Yannet e Gwaltwent andavam por uma terra estranha. Não fazia muito tempo
que haviam atravessado o mar e chegado a Iwerddon. A língua do povo era
estranha, mas o druida mais velho a falava bem, e o mais jovem estava
aprendendo seus rudimentos. Os modos do povo eram ainda mais estranhos,
pois se pareciam muito com os britanos, mas de uma forma mais rústica e
selvagem; em mais de um mês andando por essa ilha verde eles ainda não
haviam encontrado nenhuma cidade, ou pelo menos algo que eles
conseguissem comparar a Londinium, Eburacum, Caer Edin ou Caerdydd.
Encontraram habitações, isso era certo, mas espalhadas de forma
espaçada, sem uma ordem que fizesse sentido a ele. Yannet explicara que
Iwerddon não havia sido conquistada pelos romanos, e por isso seu povo
vivia em um estado muito mais próximo do que era o mundo da Brittania
antiga, ainda com as leis de seus chefes e reis tribais. Gwaltwent
gostaria de acreditar nisso, mas não conseguia ignorar a presença de
capelas cristãs próximas aos povoados; a cruz ali era uma aquisição
recente, mas se assentava rápido. Ainda assim, caminhava com eles um
homem chamado Fínd, um druida local. Ele conversava seriamente com
Yannet, e embora Gwaltwent não compreendesse a conversa, sabia que o
assunto era sobre como as coisas vinham se transformando. Pararam,
então, ao lado de um arbusto de espinheiro. E o homem disse algo curto,
ao qual Yannet acenou com a cabeça; ele então olhou para espinheiro com
reverência, fechou os olhos e sentiu o aroma de suas folhas, a textura
de seus espinhos. Parou assim por um momento, e então pegou um pequeno
alforje de sua bolsa, apanhou um punhado de sementes e as derramou
delicadamente ao redor das raízes. As aves viriam e consumiriam essas
sementes, mas fazia parte da prática da oferenda feita. Yannet se virou
para Gwaltwent:
- Esse espinheiro é uma árvore especial. É dito que, nas noites próximas ao Samonios, pode-se chegar ao Andumnos por ele.
O discípulo pensou por um tempo, e finalmente disse algo:
-
Mas o senhor não acredita nisso, não é? Afinal, todas as lendas nos
dizem que só chegamos às costas do Outro Mundo através do mar, navegando
além das nove ondas. Isso está tanto nas lendas da Brittania quanto nas
de Iwerddon.
O druida local riu, uma risada aberta, sarcástica,
evocando puro desprezo; o rosto de Yannet ficou vermelho, e ele viu a
mão do velho se fechando firmemente ao redor do cajado. Ao invés disso,
ele suspirou e disse ao outro druida algo na língua local, e se sentou
sobre uma pedra próxima. Fínd, o druida de Iwerddon, virou-se para
Gwaltwent, e falou claramente na língua britânica, ainda que com uma boa
dose de sotaque e um certo arcaísmo na fala. Nunca ocorrera a Gwaltwent
que o homem pudesse falar a sua língua, assim como Yannet falava a
dele, mas agora fazia sentido que ele não só falasse britânico, mas
também tivesse aprendido uma versão antiga da língua, que agora se
transformava nos tempos de crise da ilha da Brittania.
-
Waltwentos é nome para você, não? Meu nome você conhece. E Yannet é
instrutor para você. Pobres tempos para os druidas de Albú, com poucos
mestres e poucos alunos. Que o remorso não esteja sobre ti, garoto; o
mesmo ocorre em Eríu agora. Novos tempos, novas regras, mas apenas um
novo deus agora. Tristes os tempos em que vivemos.
O aprendiz de
druida balançou a cabeça afirmativamente, apesar de estranhar a
pronúncia do homem a respeito do seu nome; o homem continuou:
- Pois bem, jovem; quero que me diga que conhecimento tem sobre o Outro Mundo e como chegar a ele?
Gwaltwent
sabia que estava sendo testado; e se julgava preparado, pois conhecia
as tradições não só dos druidas da Brittania, mas de Iwerddon também.
-
O não-mundo é o mundo por trás do mundo, mestre druida. Ele é o destino
das almas que partem para seu descanso após seus corpos morrerem na
terra, embora ele também possa ser alcançado pelos corpos físicos
através dos procedimentos corretos. Ele tem muitas formas, mas surge
como as ilhas abençoadas, guardadas pelos Deuses e outros espíritos
abençoados. Na Brittania falamos muito de Avalon, a Ilha das Maçãs
governada por Afalach, para onde o nosso maior herói, Arthur Pendragon,
partiu em sua barca guiada por Barinthus para um dia retornar. Essa
terra surge nas suas tradições também, com o nome de Emain Abhlach, e é
governada por um deus chamado Manannán. Mas essa não foi a primeira vez
que o nosso herói, Arthur, foi ao Andumnos, ele também partiu em busca
do Caldeirão da Regeneração em uma outra jornada, também feita em um
barco. Todas as nossas viagens ao Outro Mundo, tanto na minha quanto na
sua tradição, são feitas por barco, pelos sagrados cursos de água.
Quando Mabon foi libertado de seu cativeiro, foi o Salmão de Llyn Llyw, o
mais antigo dos seres vivos da Brittania, que guiou os heróis até ele.
Por essa razão, nossos santuários mais sagrados eram associados com
ilhas; Mona, Iona, Mán. Alguns druidas britanos teorizam que a viagem de
Bran, o Abençoado, não fosse na verdade uma viagem até tua terra, mas
uma viagem ao Andumnos, por isso ele atravessou o mar. Na sua tradição,
os portais entre os mundos são abertos por Manannán, capaz de tornar as
ondas do oceano no Outro Mundo, permitindo a passagem entre os mundos.
Vocês nos ensinam até mesmo a distância entre os mundos, que é a de nove
ondas, o número de ondas que os Milesianos precisaram recuar para se
tornarem suscetíveis à magia dos Deuses. – Gwaltwent sorriu, satisfeito
por ter dado uma resposta que provavelmente deixaria Yannet orgulhoso.
Fínd, porém, não desviou o olhar dele. Não havia deboche, não havia
desprezo, não havia gentileza naquele olhar; na verdade, ele nada dizia.
Então o druida de Iwerddon finalmente falou:
- Você sabe quem foi Collen?
A
pergunta pegou Gwaltwent de surpresa. Collen era um nome comum nas duas
ilhas, e alguns dos possuidores desse nome em Iwerddon foram
imortalizados em lendas. Mas o druida usou a pronúncia britana, e o
único Collen britano que ele se lembrava era um monge cristão…
- Mestre druida, deve haver um Collen que eu não conheço em minha terra, pois me lembro apenas de um monge cristão…
- Esse mesmo! Esse Collen é o homem que falo! Diga-me o que sabe sobre ele.
-Collen
foi… um cristão; ele encontrou Vindos Nodengnatos uma vez, após ter
ofendido homens que ofertavam a Ele. Ele foi levado ao Andumnos, ofendeu
Vindos e trazido de volta… ele também…
-Basta! Talvez o problema
de vocês britanos seja o fato de gostarem tanto de tagarelar sobre sua
própria história sem ao menos adoçarem suas línguas com a cuírma
apropriada. Já tenho o bastante, e o restante da história desse infeliz
cristão que agora chamam de santo não me interessa nem um pouco. Ele
viajou ao Saol Éile, que vocês chamam de Andumnos, ou pelo menos os
teimosos druidas que restam em sua terra, pois bem sei que o seu povo já
se lembra do lugar sob o nome de Andumn, ou qualquer coisa assim. Como
ele chegou a esse lugar?
- Foi… através… de uma névoa…
-
Ou seja, não foi através do mar. Muitas lendas de Ériu nos dizem que
reis foram levados ao Outro Mundo através das névoas. A antiga
ilha-santuário de Manannán era defendida por ele por seu manto de
névoas. O Andumnos realmente precisa da travessia pelas águas para ser
alcançado?
-Mas… mas… a névoa… ela é formada pelo vapor da água… atravessar a névoa é o mesmo que atravessar o curso das águas…
O
druida de Iwerddon sorriu, de forma gentil; deu uma olhada rápida para
Yannet, que se levantou e foi em direção a eles. Antes que chegasse, o
druida nativo disse a ele:
- Você pensa muito rápido; tem um bom
raciocínio, e boa vontade de defender suas posições. Tenho certeza que
seu instrutor está orgulhoso de você.
- Mas você ainda continua
ignorando o óbvio, aquilo que já sabe, que você mesmo disse. Você
descreve apenas o Outro Mundo como o destino final das almas, a morada
dos Ancestrais, mas ele não se restringe às Ilhas Abençoadas. O Outro
Mundo é o mundo que fica atrás do mundo. Por isso, ele está em todo
lugar, não só no mar. O segredo é pensar: o limiar é a verdadeira
fronteira entre os mundos. O Outro Mundo tem sua entrada no limiar
entre os mundos, seja esse limiar um arco entre as árvores, uma passagem
entre um riacho, um caminho entre um espinheiro, uma passagem por baixo
de uma cachoeira, um caminho a ser descoberto entre as névoas, ou a
navegação até após a nona onda. Quando estamos na separação, no limiar,
temos a possibilidade passar para o Outro Mundo, se tivermos uma chave,
uma permissão, ou se o lugar for marcado por essa interação. Acreditar
que o Outro Mundo se restringe apenas à viagem final das almas às Ilhas
onde vivem os ancestrais é o mesmo que acreditar que druidas só existem
na Brittania, e não em Iwerddon.
Yannet empurrou Gwaltwent para
cima do espinheiro. O aprendiz gritou ao ser espetado e ter seu manto
furado e rasgado, e se atrapalhou ao tentar sair dele sem se machucar
mais, ou rasgar mais sua roupa. Yannet disse a Fínd:
- Pena que
estamos tão longe do Samonios. Talvez aquele que vocês chamam de
Finvarra encontrasse alguma utilidade para ele no Outro Mundo. Bom, vou
parar de falar, pelo menos até você me apresentar uma cuírma digna de
adoçar minha língua…
Os dois druidas saíram rindo, enquanto Gwaltwent praguejava e tentava se soltar da armadilha de espinheiros…
NOTA
1: Como já foi dito antes, as histórias de Yannet e Gwaltwent não tem a
pretensão de serem “reais” ou precisas historicamente. Não se atenha
tanto à cronologia histórica dos contos; eu sei bem que a lenda de São
Collen ocorre muito depois da época que cobrimos, bem como suposto
“período arthuriano” já ocorreria após a cristianização da Brittania. Se
eu sei disso e não me incomodo, vocês também não devem se incomodar.
NOTA
2: Cuírma (irlandês moderno, cuirm; galês cwrw; gaulês Kourmi/ Cormia)
se refere a um tipo de cerveja associada às populações célticas,
normalmente feitas com mel e malte.
NOTA 3: Finvarra (irlandês
Fionnbhearra) é um lendário rei das fadas em Leinster. Famoso por
sequestrar pessoas (principalmente mulheres, mas homens também) para o
Outro Mundo.
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