Seu crime? Uma paixão.
Sua pena? Uma maldição.
Era mais um
setembro quando tropas de mulas chegavam à vila trazendo em seus cestos e
embornais toda sorte de encomendas e viveres para abastecer as casas de
comércio, armarinhos e boticas do arraial.
Assim que os tropeiros
apeavam eram cercados por dúzias de negrinhos escravos, bem como vários
outros meninos e meninas, moços e moças e até os mais velhos, todos
ávidos para saber das novidades trazidas das terras de além das
montanhas das Minas Gerais.
Mas não só mantimentos chegavam com as
mulas. Aproveitando a rota da tropa todo tipo de homem chegava naquela
região: aventureiros a caça de ouro, agentes da Coroa em busca de
impostos para o Rei ou até mesmo criminosos procurando refúgio,
acontecia de muitos clérigos também se aventurarem nas trilhas dos
tropeiros, usando-as como rota para chegarem até as almas dos cristãos
espalhados naquele pedaço da Colônia.
Era o caso de Inácio, jovem
padre que chegava para substituir o velho sacerdote da paroquia local.
Inácio estava feliz por finalmente ter terminado a jornada mais longa
que jamais havia feito, pois até então não conhecia mais do mundo que
não fosse o pequeno pedaço do vale do Alentejo em Portugal, região onde
fora criado e educado na santa doutrina da Igreja Católica e onde fora
prometido por sua mãe para ser servo do bom nome do Senhor.
E agora
ele se encontrava ali, a léguas e léguas de seu mundo e em seu coração
batia o desejo de pregar os ensinamentos de Cristo ao fiel povo da
Colônia.
Assim ele apeou de sua montaria e pisou com suas sandálias
as ruas de pedra indo em direção a imponente igreja construída através
dos anos pelas mãos negras de legiões de escravos. E neste momento,
quando seguia para cumprir seu destino como discípulo de Deus, foi que a
tentação e o pecado surgiram em sua frente e decidiram seu destino para
sempre.
Do meio da algazarra de muares ela apareceu, sua visão foi
como a de um anjo. Era bela, a mais bela jamais vista por ele, seu nome
era Maria do Rosário, jovem moça das redondezas que encantava a todos os
viajantes com seu corpo de donzela e sua face de grande beleza. Naquele
momento o coração de Inácio bateu forte e ele estacou frente aquele ser
produzido por Deus, ou pelo Diabo.
E Maria do Rosário, mesmo
acostumada com a reação dos viajantes a sua presença, também se
surpreendeu com aquele moço, pois ele não era um viajante comum, trazia
no corpo as vestes de um homem santo. Assim, quando percebeu ser
observada por ele, sua face branca se ruborizou e ela desviou o olhar.
Inácio, envergonhado pela reação de ter sido flagrado pela jovem, criou coragem e se desculpou pela indelicadeza:
-
Me perdoe a indelicadeza – falou ele – estou há muito na estrada,
acostumado a lidar com homens rudes e a visão de sinhazinha é como um
bálsamo de Deus para ombros cansados.
Maria do Rosário riu por dentro, não estava acostumada com este tipo de galanteio:
-
Por tuas vestes vê-se logo que és um homem de Deus, mas há de concordar
que teu discurso destoa muito daquele que se esperaria de um santo.
Agora foi Inácio quem se viu ruborizado:
-
Mas uma vez peço-lhe perdão sinhazinha, não era minha intenção ser
indelicado. Meu nome é Inácio, sou o padre enviado para esta localidade.
Posso saber tua graça?
- Me chamo Maria, Maria do Rosário. E
perdoo-te só por que és um padre, apesar de não se portar como um. Bem
sei que padre Tiago deve estar lhe esperando na igreja, pois vá lá e
confesse teu pecado, o de se apresentar assim a uma moça. Agora, já que
és um sacerdote, eu peço tua benção e espero ver vossa senhoria mais
tarde na celebração.
Maria do Rosário, num ato ao mesmo de tempo de
respeito e provocação, pegou na mão do jovem padre e a beijou deixando
Inácio sentir o calor que as mulheres provocam nos homens. Depois disso
ela partiu.
Inácio seguiu então para a igreja e percebeu que de suas
portas um velho de batina o observava, aquele era padre Tiago, que
assistiu em silêncio toda cena entre os jovens.
- Sua benção padre... – começou Inácio.
Mas não continuou, padre Tiago o interrompeu:
- Vejo que já conheceu o rebanho local – disse ele – e vejo também que o Diabo já lhe infectou a alma e o coração padre Inácio.
- Fala da jovem? Uma simples rapariga que veio me recepcionar, aliás, a única a fazê-lo.
-
Não estamos na Metrópole jovem padre, cuidado com as moças daqui, não
estão acostumadas a serem tratadas com bons modos. E são donas de uma
beleza não vista em terras europeias, acredite em mim quando digo que
são cria do próprio demônio, armadilhas para enganar os incautos e
desvia-los dos caminhos do Senhor. Agora entre e prepare-se para
celebrar sua primeira missa, nos fundos da igreja fica a casa paroquial,
encontrará comida e roupas limpas lá. Vejo o senhor mais tarde, passar
bem.
O velho padre saiu e Inácio percebeu que não poderia contar muito com ele.
Resignado ele seguiu para casa paroquial onde se lavou, se trocou, comeu e dormiu um pouco.
Acordou
com os sinos da igreja bradando. Olhando pela janela percebeu o Sol se
deitando por sobre as montanhas. O tremendo cansaço de todos aqueles
dias de viagem havia lhe pregado uma peça e ele não conseguiu acordar a
tempo da missa, e padre Tiago nem ao menos buscou por ele!
Apressado
ele se arrumou e seguiu para a igreja, lá chegando encontrou todos os
bancos tomados pela elite local disposta nas primeiras filas, no meio da
igreja havia moradores mais humildes, no fundo mineiros e por último,
de pé, alguns escravos.
Padre Tiago estava sentado junto ao altar e lançou lhe um olhar de reprovação:
- Deus a tudo observa jovem Inácio – disse ele – agora comece a homilia.
Antes
de começar Inácio se apresentou aos presentes, corria o olhar por
todos, mas se deteve frente a uma visão: lá estava ela, mesmo com o
rosto coberto por um véu a reconheceu, era Maria do Rosário. Inácio
vacilou um pouco em seu discurso, foi breve, porém nada que não
escapasse ao olhar inquieto de padre Tiago que a tudo observava sentado
ao lado do púlpito.
A celebração corria sem problemas, Inácio
dominava o latim com a maestria de poucos e entoava cantos de grande
beleza sacra. Chegou então o ápice da cerimônia católica, a Santa Ceia, e
o povo fez fila para receber o corpo de Cristo e, mesmo que o próprio
Jesus considerasse todos os homens iguais perante Deus, ali imperava a
lei da importância e os poderosos locais eram os primeiros a receber a
hóstia sagrada.
Um a um recebiam das mãos de Inácio o pequeno pedaço
de pão ázimo, ele depositava nas mãos dos fieis, em outros colocava
diretamente na boca. Até que veio a vez de Maria do Rosário que mais uma
vez demonstrando ousadia levantou o véu e abriu a boca para que Inácio
depositasse ali o alimento santo, e ele o fez e de novo sentiu os lábios
da moça roçarem sua mão, mais uma vez sua face ruborizou. Maria do
Rosário o encarou um pouco e seus olhos castanhos brilharam para ele.
Ao lado, padre Tiago observava tudo, impassível como uma ave de rapina.
Aquela
noite Inácio não dormiu. Sentiu a febre que acomete o homem quando
inoculado pelo veneno de uma mulher. Suava frio, revirava-se na cama.
Sentiu a vida pulsar entre suas pernas e por fim, não suportando mais a
força da tentação, entregou-se ao pecado solitário derramando fluídos
por sobre o lençol enquanto pensava nos olhos, nos lábios e no corpo de
Maria do Rosário. Depois chorou, se ajoelhou ao lado da cama e rezou seu
terço em busca de perdão e arrependimento. Porém a cada dia que
passava, a cada missa celebrada, lá estava ela e o pecado noturno se
repetia noite após noite. Pelos cantos, como uma sombra perversa, padre
Tiago sempre estava à espreita de tudo.
- Padre Inácio – disse padre Tiago certo dia – lembre-se, Deus tudo observa e pune os erros dos homens.
- Porque diz isto padre? – retrucou Inácio.
- O Diabo padre Inácio, o diabo muitas vezes usa as jovens e seus encantos. Cuidado, não entregarei minha igreja a um pecador.
-
Sua igreja padre Tiago? Pois digo que está igreja não é tua nem minha,
nem do povo que reza protegido por suas paredes, antes é de Nosso Senhor
Jesus Cristo, ninguém mais.
- Aqui eu tenho mais poder que Cristo padre Inácio, lembre-se disso.
- Isto sim é heresia padre Tiago, se algo assim chega-se aos ouvidos da Cúria o senhor seria excomungado.
- Não temo a excomunhão, mas acho que o senhor deveria temer a maldição. Agora passar bem, tenho de ir ter com os meus.
Depois
desde episódio eles mal se falaram novamente. Inácio sentia que Tiago
era um homem perigoso e deveria ser denunciado ao episcopado. Por outro
lado não conseguia tirar a jovem Maria do Rosário da cabeça. O que não
sabia era que a jovem também brigava com sua consciência e pela primeira
vez se percebia uma mulher e não uma menina, frequentava mais a igreja,
a ponto de as pessoas já começarem a comentar pelas ruas, ela não
ligava, queria ficar perto de Inácio mais tempo.
E Inácio também
tornou-se ousado, fazia visitas frequentes a casa da moça com a desculpa
de pregar os evangelhos. Indiferentes a tudo e a todos eles faziam
caminhadas sozinhos, conversavam na praça e trocavam risos e
confidencias. Seria um casal normal, se ela não fosse uma moça solteira e
ele um sacerdote da Igreja.
Desafiando todos, eles continuaram a se
encontrar e certa ocasião, estando a sós na casa paroquial, tiveram uma
conversa definitiva.
- Inácio – disse Maria do Rosário – toda a vila está a comentar sobre nós dois.
- Incomoda-te os boatos alheios?
- E não deveriam? Tu tens uma missão a cumprir, não quero ser um obstáculo em teu sacerdócio.
- Pois abandonaria meu sacerdócio por mais tempo junto a vos mi ce.
- Que queres dizer? – ela perguntou vermelha.
-
Que não há nada neste mundo que desejo mais do que a senhora, é pela
senhora que rezo a noite, é pela senhora que meu sono não vem e é pela
senhora que meu corpo queima em febre. Amo-te Maria do Rosário e não
creio que o amor, sentimento ensinado pelo próprio Cristo, seja pecado.
- Então vos mi ce também o sente? Mas irão nos perseguir, nunca irão nos aceitar.
-
Pois fujamos os dois então! Na próxima madrugada uma tropa partirá da
vila, venha comigo Maria do Rosário, rogo a Deus que venha comigo!
Como
estavam sós eles foram ainda mais além e suas bocas se tocaram
ignorando o lugar santo onde estavam. Mas eles só pensavam estar a sós,
na penumbra, como sempre, estava padre Tiago, disposto a impedir a união
dos jovens.
A noite chegou, uma noite sem lua e silenciosa, apenas o
rouco agouro das corujas preenchia o ar, no estábulo das mulas Inácio
esperava por sua amada, já havia abandonado o hábito, vestia-se como um
homem comum.
Não demorou muito ela apareceu. Trajava vestes simples como a dele, mas sua beleza não diminuía nem um pouco por isso.
- Inácio – disse ela – ah meu amor, tenho tanto medo.
- Não temas meu amor, ninguém vai nos separar agora.
Sob
o olhar apático das mulas os dois enamorados se beijaram mais uma vez.
Um beijo longo e ardente, interrompido apenas por uma voz vinda das
trevas:
- Nem a morte é punição grande o suficiente para tamanho pecado! – disse padre Tiago surgindo entre os animais.
- Deixe-nos! – gritou Inácio – não tenho mais nada contigo ou com “tua” igreja, como o senhor mesmo disse.
-
Não quero nada de ti – disse padre Tiago – não passas de um pecador e
teus crimes serão punidos por Deus e pelo diabo no momento certo. Negou a
santa igreja, e o preço dos filhos que traem as mães é o esquecimento e
o abandono. Agora quanto a esta sinhá, essa cria do demônio, ela sim
deve pagar pelo crime de tentar os santos homens da igreja!
- Deixe-a, juro que se a tocar és um homem morto!
- Além da fornicação também irás matar Inácio? Não já pecou o suficiente?
Maria do Rosário falou pela primeira vez:
- Amar não é pecado, foi o que Jesus nos ensinou...
-
Cala-te demônio – berrou padre Tiago – não tente corromper meus
ouvidos, já há muito tempo meu corpo não tem mais desejo pela carne de
mulher alguma. Mas tu já pecaste, e por teu pecado serás maldita!
Padre Tiago mostrou então um machado que trazia escondido por sob a batina.
- Afaste-se de nós! – gritou Inácio.
Padre
Tiago estava enlouquecido, partiu armado com o machado para cima dos
dois jovens. Inácio se colocou a frente para proteger Maria do Rosário,
mas sua coragem custou caro, ele recebeu o primeiro golpe, a lâmina do
machado entrou fundo em seu peito e o sangue escorreu pelo estábulo.
- Nãããoooo! – gritou Maria do Rosário se ajoelhando para segurar o corpo de Inácio enquanto este caia.
- Seu maldito! – ela gritou.
Padre Tiago apenas sorriu.
- Não morra ainda padre Inácio – disse ele – ainda não completei minha intenção.
Inácio, apesar do grave ferimento e da morte iminente, ainda mantinha os olhos abertos.
- Mata-me de uma vez! – pediu Maria do Rosário.
- Matar-te? – falou padre Tiago – não, não merece a morte, merece castigo muito pior.
Padre
Tiago mais uma vez levantou o machado e num único e certeiro golpe
decapitou a bela jovem. Inácio, no fim de suas forças, convalesceu de
dor.
- Agora Inácio, verás a pena para o crime cometido por esta jovem.
Tiago pegou a cabeça da jovem e se dirigiu até uma das mulas próximas.
-
Observe pecador, não servimos ao mesmo Senhor. Tenho outro mestre, um
mestre sábio e perverso, e ele me concede poderes que nem imagina!
Inácio
puxou então um pequeno punhal e com ele golpeou uma das mulas, o animal
relinchou de dor e Tiago banhou a cabeça de Maria do Rosário com o
sangue que escorria da garganta do quadrúpede. Depois jogou novamente a
cabeça junto ao corpo e uma bizarra transformação começou a ocorrer.
A
cabeça de Maria do Rosário começou a se queimar e seu corpo a se
contorcer. No limite de suas forças Inácio via tudo, viu quando o corpo
de sua amada ganhava contornos animalescos e ficava de pé em quatro
patas, o pelo tomava conta de tudo. A sua volta os animais corriam
assustados e o que restou era semelhante a eles em tudo, uma mula, porém
faltava-lhe a cabeça e no lugar saia apenas labaredas de fogo.
A
criatura tomada pelo medo, pela fúria e pela agonia, desembestou pelas
ruas de pedra levando aflição a todos que cruzavam seu caminho. Inácio
vivia seus últimos momentos de vida e antes que morresse padre Tiago
ainda o amaldiçoou:
- Que teu espirito imundo nunca descanse Inácio!
Assim
morreu Inácio, mas sua alma ainda vaga pelo mundo. Dizem que está em
busca de sua amada até os dias de hoje, conhecida por todos como uma
besta denominada simplesmente de a “Mula sem Cabeça”, uma mulher maldita
que teve este destino como punição pelo simples ato de se enamorar por
um padre.
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