conheciam os seus feitos e a sua
honra. Então, Helêus o chamara até o seu palácio, para cumprir, talvez, a
mais nobre missão de toda a sua vida...
O cavaleiro surgira, e ele
não era como o imperador o imaginava. Nada de grandes músculos ou de
armaduras brilhantes e espadas afiadas. Apenas um jovem envolto numa
capa preta para protegê-lo do sol e do frio, e um grande otimismo nos
olhos. Mas Helêus não tinha escolhas, e tinha de confiar a ele a grande
missão que lhe cabia.
-Tenho uma estória triste para contar-lhe, se não se importar – disse o Imperador.
-Todas as estórias me interessam – respondeu-lhe o cavaleiro.
-Pois
bem, ei-la: Há muitos anos - anos que passaram rápido demais para que
eu mesmo pudesse crer - a minha família fora escolhida para governar
estas terras. Assim, cresci aqui, como um príncipe. Só me faltava uma
princesa... E ela não tardou em chegar... Linda, como a mais bela flor, e
carinhosa, como a brisa dos montes além daqui. E tão boa quanto os
arcanjos do céu. O dia, na sua presença, ficava mais claro e colorido, e
até os pássaros cantavam com mais alegria. Reservei um dia especial
para nós dois, no lugar onde nos conhecemos, lá embaixo – apontou Helêus
de sua sacada – ali, crescia uma linda árvore, que nos presenteava com
flores o ano todo. Havia uma praça construída especialmente para ela...
Era lá que deveríamos nos encontrar. Num banco embaixo da árvore, numa
tarde, de um dia qualquer, que deveria se tornar especial, quando eu a
pedisse em casamento... Mas aconteceu que, naquele dia, um compromisso
importante, não mais importante do que ela, claro; mas ainda assim
importante, me fez atrasar um pouco além do prometido. Eu era jovem, e
tinha todo o tempo do mundo, você pode me entender...
-Sim, eu posso...
-E na tarde daquele dia, aconteceu de cair uma grande tempestade! O
que me fez pensar que ela não estaria a me esperar, e que, portanto, se
atrasaria, assim como eu. Mas eu estava enganado, ela me esperava... Foi
nesse dia que um fulminante raio caiu do céu, e partiu a bela árvore ao
meio, jogando ao ar as suas folhas, para que fossem levadas pelo
vento... e o meu amor junto com elas. Nunca mais eu a vi.
-Eu lamento...
-Não lamente cavaleiro, não foi culpa sua. Mas seja feliz, por jamais sentir algo parecido...
Os dois permaneceram calados por um tempo.
-Mas então... O que posso fazer pelo senhor? – perguntou o cavaleiro
-Daqui a sete dias começará a chover, meu jovem. Vai chover como
naquele dia. E isso é uma grande certeza! Tem sido assim desde que tudo
aconteceu, há 30 anos! Choverá por uma semana inteira, em todo este
reino, como jamais choveu em lugar algum.
-Isso é verdade?
-Sim. Por três décadas assim tem sido, sempre no mesmo dia, sempre na
mesma hora, por uma semana ininterrupta. Ninguém sabia explicar o
porquê. Até que um dia, viram uma mulher... sentada no mesmo banco em
que a minha amada me esperou um dia, antes do nefasto raio. E todos que
já a viram, afirmam não se tratar de alguém deste mundo. Você pode me
compreender?
-Um espírito? É isso que quer me dizer?
-Você é perspicaz cavaleiro. Ela está lá, e me espera até hoje, eu sei
disso... eu sinto... Os dias de chuva que a precedem carregam a mesma
tristeza daquele dia, são as lágrimas dela que descem do céu chamando
por mim. Já pedi muitos dos meus melhores cavaleiros para levarem a ela o
meu presente, e o meu pedido de perdão, mas eles não tiveram coragem o
suficiente para isso. Não posso culpá-los. Eu mesmo iria, eu desejaria
isso, mas como pode ver, a minha condição não é favorável, e não sou
mais o mesmo homem por quem ela se apaixonou... Não gostaria que ela me
visse assim... não sei se pode me entender... só um homem apaixonado
poderia...
-Desejas que eu leve para ela o seu presente, é isso?
-Sim! Mas compreenderei igualmente, assim como compreendi aos meus cavaleiros, se não quiser ir.
-Eu
o farei – Sim, ele o fará, pois também era um homem apaixonado, e o seu
grande amor ficara também para trás, por uma triste maquinação do
destino.
Helêus o chamou até um canto onde descansava uma
magnífica prateleira, e de lá, retirou um pequeno objeto. Era uma
caixinha branca, provavelmente entalhada a mão, numa figura que lembrava
uma tartaruga. Ele a colocou nas mãos do cavaleiro...
-Este era
o meu presente, caso aceite me ajudar. Leve-o e o entregue a ela, eu o
fiz com as minhas próprias mãos. Desde já lhe sou grato, valoroso rapaz,
quer aceite este encargo ou não.
-Então é só isso que preciso fazer?
-Sim. Se o fizer, deve partir em sete dias, quando começará a
chover. Você descerá até o jardim, onde se encontra a árvore e o banco, e
onde os meus homens afirmam vê-la.
-Então em sete dias partirei, e antes que o chão esteja completamente molhado, entregarei ao seu amor o seu presente!
Helêus
chorou, e beijou as mãos o cavaleiro com profunda gratidão. - Só não
conte a ela que me tornei um homem doente e feio, diferente do que ela
conheceu...
Estórias de fantasmas não faziam bem aos ouvidos de
ninguém daquelas terras. Por ali, não era supertição ou tolices
acreditar em coisas assim. Pois que os espíritos andavam livres e não se
ocultavam tanto dos homens. E muitas dessas almas ainda trazia um
coração negro cravado em seus espíritos, como uma noite sem estrelas.
E
exatamente, como previsto por Helêus, na manhã do sétimo dia, a chuva
caiu. Viera junto com os primeiros raios de sol. O dia se tornou sombrio
e triste, os animais se escondiam da água fria daquela manhã, e as
pessoas evitavam sair de suas casas. O tapete branco de nuvens, que
forrava o grande palácio sobre a montanha, ficou escuro e revolto. O
cavaleiro trajou-se com uma longa capa com capuz, o qual jogou sobre a
cabeça para proteger-lhe da tormenta. Sob olhares curiosos desceu a
grande escadaria que levava ao jardim. Chovia forte, e as águas
pesaram-lhe nos ombros, a sua visão tornou-se turva, e só enxergava
alguns metros a sua frente. A bruma embaçava o caminho que ia descendo, e
ao atravessar as nuvens que jaziam sob a montanha, adentrou num
ambiente magnífico e fantástico! A água caía feito prata, e o verde
intenso das folhas parecia iluminado por uma luz diferente, e o mármore
das colunas e das amuradas lembrava a lousa fina. No fim da escada,
abria-se uma grande praça, largada pelo tempo e pelos homens, de plantas
murchas e ervas daninhas. Um pouco a frente, no meio do complexo
arquitetônico, depois da grande e pesada cortina de água, um vulto
escuro e inerte: uma grande árvore, de galhos tortuosos e secos,
portadora de uma monstruosa rachadura que lhe descia da copa até as
raízes. Parecia curvar-se sobre o peso de si própria, mas ainda insistia
em ficar de pé. Ela já fora uma árvore muito bela, digna de figurar no
centro de tão linda praça, mas o raio a destroçou naquele dia, como
fizera com Helêus... As luzes dos postes ao redor estavam acesas. Apesar
de ser manhã, o dia parecia estar no fim de tarde e começo da noite...
Não havia nada, nem ninguém ali. Apenas o jovem cavaleiro de pé,
observando o banco vazio onde as gotas da chuva se arrebentavam após a
queda. Ele ouvia apenas o batuque incessante da chuva sobre a sua capa, e
o escorrer da água em seu rosto, feito lágrimas. Se ele chorou ali,
naquele momento, assaltado quiçá, por lembranças doloridas, jamais
saberei. Ele ficou ali, esperando de pé, por um tempo relativamente
longo. Até ter a certeza de que nada iria acontecer, e de que tudo não
passava de alucinação das mentes férteis dos que passavam por ali,
embalados pelos acontecimentos que outrora amofinaram aquele local.
Percebendo então, que não havia mais sentido esperar, ele se retirou,
tomando o seu caminho pra casa. Mas tão logo se virou e uma voz o chamou
de volta:
-Ei, por favor... você!... Serias tu por acaso um mensageiro?
O cavaleiro voltou-se imediatamente em direção ao pequeno banco de pedra cravado no jardim:
Diante dele, sentada naquele velho banco quebrado, uma jovem mulher
de face pálida e triste o observava. Estava coberta por um vestido
branco, e uma espécie de chapéu que lhe cobria a cabeça e só lhe
revelava o seu rosto. E não obstante chovesse muito, ela lhe aparecia
completamente seca:
-Sim... eu sou... – respondeu o cavaleiro, tirando de sua cabeça o capuz que o protegia da chuva, completamente aturdido.
-Então, isso quer dizer que ele não virá... refiro-me ao meu
amor...Eu imaginei... Já o estou esperando faz horas... Mas, não me
importo de ficar um pouco mais, se ele tiver de se atrasar... O que ele
disse? Se atrasará?! Ou por acaso não virá mais?... – Perguntou aflita.
-Sim ele virá... quero dizer... ele gostaria de vir... – respondeu.
-Então por que não veio? Diga-me?! O que o impede? – disse ela,
levantando-se - O que pode estar acontecendo? Por acaso ele não me ama
mais?! Saberia me dizer, jovem mensageiro?!
-Sim ele a ama,
senhorita!... E posso dizer que a ama mais do que a própria vida...
porém, o que o impede de vir não tem relação com os sentimentos dele por
você.
-Como podes saber, se és apenas um simples mensageiro?
-Mesmo um simples mensageiro conhece o amor, minha dama. E os olhos de um homem, contam muito sobre ele...
-E o que vê nos olhos dele? – perguntou a aparição.
-Que ele a ama muito. – respondeu-lhe
Ela pareceu sorrir:
-Que mensagem traz pra mim, nobre mensageiro?
-Eu não trago uma mensagem, trago um presente, o qual ele muito recomendou.
-Um presente?!
-Sim. E ele mesmo o fez, com as próprias mãos – disse-lhe o
cavaleiro, entregando-lhe a pequena caixa. Ela a trouxe com carinho
junto ao peito. Quando a abriu, revelou-se um singelo anel dourado, onde
repousava uma diminuta pedra azul, cuidadosamente trabalhada. Era um
anel de noivado, feito com as próprias mãos, e coisas feitas a mão
naquele reino, tinham um valor imensurável.
A jovem suspirou profundamente... ela colocou o anel com carinho no dedo, e sorriu:
-Lembro-me de quando encontramos esta pedra... no riacho... lá embaixo. Agora é a pedra mais preciosa do mundo, para mim.
A chuva cessou instantaneamente. O sorriso dela abriu o tempo, e com
o sol, revelou-se a sua verdadeira beleza. Agora, travestia um épico
vestido azul claro, onde repousavam gotas de orvalho, e os seus cabelos
amarelos, presos em cima por um belo arco prateado, desceu longo até a
cintura. A jovem aproximou-se do cavaleiro, com toda a beleza espiritual
que ela trazia, tão palpável e sólida quanto se viva estivesse. Pegou
então na sua mão, e beijou-o no rosto. Estava radiante e grata.
-Obrigada, jovem mensageiro... O que trouxestes até mim hoje, não tem
preço! Espero que um dia, eu possa pagá-lo pelo que fez por mim, e pelo
meu doce príncipe... Diga a Helêus que o amo, e que esperarei por ele,
como ele esperou por mim. E diga também a ele, que não se lamentes mais,
pois nosso amor foi apenas adiado. Ele era tão grande, que não cabia
neste mundo... Assim como o amor que você carrega, também não cabe...
A jovem caminhou em direção ao desfiladeiro da montanha, mas o chão
não lhe fez falta. Flutuando em sua glória, acenou uma última vez para o
cavaleiro, e disse uma última coisa:
-Diga a Helêus, que
embora o seu corpo esteja velho, a sua alma não envelheceu. E foi isso
que eu sempre amei nele, a sua alma!
Ela desapareceu então. No ar, por uns breves momentos, ficou o fraco brilho azul do anel que ela levou no dedo.
O
cavaleiro então suspirou fundo, como se ele mesmo tirasse um grande
peso de sobre os ombros. O sol brilhava e os pássaros cantavam, e o
guerreiro tirou de si a pesada capa de chuva que o cobria. Deixou-se
perder o olhar na imensidão do horizonte a frente de si, como se
quisesse vislumbrar os portões do infinito, brevemente.
Sorriu, penalizando a si mesmo, e voltou-se para as escadas, o caminho o
esperava. Viu sobre o banco um pequeno ramalhete de flores. Eram rosas,
da mais linda espécie. O vento espalhou o seu perfume no ambiente, e o
cavaleiro lembrou-se do seu amor de outrora, levada também pelas
maquinações do destino. O nome dela era Rosalinda. E foi a última vez
que o vi chorar.
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