Estela estava estática, paralisada com o bastão de giz branco na mão e
com as lentes dos óculos quase tocando o quadro negro. Às suas costas, o
vozerio irritante concorria com a confusão pulsante da própria mente. A
despeito do sopro gelado do barulhento condicionador de ar, filetes de
um suor ainda mais frio rolavam pelas têmporas aflitas da mulher. Não
tardou para que a irritação se traduzisse na mão espalmada contra o
objeto de trabalho. As unhas curvas deslizaram sobre o verde escuro da
madeira arrancando gritos desesperados da peça. Ela não estava certa se
era atenção o que queria, isso ainda não estava claro em seus
pensamentos. No entanto, de qualquer forma, o gesto intempestivo fez com
que todos os rostos se voltassem em sua direção, numa comunhão de mudez
e estarrecimento.
A professora sempre fora uma pessoa reservada,
pelo menos essa era a visão que tinham dela. Porém, o que os estudantes
do supletivo ignoravam era que tal recato respondia muito mais pelo peso
do fardo que carregava do que propriamente por ações meticulosamente
calculadas pela discrição. Estela era um vulcão prestes a explodir. Ela
já não suportava mais a vida que levava.
Embora fosse vista como uma
bela mulher, de corpo esguio semelhante ao de uma modelo de passarela,
complementado por um rosto de linhas finas e simétricas, tendo o
profundo azul dos olhos quase sempre protegido pelas lentes reflexivas
presas por uma armação dourada. Apesar de tudo isso, não era assim que
se sentia. E, definitivamente, essa não era ela.
Estela era seca.
Tinha o corpo ressequido, embora não parecesse. Sua alma, se é que ainda
possuía uma, se mostrava tão negra quanto o rancor e o ódio que trazia
no coração. Em seu peito, ela nutria o desejo de arrancar a própria pele
com as longas unhas que, naquele momento, deixavam cicatrizes profundas
na madeira. Mas ela não podia. Sabia que não poderia fazer isso. Só
havia uma saída para os problemas que a dominavam, e não era através de
um ato de automutilação.
Ao se virarem para os alunos, os olhos da
professora vaguearam por cada recanto da sala. Sem interesse. Sem
propósito ou perspectiva. Apenas como uma nuvem que passeia sem
pretensões pelo céu. Um manto negro e ameaçador. Ao pensar nisso, deixou
escapar um suspiro. Era aquela época do mês. Um período tão difícil que
seria impossível descrevê-lo, ainda que quisesse fazer isso.
A
desolação do seu pesar parou quando seu olhar se deparou com o da menina
que a fitava fixamente. Embora sua situação não permitisse grandes
análises individuais das dezenas de rostos que encarava ao longo dos
anos nos cursos que ministrava nas escolas públicas, Estela sabia muito
bem quem era aquela garota. Sabia seu nome. Nutria, em segredo, um
especial interesse nela, desde que descobrira, por acaso, mais detalhes
sobre sua vida.
Clarisse. Esse era o nome da aluna. Era a estudante
mais nova daquela classe noturna. Completara dezoito anos no dia
anterior, uma data muito especial e desejada.
Mesmo depois de se
deparar com as indicações que tanto buscara, objetivo maior que a fez se
tornar professora, Estela não tinha, até aquele momento, pretensões de
investir numa tentativa de aproximação, ela não achava que possuía
aptidões para relações interpessoais. Na verdade, ela ansiava e, ao
mesmo tempo, temia por aquele momento. E, na hora exata, agiria de forma
mais direta e impulsiva. Esse era o planejado. Entretanto, o olhar
lançado pela garota parecia lhe permitir, ou melhor, parecia lhe
desafiar a um contato fora do âmbito escolar.
A eternidade daquele
momento se quebrou com o grito estridente da sirene. A face fria do
relógio marcava vinte e três horas. Último período. Final das aulas
naquela quinta-feira.
Os alunos, pessoas que tentavam recuperar o
tempo perdido, pais e mães ansiosos por voltar para casa, gente que
pretendia de alguma forma melhorar um pouco na vida, se dispersavam
rapidamente pelos corredores. Clarisse deixou a sala de aula por último,
porém, antes de cruzar o vão da porta, lançou um último olhar para a
professora, num claro convite mudo.
Estela, por alguns instantes, se
manteve impávida, torcendo os nós dos longos dedos, enquanto uma nuvem
de pó de giz descia lenta e branca até o chão. A porta se fechou
tirando-a do transe e, ao mesmo tempo, fazendo brotar um sorriso
dissimulado em seus lábios.
A professora recolheu rapidamente os
pertences e saiu em disparada pelas dependências do prédio. Pretendia
vencer rapidamente as escadarias dos três andares do imóvel. Ela trazia o
conforto de saber que mesmo se desencontrando da garota, ainda sabia
onde ela morava. Isso trazia um pouco de alento ao seu coração, embora a
mínima chance de perdê-la trouxesse uma dor muito mais intensa do que
qualquer convicção de sucesso.
Chegando ao pátio do estacionamento,
mais de quinze minutos já haviam se passado desde o toque da sineta. Ela
girou a chave na ignição e, pela janela aberta, olhou para os céus como
se pedisse sorte. Deu a partida e seguiu pelas vias estreitas que
conduziam ao anonimato das ruas.
Com as mãos trêmulas ao volante,
Estela circundava o quarteirão em busca daquela que colocaria um fim na
sua vida de danações. Um quarteirão levou a uma quadra e daí para as
saídas do bairro. Vinte minutos mais. Nada de Clarisse. Nada de sorte
lhe sorrindo. Decidida, se preparava para seguir rumo à residência da
garota. O semáforo à frente lhe oferecia a face avermelhada, mas ela não
pensava em reduzir a marcha, mas o veículo logo adiante tratou de
cortar-lhe as pretensões. E foi aí que o destino e a sorte finalmente
pareceram lhe estender a mão.
Clarisse descia do automóvel parado no
sinal, e caminhava com um sorriso aberto em sua direção. Uma pontada
lancinante pareceu lhe atingir o estômago, de uma forma literal por
assim dizer. Estela tentou conter um grito, o som saiu entrecortado.
A
garota parou diante da porta do carona e, sem qualquer cerimônia, se
sentou ao lado da professora no exato momento em que o aparelho luminoso
mudava de tom.
Estela não conseguia esconder o nervosismo. Não foi
difícil se lembrar dela mesma naquela situação. Dezoito anos recém
completados, a vida toda pela frente. A presença de um magnetismo contra
o qual não se pode lutar. A dor. O desejo. A danação. Não era como as
pessoas pensavam. Não havia grandes mudanças físicas. A mudança era
muito mais sutil, quase imperceptível aos olhos despreparados do mundo. O
verdadeiro clamor estava no interior. Uma torrente selvagem e impiedosa
que só se volta para uma direção. E ela sentia que estava próxima. Era
possível perceber pelo aroma espalhado pelo ar, pelas pontadas secas no
ventre, pela aceleração do coração.
Clarisse pousou a mão no ombro da
professora. Um sorriso doce parecia lhe oferecer conforto, mas Estela
queria mais, muito mais do que a garota talvez estivesse disposta a
oferecer. Quanta ingenuidade, pensou. Se deixar levar por uma improvável
situação. Seria possível até sentir pena, se não fosse a urgência da
situação.
O veículo seguiu pelas ruas por cerca de dez minutos.
Chegaram a um descampado. De lá, do alto, era possível enxergar as luzes
da cidade. Um local reservado. Escondido. Perfeito para as atividades
pouco regulares que estavam prestes a acontecer.
Clarisse se
aproximou mais. Chegou tão perto ao ponto de Estela perceber as notas
delicadas da menta que revestia seu hálito. A professora recuou por um
instante. Olhou para fora, para o alto. Saiu do carro ficando ao alcance
das luzes dos faróis. Um formigamento irrefreável, incômodo,
perturbador dominava-lhe por completo. Ela ardia, queimava numa súbita
febre estritamente interna, algo que não chegava à superfície encharcada
de sua epiderme. Permanecer vestida parecia impossível. As roupas foram
largadas ao chão de barro. As linhas sinuosas e alvas do corpo da
mulher ficavam evidentes sob a luz, que naquele momento, respondia
apenas pelo luar, visto que Clarisse, ao descer do automóvel, tratara de
desligar os olhos artificiais, talvez para preservar ainda mais o
segredo.
A quinta-feira já havia ficado para trás. A garota lançava
olhares desejosos para o que via. A mulher, que ela conhecia como
professora, retribuía o olhar de cobiça. No entanto, o que ela desejava
passava longe do que a situação parecia sugerir. Ela só pensava num meio
de deixar para sempre o fardo que há anos carregava. A aparência que
ostentava não era a dela, não a verdadeira, a Estela real há muito
estava enterrada no tempo, para sempre com dezoito anos. O corpo, que
naquele momento se mostrava ali, por completo, não passava de um
sortilégio, um embuste para servir de atrativo aos seus próprios
interesses, algo que parecia funcionar muito bem naquele momento.
Para
quebrar de uma vez por todas o enlace maligno que a faz, todo mês,
percorrer as ruas em busca de conforto para as dores lancinantes
lançadas pela incurável fome, seria preciso provar a carne de uma jovem
cujos dezoito anos fossem preenchidos na primeira lua cheia da quaresma,
como ela mesma fora um dia. Assim, o fardo seria transferido
imediatamente.
Não havia pelos espessos em seu corpo, tampouco gritos
e osso retorcidos. O folclore acerca de sua figura passava longe da
verdade. A fome, essa sim era real e presente.
Clarisse caminhou à
frente com passes vacilantes. Seus braços buscavam a figura que
respondia muito mais para uma fera do que para a professora que julgava
conhecer.
O abraço se mostrou muito mais intenso do que ambas
poderiam supor. As garras curvas do demônio buscaram as costelas da
garota, rompendo tecidos de algodão e pele. O sangue pecaminoso escorria
farto, pingava no chão. Os dentes aguçados da mulher buscavam a maciez
da omoplata alheia, enquanto a garota olhava para o céu e sorria. O
sorriso de Clarisse superava os limites da felicidade. Era impossível
descrever o quanto exultante estava. Finalmente conseguia realizar
aquilo que tanto ansiava. A lâmina de prata repousava, naquele momento,
suave e serena na nuca da professora. O líquido negro e viscoso
deslizava pelas costas nuas de Estela, que sem nada entender, sentia a
força deixar seu corpo. Dois anos antes, o namorado de Clarisse teve a
infelicidade de cruzar o caminho da fera. A busca pela vingança se
mostrou tão longa e meticulosa quanto a própria procura realizada pela
professora, a qual, prostrada e vencida, lançava pela última vez o olhar
suplicante para a lua, que do alto, amarela e redonda, apenas lhe
oferecia um sorriso de indiferença.
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