Alguns chamam de bênção, eu chamo de maldição. A eternidade é uma besta
tão feroz quanto aquela que carregamos dentro de nós. O que nos move
também é o que nos impede de nos mover e o que é belo e bom dura tão
pouco quanto se pode lembrar, mas o que é feio e retorcido, tão terrível
quanto seja possível de se imaginar, esse, é inesquecível.
Nem
sempre fui assim, não, não. A noite me fez como sou, nem mesmo o mais
antigo dos amaldiçoados conhece a escuridão tão bem quanto eu. Vivendo
nos cantos apodrecidos e desprezados de uma metrópole imponente, nada
mais digno e merecido por um ser tão asqueroso e indesejável. Quando
vivo nunca fui lá tão belo, mas eu tinha a quem amar e ser amado. Seu
nome não importa, não faz mais diferença, se passou tanto tempo. O que
lhe aconteceu, ou melhor o que eu lhe fiz é algo que jamais poderei
esquecer. Dizem que a primeira gota de sangue fica marcada na alma
decaída de um de nós.
Era uma noite calma, tranquila, típica noite
londrina, caminhávamos pelas ruelas da cidade as gargalhadas, sempre era
assim, sorrisos, felicidade. Senti que éramos observados, um imortal
sabe como preparar sua caça, o medo é o combustível. Eu vi algo, meus
sentidos simplesmente se desligaram, era tão horrível, não sei nem ao
menos dizer o que foi, minha compreensão humana até então não foi capaz
de assimilar. Vermelho, tudo ficou vermelho. Quando me dei conta, estava
deitado em nossa cama, coberto de sangue. Ela estava ao meu lado, sem
vida, bem, algumas partes dela estavam ao meu lado, o resto, espalhado
pelo quarto. Aquela cena não me incomodou, levantei-me como sempre,
troquei minhas roupas e nunca mais coloquei meus pés naquele lugar, era a
besta falando, não eu. Por muito tempo continuei agindo por instinto, o
horror que causei não ficou desapercebido e fui proibido de viver na
cidade por ameaçar o véu que nos esconde do mundo humano.
Passei a
viver nos esgotos e nos cantos esquecidos, me alimentando de animais e
drogados que infestam essa região podre da cidade. Eu causo problemas,
não sou como os outros, aqueles que tem duas presas e são misticamente
belos e envolventes. Não mesmo, eu sou um monstro, um monstro disforme
de feições chacais, como se pincelado pelo próprio diabo e consumido
pelo ódio daquele que me criou. Quem em mim coloca seus olhos,
enlouquece. A compreensão humana é muito vaga e reduzida para entender
que seres existem nas sombras que tanto temem. Um velho me viu fora de
sua janela, em um beco escuro enquanto eu me alimentava de uma jovem
meretriz, apenas um relance de meu olhar foi o que deixei que avistasse,
dias depois aquele homem era velado em sua casa. Se matou dizendo ter
visto o demônio. Quando me alimento, não é belo como nos filmes, e de
gracioso nada tem, eu destroço o pescoço da presa . Sem controle a morte
é rápida e extremamente dolorosa. A marca do trauma sofrido pelo corpo
permanece no olhar. Olhar tal que permanece marcado em minha memória,
não tem como fechar os meus olhos sem ver na escuridão do meu
consciente, todos aqueles olhos amedrontados me fitando, se perguntando,
por quê?
Hoje vago pelas sombras, pelos cantos mais nojentos e
merecidos por mim. Vago em uma busca vã por meus iguais. Talvez seja
apenas uma procura desenfreada por algo que desejo encontrar e não por
algo que esteja ali para ser encontrado. Talvez não exista um criador,
talvez eu não seja um amaldiçoado como todos que encontrei. Posso apenas
ser, do diabo mais um capataz
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