Robson Augusto dos Anjos sempre atravessava a Cinco de Julho com o seu
carro. Sempre. Isso para ele era como uma religião. A rua em questão
ficava no bairro Santa Rosa, em Niterói, e sempre que ele passava por
lá, era porque estava voltando de seu trabalho na gráfica SOLARES, da
qual era um dos proprietários.
Ao se enfiar dentro do carro,
Robson abria a janela do lado do motorista para que toda a fumaceira de
seu Ritz saísse de lá, depois ele conectava sua rádio em alguma estação
FM — se quisesse algo mais selecionável, como Legião Urbana, Engenheiros
do Hawaii ou até mesmo Paralamas, ele teria que se socorrer ao CD, mas
no momento ele não tinha nenhum no porta-luvas. Katia havia feito uma
faxina em seu Voyage 2013, e o pior é que seu Voyage ainda estava
novinho em folha! Katia e sua mania de limpeza.
A chuva aumentou, fazendo-o acionar o pára-brisa.
— Aquela filha da mãe deve ta de onda com a minha cara — chiava ele
em voz alta no volante, quando, de repente, se viu num estranho
engarrafamento.
Robson não estava em uma estrada vicinal para
sofrer com um engarrafamento daqueles, ora essa. Ele estava era numa
ruazinha de um bairro rodeado de prédios!
Ainda assim, os carros
iam parando por causa do alagamento criado pela chuva. Uma rajada de
buzinas começou a soar atrás de si.
Por isso, ele resolveu sair do Voyage.
Pegou uma capa de chuva amarela no banco de trás para proteger a
cabeça, e saiu, sentindo aquele cheiro gostoso de terra molhada,
tentando descobrir o que se sucedia lá fora. Um vento alcalino
serpenteou as suas costas.
Logo ele estava pedindo informação ao motorista de um Palio parado a sua frente, que também estava fora do veículo.
— Toda chuva alaga, não adianta reclamar — dizia o cara do Palio,
que usava uma camiseta preta de mangas cortadas com o símbolo do
MOTÖRHEAD na frente. — Sempre que chove é a mesma coisa. Se algum dia o
prefeito fizer uma obra de drenagem com recapeamento por essas bandas,
tudo vai se ajeitar.
— Alguns carros tão voltando na contramão.
— Alguns não meu camarada, todos. Temos que fazer o mesmo para sair
do caminho, porque se criou um enorme alagamento lá na frente, um
verdadeiro rio d'água. O pior é que essa ruazinha é de mão única — o
cara do Palio deu uma coçada em sua terceira perna por cima da jeans, e
repetiu: — Se algum dia o prefeito fizer uma obra de drenagem com
recapeamento por essas bandas, tudo vai se ajeitar.
— Sim já entendi — disse Robson, frenético. — Vou entrar.
— Boa sorte, amigão.
Uma enxurrada de pessoas com guarda-chuvas nas mãos davam pulinhos
para ver se via algo de importante há 50 metros de distância.
Os
automóveis na dianteira já tentavam trafegar na contramão, invadindo
inclusive um canteiro com flores-de-lis, e começavam a buzinar como se
dissessem: “vocês aí, como é que é?” enquanto seus motores ronronavam
feito um urso malaio feroz. Os que estavam de motocicletas é que se
deram bem.
Tudo isso aconteceu um minuto antes de um bebê cair sobre a cabeça de Robson Augusto.
Sim vocês ouviram bem. Um bebê.
Robson ainda estava fora do carro, vejam só vocês. Seu Voyage se
encontrava parado ao lado das grades da portaria de um condomínio
residencial chamado Monte Olimpo, quando um forte raio rasgou o céu, e
com ele, viera uma coisa mole e esponjosa sobre a sua cabeça...
Foi tudo muito rápido. O baque chegou tão quente e violento contra a
sua cabeça, que parecia que alguém tivesse lhe arremessado uma boa
quantidade de lava.
Sentindo seu corpo inteiro se queimar por
dentro, Robson começou a gritar e depois a rolar desesperado no gramado
próximo a uma árvore cipreste, berrando um monte de blasfêmias contra
Deus e o mundo. Viu sua pele ir ficando cada vez mais vermelha... e um
cheiro de vísceras se dispersou no ar, fazendo com que ele olhasse de
lado e visse uma poça craniana envolvida com o que restara de um cordão
umbilical esparramado no chão feito uma pequena serpente... Céus, aquilo
parecia ter saído de algum conto de Palahniuk.
Não restava dúvidas: um bebê recém-nascido havia caído diretamente contra a sua cabeça.
Rostos curiosos se amontoaram em volta das sobras do bebê, inclusive
o cara do Palio que vivia reclamando da cidade, dizendo que se algum
dia o prefeito fizesse uma obra de drenagem com recapeamento naquele
local, e heim eim eim, tudo iria se...
Uma senhora com bobes no
cabelo gritou, e mais gritos vieram junto com o dela. Alguns vomitaram, e
a última coisa que Robson fez antes de perder os sentidos, foi erguer a
cabeça na direção da janela do 11° andar do condomínio Monte Olimpo.
Lá em cima ele viu, em meio a penumbra de uma janela sem grades, a
forma escura de um rosto pertencente ao provável assassino — ou
assassina — do bebê.
Acordou em um quarto de hospital, sem saber exatamente porque o
colocaram ali. Suas lembranças iam voltando pouco a pouco, como se
alguém tivesse lhe dado um sedativo para elefante. Ninguém merecia
passar por aquilo, ninguém mesmo, pois a vida, às vezes, nos pregava uma
peça, como um movimento perfeito de um jogador de xadrez destruindo o
nosso peão, nos obrigando a pensar o mais rápido possível em uma saída. E
a saída de Robson foi...
Só precisou dar uma rápida olhada em
volta para descobrir que não estava em uma clínica qualquer, afinal de
contas. Aquilo em sua volta era um sanatório — um asilo para
delinquente, ou um depósito para loucos, o que quer que você queira
nomear — disso ele tinha certeza absoluta. A plaqueta acima da porta
dizia: SE FRIO FOSSE PSICOLÓGICO ISSO DAQUI IRIA NEVAR O ANO INTEIRO.
Robson achou que havia algo de errado ali, depois percebeu que esse algo de errado era consigo mesmo.
Estava deitado de barriga para cima na cama, em decúbito dorsal, sem
ao menos poder mover os braços. Resolveu então levantar o pescoço e
olhar o próprio corpo, descobrindo que este estava envolvido com uma
camisa de força. Impulsionou-se, movendo os membros, até que rolasse e
se estabanasse no chão. Alguém teria que te dar uma boa explicação para
isso, e teria que ser já.
— Olá! Alguém? — chamou, sem sucesso.
As paredes acolchoadas em sua volta cheirava a mofo, e por um
momento, Robson achou que aquilo fosse obra de Katia... Sim! Katia devia
estar tirando uma com a sua cara, como daquela vez em que ambos foram
passar um longo feriadão no Parque Nacional da Chapada da Diamantina, na
Bahia, e que ela, aproveitando que ele tinha pegado no sono debaixo de
uma cachoeira, colocou uma cobra coral dentro de suas calças; ou da vez
em que ele próprio tentou furá-la na barriga com uma chave Philips
quando ela resolvera brincar dizendo que estava grávida. Robson não
queria ser pai de jeito nenhum. Para ele, ser pai acabava com a
privacidade de qualquer homem são.
De repente, ouviu-se um
barulho de vozes e pranchetas pelo lado de fora no corredor. Dois
médicos caminhavam em sua direção.
— Você viu o que esse cara
fez com a própria filha recém-nascida, Jairo? — um deles dizia,
acerbamente. — O cara é maluco, deveriam tê-lo enfiado em uma câmara de
gás.
— O pior foi o estado em que a mulher dele ficou — disse o
sujeito chamado Jairo. — Eu mesmo, se pudesse, o esmagaria com as minhas
próprias mãos!
— Quando a gente acha que já viu tudo nessa vida...
— Vou dizer uma coisa a você, Léo: eu quase vomitei todo o meu café
da manhã quando vi aquela balbúrdia de sangue pela televisão.
Robson ia escutando... ia escutando... até que, com o corpo encolhido
feito uma bola num canto da parede acolchoada, chorando que nem um porco
num matadouro, ele finalmente lembrou do que lhe ocorrera na noite
anterior... Quer dizer, ele lembrou da VISÃO que lhe ocorrera na noite
anterior... quando toda a sua força pareceu se esvair de seu corpo feito
água escorrendo de uma balde com o fundo rachado. Tudo que ele
precisava agora era de mais uma dose de LSD.
Cada pessoa tinha o seu próprio ponto de vista. Robson Augusto dos Anjos, tinha dois.
No condomínio Monte Olimpo da rua Cinco de Julho, a forma escura do
rosto que ele vira do assassino do bebê na janela do 11° andar... era na
verdade, o rosto dele mesmo.
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