segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Aquela que sussura

Os olhos são as janelas da alma
e o espelho do mundo.

(Leonardo Da Vinci)
 
Capítulo I - Primeiras impressões

     Eu era tão jovem quando recebi aquele telefonema, havia conseguido meu primeiro emprego e trabalharia em uma agência de turismo. Não achei estranhas as perguntas que a moça do recursos humanos fizera, sobre meus familiares, se tinha filhos ou marido, e respondi a todas com franqueza.
  - Parentes? Só um tio que me criou, sem filhos ou namorado.
     Fui para casa e assim que cheguei, recebi o telefonema para comparecer na manhã seguinte a empresa. 
     Morava com meu tio que já era idoso (certamente está em uma condição melhor que a minha), dividíamos uma casa de madeira na periferia da cidade e sobrevivíamos com a aposentadoria que ele recebia. Era meu primeiro ano na faculdade e os gastos paralelos, inúmeros.
   Na manhã acertada para iniciar o trabalho, acordei cedo e procurei me vestir de uma forma que repassasse confiança e maturidade, pois apesar de ter 23 anos naquela época, tinha traços delicados que me faziam parecer ser mais jovem do que era. Vesti um jeans e uma camiseta social preta, amarrei os longos cabelos negros em um coque e tentei por alguma cor em meu rosto branco. 
   O tamanho do prédio e fluxo de pessoas certificava que a agencia, Pádua & Pádua filho, faturava bem. Assim que cheguei fui guiada por um corredor até a sala do senhor Pádua, o homem que deu a condição que me encontro agora.
     A sala era ampla, os móveis grandes bem dispostos, mas era mal iluminada e tinha adornos curiosos sobre as prateleiras, diversos cristais coloridos, pontiagudos, simpáticos até, não tinha quadros ou fotografias em nenhum lugar e a minha esquerda, havia uma escultura de meio metro que representava um ser medonho, aparentando ter a cabeça de polvo, asas de dragão ou morcego e garras enormes*, tinha algo grafado em alto relevo, mas para mim era parecia impronunciável. Hoje entendo do que se tratava, mas não ouso dizer aquele nome. 
  O senhor Pádua era muito jovem, provavelmente deveríamos ter a mesma idade, era alto, forte, com cabelos muito loiros da cor de gema de ovo, pele clara como a minha, mas havia algo incômodo em seus olhos, eram olhos grandes muito negros, misteriosos, dissimulados e animalescos. Aquele olhar me perturbou, tentei não o fitá-lo e quando começou a falar, até sua voz era estranha, ora fina ora muito grossa.
  - Senhorita Silva – abri os lábios para pedir que me chamasse de Eleonora ou só “Nora” como era meu apelido, mas resolvi não dizer nada e ficar calada enquanto ele prosseguia - Mandei fazer perguntas sobre seus familiares e filhos, pois tenho muitos assuntos paralelos e posso precisar de seus serviços à noite ou finais de semana, portanto, gostaria de saber se você está disposta a me servir?
   Confirmei com a cabeça, embora sentisse que tudo aquilo tivesse certo ar sombrio. Em poucos minutos sentei na ante-sala do meu chefe onde uma senhora muito idosa me repassou o trabalho. 
 Dias depois havia feito descobertas curiosas e contraditórias sobre aquele homem, soubera que havia perdido os pais e um irmão postiço em um incêndio e depois assumira a empresa num curto intervalo de tempo. Fiquei intrigada com o fato dele ter perdido os familiares e não possuir foto alguma dos mesmos em sua sala. Depois, vi aos poucos os ex empregados sendo despedidos, o que também me deixava tensa. Aquele deveria ter sido o momento de ir embora, mas “sempre recusamos ouvir nossa voz interior quando nos avisa dos perigos iminentes”. 
  Tentei seguir sobriamente meus afazeres e espantar aquela nuvem de desconfiança, mas a cada vez que meus olhos encontravam os dele, ficava trêmula, gaguejava e tinha atitudes que não eram nada agradáveis. Em uma tarde ele decretou secamente.
  - Jante comigo esta noite! Chegue as oito, precisamos conversar. – novamente seu olhar me esquadrinhava. 
   Não dei resposta e derrubei várias vezes o porta canetas que ficava sobre a minha mesa pensando em que “raios” ele poderia querer falar comigo.
   À noite faltei à aula na faculdade e fui até sua casa, uma casa bonita, grande, com um jardim bem cuidado na frente, por dentro os móveis eram novos, provavelmente deviam ter sido trocados após o incêndio. Acho que sua empregada se enganou, pois fui conduzida para seu escritório particular, o que o deixou chateado, mas enquanto estava sozinha, aproveitei para fazer observações que novamente despertavam cismas.
   Sobre uma estante, vi uma moldura um pouco escondida e, curiosa, tomei-a nas mãos observando a fotografia contida, estremeci, era meu patrão, mas os olhos, os olhos eram diferentes, tinham a coloração azul piscina, angelicais e não aqueles olhos caninos, perturbadores e negros. Lembrei que alguém havia me dito que seu irmão postiço havia morrido no incêndio, mas aquela semelhança não poderia ser de alguém que não tivesse algum parentesco com ele e tudo isso mexeu com minha cabeça.  
  Devolvi a fotografia e varri com os olhos o lugar, tinha muitos livros, era bem iluminado, cheios de móveis e gavetas, e novamente sem fotografias além daquela do garoto de olhos azuis. Sobre sua escrivaninha, havia um pequeno livreto revestido de camurça vermelho com um nome dourado escrito a mão na capa, dizia: Dália. 
  Por dentro do livreto havia imagens e palavras escritas também a mão (hoje sei que o idioma era árabe), consegui lê um nome, Abdul Al-hazred e guardei tudo na memória, mas enquanto olhava o livro, não percebi os passos do Pádua se aproximando e quando ele falou sua voz foi áspera e repreensiva.
   - O que está fazendo lendo isso?
  Balbuciei uma resposta e enquanto ele guardava o livrinho, vi em seu pescoço um relicário onde estava escrito o mesmo nome que a pouco havia lido: Dália.
   À mesa jantamos calados, sua respiração era profunda, forte e um silencio incômodo deixava o ambiente com clima tão denso, que quase poderia ser tocado, após algum tempo ele me perguntou novamente:
   - Tem certeza que você não tem parentes? Filhos ou algo assim?
  Se soubesse o que me esperava, teria abandonado tudo naquele instante.

 
*******************************************
Capitulo final - O ritual
 
     Tratei de buscar informações sobre os Pádua, e tudo o que descobri, dava ímpetos deixar aquele emprego. Lembro que matei dois dias de aula para usar o laboratório de informática da faculdade e li diversas reportagens sobre o incêndio e sobre a família. 

“Incêndio mata empresário e esposa, somente o herdeiro Henrique Pádua de 23 anos, sobrevive”

  As imagens também eram estranhas e mostravam que aquele na foto que vi em sua casa, não era outro senão meu próprio chefe, mas os olhos como explicar aqueles olhos? Outro fato curioso era o de não haver referência alguma sobre o irmão postiço que ele tinha, e no trabalho, não havia mais ninguém que pudesse me dá alguma resposta, pois todos os funcionários haviam sido renovados. 
   Também tive curiosidade em saber sobre os nomes que li, mas Dália tinha alguma ligação com flores e nada daquilo fazia sentido, (hoje sei que Dália era uma mulher). Busquei pelo outro nome, e as informações perturbaram- me ainda mais, Abdul Al-hazred, possuía mais de 219.000 referências no site de busca,  sempre o relacionando a criação de um livro de nome “Necronomicon” ou “livro dos mortos”, um escrito antigo, misterioso que falava de encantamentos e história de seres que viveram nesta terra antes da concepção humana. Alguns diziam que o livro era ficção, obra de um escritor famoso, H.P Lovecraft, outros afirmavam que tal livro existia de fato. De qualquer maneira, o que o meu patrão possuía era diferente, seu título era Dália. 
  Decidi não ir mais ao emprego e, após meu tio contrair pneumonia, usei esse artifício para ficar próximo dele no hospital e abandonar de vez a sombria empresa, Pádua & Pádua Filho.
   Em três dias de afastamento, após permanecer com meu tio um longo período, voltei para casa e meu chefe me esperava. O assombro foi imenso, era tarde e ninguém passava na rua, ele estava sentado no pátio de casa em um canto escuro, vestindo roupas também escuras que lhe dava ares mais lúgubres do que de costume. Após o susto, contei sobre meu tio e que não iria mais trabalhar, conversamos um pouco no sofá da sala e Pádua tentava se mostrar compreensivo, dizendo que poderia esperar, que eu tinha grande potencial... Mas me mantive resoluta em afirmar que não poderia mais desempenhar aquela função, e então, ele se despediu, achei de verdade que estávamos conversados, mas quando estiquei a mão para cumprimentá-lo, Pádua me segurou firme e pôs um lenço embebido de algo em meu nariz. 
  Adormeci e quando acordei estava ao relento, no quintal da casa do meu chefe, sentindo-me presa sem a existência de qualquer amarra. Despida e deitada sobre o chão com os braços e pernas afastadas, escutava Pádua ou o que estava nele, repetir palavras em um idioma desconhecido, (depois soube que se tratava da linguagem enoquiana), ele movia os lábios rapidamente, a lua tinha cor vermelha e as estrelas posicionavam-se formando desenhos que jamais havia visto antes (alinhamento cósmico).
   A voz de Pádua produzia sons como os de asa de insetos, semelhante a uma nuven de gafanhotos. Não havia dor só o medo, ou um estado de torpor tão profundo que minha mente desligara alguns sentidos. Em vão tentava me erguer, mas algo me prendia ao chão e meus olhos, meus olhos mantinha-se abertos por uma força superior e invisível, causando uma irritação em não poder piscar. Via vultos vagueando rapidamente, formas animalescas, subumanas, que viam e sumiam, sussurrando em meu ouvido chaves que abriam mundos dos grandes antigos. 
  As luzes e cheiro de velas era sentido, os olhos de Pádua tornaram-se rubros e quando ele me tocou, senti um calor confortável como um gole de vinho, mas depois, depois já não era eu. 
  Observei distante aquela cena complexa, vi o invólucro que outrora albergava a mim, levantando do chão e quando ambos falaram, certifiquei que havia sido roubada, que aquele corpo não me pertencia mais.
   - Mamãe é você?
   - Sim meu filho, sou eu, Dália.
   Não havia sentimentos em mim, eu já não os podia sentir e só os observava. Pádua, ou o filho daquela que falava em meu antigo corpo, cobria sua nudez com um manto. Dália havia transcrito para aquele livro com seu nome na capa, algumas passagens daquele livro profano o “Necronomicon”. Meus algozes se abraçavam enquanto diziam:
  - Consegui mamãe, fiz da forma que você escreveu no livro, agora somos jovens e estamos vingados do mundo, não sou mais um mestiço, o filho postiço, assumi meu posto de herdeiro.
    - Sim meu filho estou muito orgulhosa de você.
   Juntos, mãe e filho caminharam para dentro daquela casa, me deixando na condição que me encontro agora, um ser sem forma que sussurra na escuridão ou até, escreve relatos como este.
 
Nas cavernas mais inferiores, escreveu o árabe louco, não são para a compreensão dos olhos que vêem; pois suas maravilhas são estranhas e terríveis.
H.P. Lovecraft- O festival (em relação ao Necronomicon)

Nenhum comentário:

Postar um comentário