sábado, 24 de agosto de 2013

Noite dos mortos vivos

Peguei no sono novamente. E mais uma vez fui sugado para um mundo de trevas e medo. Como das outras vezes, fazia frio. Um nada que machucava a alma. Não sei se estava de olhos abertos ou fechados. A escuridão era tamanha que tanto fazia enxergar ou ser cego. E eu ali novamente. Mas onde é ali? Estou perdido no silêncio. Um vazio infinito. Medo. Pavor e solidão. Uma solidão tão dolorida, que só restou chorar. Fiquei paralisado, como que suspenso no ar. Tentei ouvir alguma coisa, qualquer coisa. Nada.
Até que ao longe ouvi um sussurro. Tentei falar, mas minha voz não respondeu. Fiquei  naquele breu o que pareceu uma eternidade. Aquele limbo estava me matando. Se eu pudesse sentir mais alguma coisa além de medo seria meu suor. Tenho certeza que escorria por todos os poros do meu corpo. Corpo? Eu não sentia meu corpo. Nadava no nada.

Quando o mais puro terror tomou conta de mim, pensei que iria morrer sufocado. Não havia ar. Puxei uma respiração que imaginei ainda ter e não veio. Sufoquei. Entrei em completo surto e acordei.

Acredito que gritei ao acordar. Naquele ônibus noturno, pequenos pontos de luz iluminavam o interior do veículo. O carro chacoalhava de um lado para o outro numa velocidade acima do razoável. E ninguém acordou. Somente eu. Ou pelo menos eu não ouvia ninguém. Como tentava me recuperar do maior medo que já havia passado na vida, nem percebi que ao meu lado, o banco antes ocupado por um menino chorão, estava vazio. A mãe do garoto já tinha tentado de tudo para acalmar a criança. Cantou, brincou, brigou, e por fim meteu uma mamadeira nas mãos do menino, que gordo, se engalfinhou naquilo. Nem a mãe, nem o garoto estavam por ali.

Sequei o suor da testa, tentei arrumar os cabelos que despenteados deveriam estar dando a impressão de que eu era um maníaco endiabrado. Se fosse  possível um espelho, eu veria a própria face da morte em meu rosto. Minha língua seca grudou no céu da boca. Meus lábios estavam rachando. Minha roupa amarfanhada exalava o cheiro forte do medo. Limpei a garganta e olhei ao redor. Não só os bancos ao meu lado estavam vazios como os da frente e os de trás. Levantei subitamente com o susto de não ver ninguém. E o pavor mais uma vez tomou conta de mim. Eu estava sozinho naquele ônibus. Sozinho? Imediatamente fui procurar o motorista que não estava lá. Me vi em alta velocidade em um ônibus desgovernado dirigido por ninguém. Quase gritei. Corri até o volante na tentativa de colocar o carro no rumo, mas só consegui derrapar e bater com força nas rochas que ladeavam a estrada. Com forças não sei de onde, deixei o ônibus em linha reta. Aos poucos os freios foram parando aquela enorme máquina vazia. Apenas a lua dava cor à estrada. Escuridão que também tomava conta de mim. Quando finalmente estacionei não tive reação. O que havia acontecido? Onde estava todo o mundo? Andei por entre os bancos e só vi os objetos pessoais dos passageiros, alguns largados de qualquer jeito. Tão de qualquer jeito que muitos se quebraram. Alguém levara todos embora? Mas como? Foram todos abduzidos? Não, seria uma explicação muito fora da imaginação coerente de um homem letrado como eu.

Desci do ônibus e fui andando estrada à fora, sem escutar uma alma. Estava frio. Ato contínuo, me encolhi. Um peso caiu sobre mim, como se mil corpos sentassem em meus ombros. Andei devagar, olhando para todos os lados. Apressei o passo,  ensaiei gritar, chamar alguém, mas foi inútil. O ar estava rarefeito e os sons prejudicados. Ao longe vi uma luz tremulante. Uma tocha? Sim. Fogo. Corri em direção a ele. Nem percebi que saia da estrada e me embrenhava numa floresta fechada. O mato alto batia em minhas pernas. Feridas se abriam. Lanhos não muito profundos deixavam um pequeno rastro de sangue por onde eu passava.

Fui em direção à luz sem ao menos raciocinar. O fogo se aproximava e percebi que não era apenas uma tocha, mas várias. Muito próximo do clarão que as chamas formavam parei minha corrida. Tomei fôlego, minhas pernas doíam, meus braços, meus ossos, músculos. Tudo em mim parecia moído. E a dor era excruciante. Respirei e olhei com mais atenção ao que se passava na clareira. E ai eu morri. Ou praticamente. Todas as pessoas que se perderam no ônibus estavam ali, mas não eram mais humanas. Não se podia chamar aquilo de humano. Eram uma espécie de mortos-vivos.

Desligados do mundo, alheios, sangrando, babando, machucados e imóveis. Seguravam as tochas e olhavam o além com olhos rasos, furados, carcomidos, mortos.

– Meu Deus, eles estão mortos, pensei comigo mesmo. Até o menino chorão. Depois de alguns segundos eternos, desnorteado  fui andando para trás devagar, sem nem respirar, sem fazer barulho, sem ao menos piscar. Eu não conseguia ter pensamentos coerentes. Tudo que se passava na minha mente era que tinha que voltar para a estrada, para o ônibus. Precisava ir embora dali e me salvar.

Zumbis. Como? Por quê? E por que não eu? Não entendia. Andei de ré até uma distância que julguei suficiente para começar a correr sem ser notado. Mas o azar fez com que eu pisasse forte em um galho velho. Foi o suficiente para um de aqueles monstros encontrar meus olhos. Em nossa troca de olhares eu gelei. Senti todo o ódio, medo, fome, crueldade que tomava conta daquele corpo. E ele gritou. Na verdade o monstro grunhiu. E todos eles olharam em minha direção.

Corri. Corri como nunca, como um louco. Corri como se corre da morte. Sentia aquelas bestas nos meus calcanhares. Bati em árvores, pisei em poças de água e lama. Lágrimas molhavam meu rosto já sujo de terra daquela maldita floresta. A noite parecia estar ainda mais fechada. Cheguei à estrada. Fui em disparada em direção ao ônibus e ao chegar na porta do carro ela estava fechada. Empurrei com toda a força que ainda achei em meu corpo. Uma daquelas mãos cadavéricas conseguiu me alcançar. Eu lutei para jogar longe aquele saco de ossos, mas não consegui. Estava desesperado, até que num chute abri a porta e cai ensandecido me esparramando pelo piso. Fechei a porta de qualquer jeito. Empurrando com força enquanto os dedos daqueles mortos insistiam em lutar. Finalmente a porta trancou.


Pulei para o banco no motorista e tentei desesperadamente dar a partida, mas a bateria estava gasta. Girei a chave e nada. Continuei tentando. Um mar de gente semiviva rodeava o ônibus. De todos os tamanhos, idade, sexo. Batiam famintos nas janelas. Quase rosnavam. Se jogavam nas laterais do ônibus e se desfaziam em podridão. Uma janela quebrou. Meu pânico só aumentava e finalmente o motor resolveu funcionar. Sai em alta velocidade. Atropelei o que vinha pela frente. O menino chorão explodiu no vidro da frente.

Sangue escorria pelos vidros. Eu precisava sair dali. Dirigi quilômetros cegamente tendo a lua para iluminar meu caminho. Perto de uma estalagem, um hotel velho, parei. Mas um sentimento de alerta já tomava conta das minhas decisões. Desci do ônibus com cautela. Corri para trás da parede dos fundos do prédio, e espiei pela janela. Ninguém. Entrei pela portinhola protegida por uma tela e atrás do balcão de atendimento encontrei uns óculos e uma bíblia caídos no chão. Quem quer que por acaso estivesse por ali tinha abandonado tudo e rapidamente. Ou se escondeu ou virou monstro.

As luzes estavam acesas o que facilitou minha busca por explicações, comida, qualquer coisa. Encontrei uma garrafa de água pela metade e rasguei minha garganta ao engolir em grandes goles o que restava.
A sala da recepção do hotel era minúscula. Um corredor escuro se abria logo ao lado da máquina registradora. Todas as portas fechadas. Eu não queria saber o que havia atrás delas. Mas precisava. Na primeira porta que abri encontrei um quarto completamente sujo de sangue. Respingos de restos humanos caiam do teto. Sangue pingava e um cheiro de podridão tomava conta do lugar. Fechei a porta imediatamente, com náuseas difíceis de controlar.

Fui para o outro quarto e o único cheiro era o de mofo que já estava lá antes mesmo de se pensar na existência de mortos-vivos. No terceiro quarto, também vazio, só olhei de relance. Ao fechar a porta ouvi lá dentro um som abafado. Um baque surdo. Meu coração acelerou de tal forma que veio até a boca. Abri novamente a porta e acendi as luzes. “Tum”. De novo aquele barulho dos infernos. Fui até o guarda-roupa lentamente. Como que esperando que pulasse lá de dentro o maior e mais sanguinário dos monstros de todos os tempos.

Quando minha mão encostou na maçaneta do armário, novamente o “tum”.  Pulei e olhei para trás. Vi um rosto me encarando. Gelei. Demorei a perceber que era a minha própria figura refletida em um espelho. Eu estava sujo de sangue. Tomado pelo medo. Voltei a me concentrar no armário. Num fôlego só abri a porta e lá estava ela. Uma menina de pouco mais de oito anos, encolhida e abraçada a um urso velho e encardido. O barulho era ela tentando abrir a porta.

Nos encaramos e ela chorava. Me inclinei diante dela e menti:

- Vai ficar tudo bem, disse calmamente.

Ali mesmo eu fiquei. Esqueci de ver o último quarto no final do corredor. Tranquei a porta frágil do quarto onde estava. Escorei uma cadeira na tentativa de dificultar o que quer que forçasse a entrada.  Puxei a menina de dentro do armário. Tentei secar as lágrimas dela, mas ela não deixou. Perguntei se estava sozinha e ela não respondeu.

O banheiro imundo de secreções ainda humanas e cheirando a mijo tinha toalhas encardidas penduradas. Peguei uma daquelas e limpei meu rosto. Lavei meus olhos, minhas mãos. Eu estava muito machucado e sujo.

A menina sentou em uma das camas e estava em estado de choque. Eu não ouvi mais nada. Nem lá fora, nem aqui dentro. Revistei o quarto todo, e achei estes papéis na pequena escrivaninha do canto. Escrevo neste momento minha história, sentado no chão, sem saber se alguém vai conseguir sobreviver a isso tudo. Esta noite eu preciso esticar minhas pernas, curar minhas feridas, mas não posso cair no sono. Se eu dormir corro o risco de parar mais uma vez naquele local onde mora o medo. Onde flutuei sem ar na escuridão. Se bem que agora não faz a menor diferença. O medo está aqui comigo. Lá fora escutei um grito abafado. Eu e a menina nos olhamos e decidimos em silêncio deixar pra lá. Estamos cansados, famintos, em pânico. Somos um nada. Nos encolhemos. Ela na cama e eu aqui no chão. Vamos ficar assim até o dia amanhecer. Ai pensaremos no que fazer.

A menina da biblíoteca


Trabalhava na biblioteca há pelo menos cinco anos. Conhecia cada livro, cada corredor. A rotina era sempre a mesma: destrancava janelas, iluminava o lugar, arrumava prateleiras e esperava os estudantes.

Naquele dia chegou no horário de costume. Abriu a porta. Meio atrapalhada, cheia de livros na mão, nem acendeu a luz da sala onde ocupava a maior parte do tempo. Entrou e largou os livros em cima da mesa auxiliar, ao lado do telefone. Foram todos ao chão. A velha mesa não estava lá.

- Ah, mas que isso? Perguntou a si mesma, já aflita.

- Será que o diretor mandou tirar a mesa sem me avisar? E quando ele fez isso? Na madrugada? Falou em voz alta, bastante irritada. O que achou mais estranho foi que a mesa era pesada, pesada demais para um homem só carregar.

-Ah se alguém arrastou  pelo chão? Ai ai ai deve ter arranhado tudo! Lamentava enquanto pegava os livros. Não encontrou nenhuma marca indicando que tenha sido arrastada.

Interrompeu as lamúrias quando começou a ouvir as vozes dos alunos.  Em época de provas finais a biblioteca ficava cheia. Não teve tempo para tirar satisfação com o diretor. As crianças tomaram conta de sua atenção.

Rúbia era uma balzaquiana. Fizera 35 anos há pouco. Solteira, não tinha família por perto. Morava com dois gatos que achara abandonados no parque. Fez faculdade na cidade grande, mas depois de muitos desentendimentos com o ex-noivo, largou tudo e foi parar ali. Nunca mais se interessou em ter namorado e preenchia o tempo cuidando dos livros e dos estudantes.

A escola era a maior da cidade. E a biblioteca, a única. Funcionava em um prédio antigo, precisava de reformas. As paredes estavam descascando, os banheiros entupidos e o teto cheio de goteiras inesperadas. Apesar da decadência, era um prédio imponente, de arquitetura gótica. Diziam inclusive que o prédio já abrigara uma catedral séculos antes. A porta da frente era pesada, emoldurada por um portal com vitrais coloridos. O pé direito era enorme. Tinha três andares e corredores escuros. Era praticamente iluminada por janelas e as abóbodas transparentes.  Muitas delas com vidros remendados e que davam um certo ar de mistério a cada canto.

No  inverno os alunos sofriam. O aquecimento central costumava dar problemas e não raro os estudantes se viam obrigados a levar um casaco extra para enfrentarem o frio. Sentavam em cadeiras de espaldar alto. Usavam mesas pesadas, que já sentiam a ação do tempo. Mas dona Rúbia tratava de sempre dar um jeitinho nas coisas. Levava aquecedor, deixava uma garrafa de chocolate quentinho à disposição de quem quisesse e vez por outra até presenteava os alunos com um biscoitinho caseiro.

Dona Rúbia era muito querida entre os frequentadores da biblioteca. Era tratada com respeito e admiração. As crianças gostavam de ouvir as histórias que contava de quando estava na faculdade ou das estripulias que seus gatos fazem quando ela não está em casa.

E era isso o que ela queria da vida. Procurou aquela cidade do interior para ter uma rotina mais pacata. Ganhou o emprego quando convenceu o chefe de que além de excelente bibliotecária, sabia como ninguém administrar uma casa. Era o que ele precisava no momento: alguém que cuidasse de tudo.

No outro dia ao incidente da mesa auxiliar, que inclusive já tinha caído no esquecimento de dona Rúbia, ela novamente chegou no horário e desta vez foram as cores que haviam mudado. Antes as paredes estampavam um tom pastel, outras quase cinza, e tijolos à vista. Agora tudo passava a ter tons cobres, marrons e avermelhados.

- Mas como foi isso? Perguntava-se espantada.

Os primeiros alunos chegaram ruidosos, dando os parabéns pelas mudanças:

- A nova cor está linda, senhorita Rúbia, disse a menina de olhos grandes e cabelos longos.

- Eu conheço essa garota? Perguntou- se Rúbia.  Não. Não sabia quem era, mas como todo dia centenas de alunos passavam por ali, imaginou ser alguma das alunas mais tímidas. Nem pensou muito no assunto, nem registrou o desconforto que sentiu quando a menina sorriu e arrumou os cabelos compridos e pretos. Dona Rúbia sentiu um calafrio diante daquele sorriso enigmático. Tratou de tirar aquela imagem da cabeça e não pode deixar de pensar a que horas os pintores e marceneiros tinham ido trabalhar.

Quando ia pegar o telefone para perguntar ao diretor sobre as cores e a mesa pesada que desaparecera, foi interrompida por um grito que vinha da ala dos livros policiais. Correu acompanhada por alguns alunos que estavam próximos. Encontraram, caída no chão, a tal menina dos cabelos negros. Imóvel, embora respirando, mas sem abrir os olhos. Jogaram água no rosto dela.

– Afastem-se meninos, me deixem cuidar disso, pedia aos gritos a bibliotecária. O que teria acontecido? Pensava quase entrando em desespero, sem saber o que fazer.

Batia na mão da menina, tentou levantar a cabeça dela e de uma hora para outra a garota abriu os olhos. Para alívio de dona Rúbia e da plateia que já se aglomerava por ali. Novamente sorria, e o tal sorriso estava ainda pior. Tinha nele um quê de maldade, lascívia e mistério. Dona Rúbia perguntou a ela o que tinha ocorrido.

 - Não sei. Não lembro. Sei que estava lendo e de repente acordei no chão com várias pessoas ao meu redor.

Rúbia pensou quase em voz alta: Como fala bem essa garota para ser apenas uma garota. Quantos anos terá?

-  Deve ter sido um desmaio apenas, estou sem comer há horas, disse a menina já se levantando.

A bibliotecária tentou leva-la ao hospital, mas a menina insistiu em dizer que estava tudo bem.

- Vamos, não discuta.

- Está tudo bem, disse pausadamente num tom que calou dona Rúbia. A mulher chegou a se assustar. Foi como se uma voz mais grossa, adulta tomasse conta daquelas palavras. A garota soltou o braço bruscamente das mãos da bibliotecária e saiu caminhando lentamente. Sem olhar para trás.

- Que criança estranha, pensou dona Rúbia já se dirigindo para a sua sala.

Seguiu com o dia atarefado e não pensou mais na menina, nem nas mudanças da biblioteca.

Uma semana depois, mais um susto. Desta vez foi ao final do expediente. Ficou até mais tarde na biblioteca, organizando a ala dos livros de história, quando novamente escutou um grito.

- Mas eu não estava sozinha? Pensou dona Rúbia. Fiz a ronda e não há nenhum estudante. Quem será o engraçadinho que ficou aqui dentro às escondidas? Ah eu pego esse menino...

E foi depressa em direção ao grito, novamente na seção de livros policiais.

- Quem está ai? O que houve? Ouviu em resposta risadinhas abafadas.

- Pronto, é uma menina. Ah essas garotas...

Ao entrar no corredor escuro, não havia ninguém. Nada. Não ouviu passos, nem uma respiração. Procurou até o final do corredor, embaixo das prateleiras, atrás dos livros, e nada.

- Ah que diabos, agora estou ouvindo vozes, falou consigo mesma.

Caminhou novamente por toda a biblioteca, pelos três andares. Olhou em todas as direções, imaginando se a menina teria subido a escadaria. Não achou ninguém, não ouviu nem um estalar de madeira.

Quando voltou  para a seção de história, encontrou todos os livros abertos no chão. Na página 59. Um ao lado do outro. O susto de dona Rúbia foi tanto que por um instante ela parou de respirar. Entrou em pânico. Saiu correndo. Foi embora, lembrando apenas de trancar a porta pesada.

No outro dia, depois de uma noite insone, voltou à biblioteca. Entrou receosa, pé ante pé. Acendeu todas as luzes e foi direto para a seção de história. Os livros já estavam arrumados. Tentou disfarçar o nervosismo, mas acabou esbarrando em uma prateleira, quase derrubando tudo.

- Quem arrumou? Quem esteve aqui? Falou em voz alta.

Passou em revista o prédio todo. E na estante  de livros policiais, próxima aos clássicos, um vento frio a fez arrepiar.

- Não temos janelas na seção de clássicos. De onde vem esse frio? A cabeça da mulher estava confusa. Saiu dali para pegar um casaco na sala de trabalho. Quando dobrou em direção à escadaria, parou de repente: a menina dos cabelos longos e negros estava parada no final do corredor. Sem sorrir, sem piscar, sem se mexer. Estava lá , como que esperando. Dona Rúbia encarou a garota, que permanecia imóvel.

- Ei, como você entrou? Perguntou rispidamente dona Rúbia. Silêncio.

Foi até ela e falou  novamente, ríspida:

- Ainda estamos fechados para o público.

A criança virou as costas e foi em direção à escada. A bibliotecária desceu antes, com pressa e se dirigiu a própria sala. Ficou esperando ouvir o barulho da porta da frente fechando com a saída da garota. Mas não ouviu nada. Ficou intrigada. Pegou o casaco e voltou ao corredor para repreender a menina:

- Eu falei sério, já avisei que a biblioteca está fechada, disse entre dentes. Mas a menina não estava em lugar nenhum.

Voltou correndo para a sala, dessa vez ia pegar a bolsa e ir embora. Estava muito nervosa para continuar ali. Quando entrou no escritório outro choque: todos os quadros na parede estavam de cabeça para baixo. O ar ficou mais pesado. Novamente ouviu umas risadas. Foi direto ao telefone. Telefone que não estava mais lá. Havia sumido.

Correu em pânico para a porta da biblioteca. Tropeçou em uma cadeira que apareceu do nada no saguão.
Finalmente se levantou, correu e bateu a porta atrás dela. Decidiu ir até o diretor. Foi a pé, rapidamente, nem perceber as pessoas que a olhavam com um ar de espanto. Ela estava chorando, despenteada, com olhos inchados, uma figura triste e louca.

O diretor da escola era também o responsável pela biblioteca da cidade. Um senhor de idade bastante avançada, mas com uma lucidez impressionante. Dona Rúbia contou tudo a ele de um fôlego só. Ele ofereceu água, café, e ceticamente disse com todas as letras: não há reforma alguma. Nem mudança de cores, nem redecoração, e ninguém tirou nenhum móvel de lá.

- Mas a mesa...é pesada. Quem tirou então? Perguntava, incrédula, a mulher.

- Não sei. Nunca dei autorização para quem quer que seja entrar lá fora do horário de serviço. Não há cópias das chaves e instalei um sistema de alarme impossível de entrar ou sair sem ser notado, falava o diretor por trás do bigode.

-E a pintura? Os vitrais vermelhos?

-Nada disso, respondeu o diretor.

Dona Rúbia ia desmaiar ali mesmo na frente dele. Sentou-se e começou a chorar.

- Pelo amor de Deus, então me acompanhe até a biblioteca. Eu não estou louca. Eu sei o que eu vi. E o diretor aceitou.

O caminho ate lá não era longo, mas o suficiente para deixar os dois com a respiração ofegante. Ao longe, uma tempestade se aproximava e um vento cortava a rua por onde andavam. Chegando ao prédio, alguns alunos esperavam do lado de fora. Entraram juntos e para surpresa de todos, voava papel por todo o saguão. Os livros da biblioteca estavam rasgados. Como se alguém arrancasse folha por folha de cada encadernação.

Os alunos curiosos queriam entrar no salão, mas o administrador tirou todos de lá. Fechou a porta, proibiu a entrada de qualquer um. Chamou a polícia. A bibliotecária ficou embasbacada. Com os estudantes expulsos, sem saber muito bem o que fazer começou a arrumar a bagunça. Como se tivesse em transe, automaticamente, pegava livro por livro.  Logo percebeu que em todos eles havia sobrado uma única página: a 59.

Lançou-se freneticamente a recolher tudo do chão.  A polícia chegou e impediu que ela continuasse. Os policiais procuraram por todos os lugares, qualquer pista, mas nada foi encontrado. Liberaram a biblioteca para dona Rúbia arrumar.

-Dona Rúbia, não vamos deixar que algum engraçadinho faça isso sem ser punido. Vamos achar o culpado, garantiu o diretor. A mulher chorava. O chefe não tinha intimidades e para quebrar o clima deu ordens para que as encomendas de novos livros fossem feitas o mais rápido possível. E assim ela fez. Depois de recolher os papéis, passou o resto do dia às voltas das compras. O que demorou e consumiu mais tempo que o planejado.

Ao sair do prédio, percebeu que tinha esquecido a luz do escritório acesa. Entrou novamente, dirigiu-se a sala e para sua surpresa encontrou tudo no escuro. A única iluminação era a que ela mesma havia acabado de acender no salão principal. Deu meia volta. Quase correndo, e com o coração acelerado ia em direção à saída quando percebeu um vulto próximo a ela. Olhou para trás e viu a menina dos cabelos negros. Desta vez sorria. O mesmo sorriso sinistro. Dona Rúbia parou e voltou para falar com a garota, mas a menina saiu correndo. A mulher correu atrás dela.

A menina parou na seção de livros policiais. Derrubou um único livro da estante e saiu correndo novamente. A bibliotecária pegou o livro do chão. E foi difícil acreditar: a garota estampada na capa do livro era a menina dos cabelos negros. O livro era "A morte de Isabel - um mistério nunca desvendado", de 1893.
Aparentemente aquele era o único livro que havia se salvado do vandalismo das páginas arrancadas. Como se tivesse sido marcado, abriu na página 59 . Havia outra foto da menina. Dela com a irmã gêmea Isadora.
Dona Rúbia começou a folhear o livro. Descobriu que Isabel e Isadora eram muito unidas. Isabel era mais rebelde, mais atrevida. Isadora era meiga, quieta. As duas brincavam no pátio da casa quando simplesmente desapareceram. A família procurou, a cidade inteira foi atrás, mas por um bom tempo não se teve notícia das duas. Os pais ficaram desesperados. Um dia uma delas apareceu. Era a tímida Isadora. Estava vagando pelas ruas da cidade, toda suja de terra, ferida, com a roupa rasgada, e sem lembrar-se de nada. Foi internada e morreu alguns dias depois. Além de estar muito fraca, cheia de cortes e feridas, pegou uma pneumonia. Mas nunca contou onde esteve com a irmã, nem por que caminhos andou nem deu pistas do paradeiro da rebelde Isabel. Os pais nunca desistiram de procurar, mas morreram sem saber notícias da filha.

A polícia nunca descobriu o que houve.  Nunca encontraram o corpo da menina, nem desvendaram se houve sequestro, abuso. Virou livro por conta do mistério que envolveu toda a trama.

Rúbia largou o livro na estante e sentiu um cheiro de queimado. As labaredas começaram na frente dela sem que houvesse ninguém para atear o fogo. E se espalharam rapidamente. Dona Rúbia conseguiu sair por um milagre. Foi resgatada já sem ar, e quando estava sendo retirada pelos bombeiros, ainda pode ouvir a risada da menina. Olhou para trás e viu uma sombra. Era ela. Estava sorrindo se escondendo atrás da prateleira.
O prédio ficou quase destruído. Não há previsão de quando vai voltar a funcionar. Assim que consegui, fui conversar com Dona Rúbia no hospital em que está internada. Ela me contou a história toda e realmente a impressão que tive é que tão cedo não sai de lá. Além dos ferimentos do fogo, os médicos diagnosticaram insanidade. Pobre dona Rúbia.


De lá me dirigi à biblioteca para colher mais informações para reportagem que estou elaborando para o jornal em que trabalho. Faz um frio infernal naquelas salas. Ainda tem muita coisa espalhada, está tudo sujo, o cheiro de queimado ainda está no ar. Mas o que é impressionante mesmo é o frio. Andei entre os destroços, e reconheci a mesa que Dona Rúbia havia mencionado como desaparecida. Ela está lá, inteirinha, sem que uma labareda tenha encostado nela.

Antes de chegar em casa encontrei o dr. Vasques, o delegado. Falei que estava voltando da biblioteca e que tinha encontrado um livro intacto. Ele pediu para ver e o confiscou. Acredita que possa haver alguma indicação sobre quem ateou fogo no prédio já que foi encontrado na cena do incidente.  Deixei o livro com ele e tive que explicar como consegui entrar na biblioteca.

-Fui conversar com Dona Rúbia que me contou uma história muito esquisita. Para confirmar as histórias fui até o diretor. Ele reconheceu que a bibliotecária estava meio alterada antes do incêndio, mas não acredita que tenha colocado fogo em si mesma. Ele me deu as chaves da porta principal.

Há poucos dias encontrei  dr. Vasques na farmácia. Tinha olheiras profundas. Perguntei como estava passando e ele não me pareceu muito bem não. Falava ofegante, parecia com medo, olhando em volta a todo instante, suava mesmo com o frio que fazia. Engoliu duas aspirinas ali mesmo, sem água, dizendo que a dor de cabeça tinha piorado desde a noite anterior. Ele não havia encontrado digitais no livro, só as minhas. E as dele, claro.

 - Nenhuma? Num livro tão velho? Nem da Dona Rúbia? Perguntei.

- Nem da Dona Rúbia, me disse ele, e mais: não havia registro do livro no sistema da biblioteca. Não havia como saber quem já tinha lido aquilo. Era uma publicação velha e sem passado.

Dois dias atrás fui até a delegacia para ver se dr. Vasques estava melhor e não, ele não havia melhorado. Em tom de confidência me contou que estava ouvindo risadinhas pelos cantos.

- A senhora tem estudo, não é?  É jornalista do maior jornal da cidade. Diga-me, eu estou ficando doente.
Pareço doente? Sinto-me cansado. Ouço essas risadas, alguns sussurros, e ando esquecendo as coisas. Por exemplo, não sei o que fiz com duas cadeiras da sala lá de casa. Elas sumiram. Meus quadros amanheceram no chão. E um sofá está todo rasgado, como se apunhalado por uma faca imaginária. Eu sei que não fiz aquilo. Pelo menos, não lembro de ter feito. E agora vira e mexe vejo uns vultos no espelho. Hoje vi uma menina de cabelos longos e negros sorrindo pra mim na porta de casa. Posso jurar que era a menina do livro. Mas ela sumiu. Tenho sonhado com sangue, muito sangue.

- Dr. Vasques, seria bom o senhor procurar um médico, respondi. Sai de lá preocupada com ele.

Ontem, a tragédia anunciada: a casa do delegado pegou fogo. Ele não conseguiu ser resgatado e morreu no incêndio. Os bombeiros informaram que possivelmente alguma guimba de cigarro tenha provocado o acidente. O curioso é que o delegado não fumava. Entre os destroços, encontraram apenas um livro, intacto.

O cativeiro de andrea

 
 
“É a verdade que assombra
O descaso que condena
A estupidez o que destrói
Eu vejo tudo que se foi
E o que não existe mais”

Legião Urbana,
Metal Contra as Nuvens
 
 Andrea não sabia se era dia ou noite. Desorientada, perderá completamente a noção do tempo em seu cárcere. Esta era a pior parte, não saber a quanto tempo estava naquele cubículo.
 Quanta respiração gasta a sós com o seu medo... Quantos pensamentos sujos povoaram sua mente em toda aquela desgraça... Tentou contar os segundos, depois os minutos, mas acabou por desistir. Era um exercício inútil, mesmo servindo de distração para o desespero.
 Inerte na escuridão, já explorará tateando cada centímetro quadrado de sua pequena prisão. Não encontrou qualquer ponto fraco, nenhuma fissura que pudesse abrir ou alargar.
 Um cano descia por uma grade tapada com tijolos, por onde entrava o pouco ar que respirava. Estendeu o cobertor corta febre sobre o próprio corpo, um dos poucos luxos que tinham deixado para ela.
Mesmo trancada em uma caixa, a vida seguia uma rotina. Tudo que ela tinha para medir a passagem do tempo era seu estoque de comida. Algumas barras de chocolate e garrafas de água, deixada pelos sequestradores.

 Ainda havia um bom tanto de chocolate, e isto lhe dava a entender que eles não viriam tão cedo ao cativeiro. Colocou um pedaço de chocolate na boca, mas não mastigou. Deixou derreter na língua, enquanto tateava as garrafas com água mineral. Estavam acabando, precisava beber apenas o necessário:
 Não vai durar muito... Preciso deixar para trás o desespero e pensar em uma forma de sair... Eu preciso!
 Sentiu nas pontas dos dedos as garrafas amassadas. Quando acabasse a água o que aconteceria? Com certeza havia mais por vir... Por que seu sequestrador forneceria comida e água, apenas para que ela morresse de fome dias depois? 
 Não, não, não... – pensou em seu delírio, repetindo a mesma coisa varias vezes, só para ter o prazer de ouvir um único som, mesmo que fosse da própria voz. – Raphael vai pagar o resgate, seja quanto for, ele vai da um jeito de pagar! Mas porque fizeram isto comigo? Porque, Deus?
 Encostou-se na parede e deixou a pergunta  ecoando errante em sua mente. A única resposta que conseguiu chegar foi o resgate, porque mais a sequestrariam? Mais se era assim, porque ainda não tinham negociado com seu marido?  Porque não tinham voltado para repor os alimentos? Eles não podiam adivinhar que ela vinha racionando desde o primeiro momento... Ou então, teriam sido eles presos, lhe deixando a própria sorte?
 O som de sua própria respiração preenchia a escuridão. Gemidos de pânico crescente:
 Tudo bem, tudo bem Andrea... – Insistia em se dizer – Pare com isso! Você sabe que tem pilhas novas. Basta instala-las do jeito certo e a lanterna volta a funcionar... Você sabe!
 Tateou o chão, recolhendo as pilhas novas. Respirou fundo, abriu a lanterna, apoiando a tampa com cuidado sobre os joelhos dobrados. Tirou as pilhas usadas, colocou-as de lado. Cada movimento que fazia era na total escuridão.
 Calma Andrea, você já instalou pilhas antes. Apenas as coloque ai dentro, lado positivo primeiro. Uma, duas, agora enrosque a tampa na extremidade...
  A luz surgiu, linda e esplendorosa. Era a esperança. Andrea emitiu um suspiro e deitou-se de costas, exausta, como se tivesse corrido dois quilômetros.
 Você recuperou sua luz, agora economize-a. Não a deixe acabar outra vez... 
 O que ela não conseguia controlar, sentada no escuro, eram os medos que vez ou outra a assaltavam: 
 A essa altura Raphael já deve ter negociado com os sequestradores. Pensou – Ele leu um bilhete, ou recebeu alguma ligação telefônica. Ele vai pagar, claro que vai!
 Ela o imaginou implorando para uma voz anônima ao telefone. O imaginou soluçando na mesa da cozinha, arrependido, muito arrependido por todas as coisas ruins que dissera a ela. Pelas centenas de maneiras diferentes por meio das quais a fez se sentir pequena e insignificante. Possivelmente, agora desejaria retirar tudo o que dissera, desejaria poder lhe dizer o quanto ela significava para ele...
  Andrea fechou os olhos ao sentir uma angustia tão profunda que parecia agarrar e apertar seu coração como um punho cruel. As verdades inquietantes de sua vida antes dali a massacravam. Era inevitável não pensar e avaliar o outrora:
 Você sabe que ele não lhe ama. Você sabe disso a meses! Porque pagaria para lhe ter de volta? Talvez até pagasse para lhe ver distante!
 Envolvendo o abdome com os braços, abraçou a sí mesma. Curvada em um canto de sua prisão, não mais podia evitar a verdade. Lembrou-se da expressão de desagrado do marido ao olhar para seu corpo nu, quando ela saiu do chuveiro naquela noite. Ou da noite em que veio por traz para beija-lo no pescoço e ele simplesmente a evitou. Coisas que não importava ao longo prazo, porque havia o amor que ela sentia por ele, para  uni-los.
 Sua vida estava assim, sentada em uma caixa, esperando o resgate de um marido que não a queria de volta... Esses pensamentos a aterrorizaram.
 Não. Não podia pensar assim. Não podia ser ela própria sua pior inimiga! Eles não tinham muito dinheiro, mas ele tinha um bom emprego no banco, com certeza iria recorrer até a presidência, se necessário fosse.
 Era sim necessário. Não podia ser muito dinheiro, os sequestradores deviam saber que eles não eram ricos.
 Deitou-se no chão, tentando adivinhar se era dia ou noite. Seu estomago reclamava por comida, mas os biscoitos já tinham acabado e os chocolates tinham que durar, não se sabia quanto tempo. Sua maior preocupação era a água... Perdida em pensamentos sombrios e lagrimas, adormeceu.
 Acordou assustada, não sabia quanto tempo tinha dormido, mais sabia que tinha sido a falta de ar que a acordou. Desesperada, acendeu a lanterna, posicionou em direção ao tubo de ventilação e seu coração disparou, depois de colocar a mão por baixo do tubo. Não sentia a minguada ventilação que entrava pelo tubo. Não! Eles não podiam ter tapado o tubo! Nenhum ser humano seria tão cruel!
 Sua angustia foi aumentando e o ar cada vez mais escasso a sufocava.
  Calma Andrea... Calma... – repetia para si mesma – Tudo não passa de um mal entendido, vai ver que para abrir eles tenham que vedar por completo... Não vai demorar e você vai ouvir o barulho dos tijolos sendo retirados e vai ver a policia gritando que esta tudo bem! Raphael vai estar lá encima, gritando que por fim o cativeiro foi descoberto e em alguns minutos você estará salva!
 O ar já não mais entrava em seus pulmões. Quanto tempo leva para alguém morrer sem ar? Não... Não sabia responder, pois perderá a noção do tempo... Quanto tempo se leva para morrer e se sentir liberta? Esse foi seus últimos pensamentos antes de sentir seus pulmões pararem.


     Em um antigo terreno da prefeitura destinado há anos à construção de um novo cemitério, um carro esporte para e seu motorista desce.
 — E então? – Pergunta um homem alto, moreno claro, na faixa de seus quarenta anos, usando um terno cinza e óculos escuro. – Ela já esta morta?
 — Esta sim, senhor Raphael. – responde um outro homem, que veio ao seu encontro quando viu o carro encostar. - O duto foi fechado há pouco mais de duas horas.
 Tirando um pacote do bolso, ele passa para o homem e diz.
 — E ela sofreu? Ela sofreu bastante?
 — Sofreu sim. Teve tempo para pensar em toda sua vida enquanto esperava esperançosa pelo socorro que não viria.
 Raphael sorriu ao imaginar Andrea rezando por sua presença. Ele que tanto a repudiou, agora conseguira provar o quanto a odiava. Conseguiu provar que o que sentirá por ela não era nem pena e nem desgosto. Era ódio e nojo.
 Você cumpriu com sua parte, estou cumprindo com a minha. A policia suspendeu as buscas, o rio onde o carro dela foi encontrado é muito perigoso. Eles afirmam que o corpo foi levado pela correnteza.
 Só uma pergunta, senhor – disse o homem que tinha acabado guardar no bolso o pagamento – Porque teve que mantê-la viva por tantos dias?
Ele mentiu ao responder:
 Tinha que manter uma carta na manga, caso a pericia descobrisse que o carro tinha sido empurrado ponte abaixo sem ninguém na direção, eu poderia insinuar que ela tivesse sido sequestrada, e até ajudar nas buscas. Do mais, ela era gorda e adorava chocolate. Foi um bom presente de despedida.
 Com um aceno de mão, Rafhael voltou a entrar no carro e partiu em alta velocidade. Agora era deixar passar o período de luto e curtir a brisa batendo em seu rosto. Viveria todos os dias comemorando o fim que planejou, respirando todo o ar a qual Andrea foi privada.

sábado, 17 de agosto de 2013

Intolerância Justa


Quero escrever linhas que me arranquem do peito uma dor,
Uma imobilidade, um desconforto, uma falta de cor e sabor
Arrancar como quem chuta uma pedra do calçamento
A sair rolando e fazendo barulho pelo chão de cimento
E incomodando a quem passa por perto, fazendo olhar torto
Que se dane, não quero mais sentir vontade de me fingir de morto

Quero falar palavras que incomodem a mim e a todos vocês
E fazer todos sentirem aquele velho desconforto mais uma vez
Quero um texto cruelmente afiado para cortar nossas vidas
Uma escrita intencionalmente engendrada para abrir feridas
Outrora fui calmo, pacífico e sereno. Não mais, agora é o caos
Vou revirar vosso lixo e rever os seus erros, os bons e os maus.

Quero atacar suas certezas e engrandecer suas inseguranças
Vocês que vivem de embalar ninharias tal qual fossem crianças
E proteger neuroses, e conquistar futilidades, e elevar absurdos
Empilharemos nossos ódios cegos e teremos nossos motivos mudos
Em nome desse desconforto, que nos devora e nos torna devedores
Em débito com a vida, com nossa existência e com nossos amores.

Quero matar sua cultura de vício, de medo, de ansiedade
Trazer ao chão e pisotear suas desculpas, espalhá-las pela cidade
Vamos sair pelas ruas exibindo seus erros, quer queira quer não.
Estaremos armados com todas as suas reclamações nas mãos
Será esse o dia em que pra seu governo, sua realidade cairá
Nas mãos da minha tolerância que ali, acaba por terminar.

Vem pra casa amor



Corre pra casa, amor
Que a rua está perigosa,
A vida anda difícil
Tem bandidos, tem horror
Há polícia, manifestantes
Idiotas, debutantes
Palhaço, poeta e ator
Há prefeito, vereador
Tem de tudo nessa rua...

Tem médico,
Tem até professor
Só não tem governador
Nem presidente, ou senador
Ah, muito menos deputado.

Estão todos escondidos
Em gabinetes no Senado
Nem aí pro que há de nós
Vem pra casa, amor
Que aqui, é a gente que importa
A sensação de fechar a porta
E aliviar nosso cansaço
Enquanto os jornalistas
As prostitutas, os humoristas
Disputam queda de braço
Pra saber quem tem razão.

Enquanto isso o povão,
Dança um funk sossegado
Pra desgosto meu e seu,
Num alto falante potente
Com luz de gato ligado
Do poste da vizinhança.

Vem, vem pra casa
Pra gente jantar e dormir
E tentar descobrir um jeito
De viver com mais respeito
Do que eles dão pra nós...
Pelo menos por enquanto,
Ainda estamos a sós.

Pelo menos por enquanto.

Doce liberdade - Parte 1

- “... Ela se jogou da janela do 5º andar...”

Aprendi com meus pais a ouvir e gostar de músicas antigas. Eu curto Legião Urbana, acho Renato Russo muito maneiro. Mas... Por que ela se jogou da janela? Moro no mesmo andar que ela...
Tenho dezessete anos, mas não sou como as meninas da minha idade. Acho que sou intelectual demais pra elas. Na verdade, não tenho muitos amigos. Talvez porque eu não seja amigável. Talvez? É. Não sou.
Rosangela é uma garota que posso considerar uma amiga. Ela é meio idiota, mas gosto dela... Nossa! Por que uma garota se jogaria do quinto andar?!
Não sou muito de sair, prefiro ficar em casa lendo um bom livro, mas uma noite dessas, Rosangela me convenceu a ir a uma festa promovida por universitários e um garoto me ofereceu um baseado.
- Não, obrigada.
- Careta.
O garoto saiu andando e oferecendo o baseado para todas as garotas da festa. Que estupidez!
Outro garoto se aproximou de mim.
- Oi.
- Oi.
- Estava observando você.
- Hmm.
- Meu nome é Carlos Augusto, mas todos me chamam de Carlinhos.
- Legal.
- Não vai me dizer o seu nome?
- Não.
Carlinhos é um garoto bonito, simpático até. Vinte e três anos, cursando Direito na UFRJ, bom papo, inteligente. Ele conseguiu me convencer a lhe dizer meu nome e desde então, temos saído juntos.
Carlinhos insistiu em conhecer minha família. Não vi nada demais nisso e então, numa noite, ele foi jantar conosco. Meus pais estavam encantados com ele.
- Vocês estão namorando?
- Sim.
- Não.
Meu pai havia feito essa pergunta do nada. O assunto nem era esse. E por que Carlinhos achava que estávamos namorando? Todos ficaram me olhando.
- O que é? – Perguntei meio irritada.
Para a minha sorte, minha mãe mudou o assunto. Após o jantar e mais um pouco de conversa, Carlinhos se despediu de meus pais e eu desci com ele até a entrada do prédio.
- Por que você disse que estamos namorando?
- E não estamos?
- Claro que não! Nem nos beijamos ainda!
- Podemos resolver esse problema agora mesmo.
Carlinhos me beijou. Era meu primeiro beijo... Na boca.
- E agora? Estamos namorando?
- Não.
- Ah, entendi! Você é daquelas garotas românticas e está esperando um pedido formal.
Eu, romântica?! Pedido formal?!
- Renata, você quer namorar comigo?
- Não.
- Por que não? Estou muito a fim de você, gata.
- Mas eu não. Sou muito nova para namorar.
- Você está na idade certa para namorar. E eu confesso que estou louco por você. Por favor, Renata! Vamos tentar!
Bem, eu aceitei o pedido formal. Só não sei por que.
Quando entrei em casa, meus pais estavam me esperando na sala e pareciam muito ansiosos.
- Aconteceu alguma coisa? – Perguntei, tentando adivinhar o que eles estavam pensando.
- É isso o que nós queremos saber.
- O que exatamente vocês querem saber?
- Você e Carlinhos se acertaram? Ele é um ótimo partido.
- Ah, mãe! Por favor!
Saí andando para o meu quarto e seguida por minha mãe, que não parava de falar de Carlinhos e de como ele era um ótimo partido. Deixei-a falar, até o momento em que não a ouvi mais.
Carlinhos e eu estávamos namorando há dois meses. Um dia, na escola, Rosangela me convidou para ir a outra festa.
- Bom dia, Renatinha!
- Bom dia por quê?
Rosangela sempre ria de tudo e de nada.
- Quer ir a uma festa no sábado?
- Outra festa daquelas?
- Não, não! Essa é bem diferente.
Rosangela deu um sorriso sinistro. Acho que ela estava tentando parecer misteriosa.
- Depois da aula te conto.
Após a aula, Rosangela foi para a minha casa, tínhamos um trabalho de Química para entregar no dia seguinte. Almoçamos e fomos para o meu quarto.
- Sábado é aniversário de uma amiga minha e ela vai comemorar em um bar na Lapa. Já conheço o bar, é maneiro. Quer ir?
- Na Lapa? Rosangela, a Lapa fica do outro lado do mundo.
- Ah, pára com isso, Renatinha! É logo ali e vamos de carro.
- De carro com quem?
- Com essa minha amiga. Ela é de boa.
- De boa. Certo.
- Vamos?
- Acho que meus pais não vão me deixar ir.
- Eles não precisam saber que nós vamos ao bar, você e eu temos muitos trabalhos para fazer e...
Rosangela fez um biquinho nojento.
- Você está sugerindo que eu minta para os meus pais?
- Uma mentirinha boba. Não pega nada.
- Se eu disser que vou com Carlinhos, talvez eles me deixem ir.
- Não! Carlinhos não pode ir de jeito nenhum!
- Por que não?
- Se você for, quando chegar lá, vai entender por que. Pare de ser chata, Renatinha! Quer ir ou não?

 

A mentira para meus pais colou. Eu estava na casa de Rosangela, quando a amiga dela chegou para nos buscar. A garota parecia um garoto. Rosangela nos apresentou.
No carro, a caminho da Lapa, Rosangela e Mari ficavam se tocando. Mãos nas mãos, mãos no pescoço, um beijo rápido enquanto o sinal estava fechado... Entendi tudo.
Quando chegamos ao bar, achei estranho ninguém pedir nossos documentos, afinal, éramos menores de idade. Rosangela cumprimentou várias meninas. Só havia meninas naquele bar. Se é que posso chamá-las de “meninas”. Rosangela estava bem à vontade. Eu não.
Eu permaneci sentada todo o tempo. Não conhecia ninguém e aquele ambiente... Até que, uma mulher chegou e cumprimentou a aniversariante e a todas que estavam à mesa. Inclusive eu. Ela me beijou no rosto e sentou-se à minha frente. Mulher cheirosa... Perfume masculino... Sorriso encantador. Mas o que eu estou dizendo? Pensando?
Às vezes, ela me dava um olhar... Não sei... Profundo. Eu me senti invadida, sei lá.
- Rosangela, onde é o banheiro?
- Vou junto com você.
No banheiro, Rosangela me interrogou.
- E aí? Você suspeitava sobre mim? Está chocada? Decepcionada? Surpresa?
- Não. Não. Não. Sim.
Ela riu. Como sempre.
- Você é tão engraçada, Renatinha!
Voltamos para a mesa e Mari estava conversando com uma garota. Rosangela ficou furiosa e partiu para cima da menina, sendo segurada por Mari. Confesso que fiquei assustada, nunca tinha visto Rosangela assim. Ela esbravejava, se debatia, parecia possuída por um demônio. E a garota que estava sendo ameaçada por Rosangela, parecia estar se divertindo com a situação.
Felizmente, alguém interferiu. A mulher cheirosa que me olhava profundamente, conseguiu convencer a garota a sair dali, acompanhando-a até outra mesa. Então, Rosangela começou a gritar com Mari e a esbofeteou. Caraca! Que tenso!
Mari me pareceu ser paciente e acalmou Rosangela, abraçando-a. A mulher voltou para a mesa e num gesto de carinho, passou a mão na cabeça de Rosangela.
- Está mais calma?
- Sim. Desculpe-me, mas eu não consigo...
Rosangela começou a chorar e ficava se desculpando com todas. Impressionante como não conhecemos as pessoas verdadeiramente. São as tais chamadas máscaras?
Uma banda começou a tocar e todas as meninas da mesa foram para perto do palco. Eu fiquei ali, sozinha, entediada. Peguei meu celular e entrei na internet. Pensei em ler algum livro, mas pelo celular era difícil e a conexão não estava ajudando. Distraída, não percebi a aproximação dela.
- Você não vai dançar?
Ela se sentou ao meu lado e colocou o braço no encosto da cadeira onde eu me sentava.
- Não.
- Não gosta ou não sabe?
- Não quero.
Ela sorriu.
- Nunca te vi por aqui.
- É. Talvez seja porque eu nunca tenha vindo.
Ela sorriu novamente.
- Você é amiga da Mari?
- Não.
- Veio com quem?
- Com Mari e Rosangela.
- Ah, certo. Então você é amiga de Rosangela.
- É.
- Não sei o seu nome.
- Tudo bem. Também não sei o seu.
- Ok!
Ela se levantou e foi se juntar às amigas, perto do palco.
Minutos depois, a banda começou a tocar Legião Urbana. Dessa vez eu tive que me render aos apelos. Eles realmente me queriam lá, queriam mesmo.
“...Me diz, porque que o céu é azul, explica a grande fúria do mundo...”
“Tire suas mãos de mim, eu não pertenço a você. Não é me dominando assim, que você vai me entender...”
“Todos os dias quando acordo, não tenho mais o tempo que passou, mas tenho muito tempo, temos todo tempo do mundo...”

Após cantarem, a banda fez um intervalo e se retirou do palco. Voltei para a mesa juntamente com Rosangela e Mari. Pedi um refrigerante ao garçom e me sentei.
- Enfim, algo te agradou esta noite.
Era ela novamente.
- Gosta de Legião. Eu também curto muito. Minha preferida é “Há Tempos”. E a sua?
- Gosto de todas.
- Do que mais você gosta?
- Por que está tentando me conhecer?
- Por que está tentando parecer desagradável?
- Estou?
- Sim, está.
Ficamos nos olhando por alguns segundos e ela interrompeu.
- Só estou querendo conversar, passar o tempo. Se quiser, posso me retirar.
- Por favor. Obrigada.
Ela se levantou e sentou-se ao lado de Mari e de Rosangela. De vez em quando, ela me olhava e sorria. Isso era incômodo. Será que ela estava pensando que eu fazia parte desse negócio?
Um bolo foi deixado na mesa e cantaram parabéns para Mari. Abraços, beijos, o primeiro pedaço do bolo...
- Pra você, meu amorzinho!
Ela entregou o bolo para Rosangela e elas se beijaram na boca. Legal.
A banda voltou e lá se foram elas. Uma música me chamou a atenção e eu também fui. “Hotel California – Eagles”.
Rosangela e Mari dançavam coladinhas e outros casais também. Ou eu deveria dizer “outras casais”?! Alguém pegou em minha mão e me puxou, me colocando à sua frente e me abraçando... Não era bem um abraço, ela estava dançando comigo.
- Por favor, me solte. Não quero dançar.
A garota me ignorou e me apertou, impedindo que eu me soltasse dela. Eu tentei me livrar daquela maluca, mas ela era tão forte e estava me machucando.
- Por favor, me solte!
Ela continuava e eu a empurrava, em vão.
- Dóris, a garota está comigo.
- Opa! Desculpe aí chefia!
A garota me soltou e eu voltei a respirar.
- Você está bem?
- Estou. Obrigada.
- Quer continuar aqui ou prefere voltar para a mesa?
- Prefiro voltar.
Ela me acompanhou e eu sentei.
- Renata.
- Como?!
- Meu nome é Renata.
Ela sorriu.
- Fabiana. Prazer em conhecê-la, Renata.
- Obrigada. Eu não sei como lidar com essas coisas.
- Que tipo de coisas você se refere?
- Isso que aconteceu. A mulher me agarrando e me forçando a dançar. Isso foi... Constrangedor. Para não dizer assustador.
- Dóris é meio maluquinha, mas é gente boa.
- Meio? Você está sendo gentil, não está?
Ela riu. Uma risada tão espontânea, tão gostosa de ouvir.
- Você tem razão. Dóris é completamente pirada. Mas ainda assim, é gente boa.
Fiquei sem saber o que falar. Na verdade, eu não tinha nada para falar.
Fabiana ficou me olhando daquele jeito. Caraca! Eu estava começando a me sentir desnuda. Desnuda de minha alma.
- Vamos embora, Renatinha?
Nunca fiquei tão feliz em ouvir a voz de Rosangela falando meu nome no diminutivo.
Levantei-me e, quando ia sair, Fabiana me segurou pelo braço.
- Espere! Quando nos veremos novamente?
- Não nos veremos.
Ela pareceu decepcionada, mas não disse nada e soltou meu braço. Mari tinha ido pagar a conta e assim que ela voltou, fomos embora.
Quando chegamos à casa de Rosangela, tive que esperar no carro, até que elas se despedissem com beijos e mais beijos na boca.
Depois do banho, nos deitamos.
- O que achou da noite? Diferente, não foi?
- Bem diferente.
- Você se interessou por alguma menina?
- Claro que não!
- E Fabi?
- O que tem ela?
- Não vai me dizer que você não reparou nela. Ela é linda, charmosa, educada, gentil... Tudo de bom!
- Deixa Mari te ouvir falando assim.
Ela gargalhou.
- Amanhã... Hoje... Já passou da meia noite, né amiga? Vamos ao bar à tarde. Você vai querer ir?
- Não. Rosangela, quem era aquela garota que você queria matar?
- Aquela vadia! É a ex de Mari. Eu a odeio!
- Por que a odeia?
- Porque ela sempre faz de tudo para me provocar. Ela já tentou nos separar várias vezes, inventando coisas sobre Mari e sobre mim. Eu não a suporto! Por mim, ela pode morrer.
Rosangela me contou as barbaridades que a tal garota havia feito. Nem tão barbaridades assim, mas...
- Boa noite, Renatinha.
- Boa noite.
No dia seguinte, logo depois do café da manhã, fui para casa.
- Bom dia, minha filha! Como foi o trabalho? Conseguiram terminar?
- Sim.
- Você já tomou o café da manhã?
- Já.
- Ótimo! Daqui a pouco o almoço estará pronto.
- Precisa de ajuda?
- Não, obrigada.
- Então vou para o meu quarto.
Logo que entrei em meu quarto, liguei meu notebook e entrei na internet. Vi e.mails, abri o site onde leio livros e entrei nas redes sociais onde faço parte. Em uma delas, havia um convite de adicionamento.
- Fabiana?!
Antes de aceitar, pesquisei o perfil dela. Vi fotos e algumas postagens que estavam visíveis. Bom, ela parecia ser inofensiva e aceitei. Imediatamente, recebi uma mensagem.
- Bom dia, Renata! Obrigada por me aceitar e seja bem vinda!
Olhei, pensei, olhei novamente e respondi.
- Bom dia. Obrigada.
- Dormiu bem?
- Sim.
- Eu também. Sonhei com você.
Esse papo de “sonhei com você” é só para ter a minha atenção. É sempre assim.
- Renata?! Você ainda está aí?
- Estou.
- Você leu que eu sonhei com você?
- Sim.
- E não está curiosa em saber como foi o sonho?
- Não.
Pela mensagem enviada, acho que ela estava sorrindo.
- Você continua.
- Continuo o que?
- Tentando parecer desagradável.
- Você me deixa frustrada.
- Por que frustrada?
- Porque eu faço um esforço enorme para que percebam o quanto sou desagradável e você diz que estou tentando?
Acho que dessa vez ela gargalhou. De repente, “silêncio”. Ela parou de escrever por 6 minutos.
- Eu beijei sua boca.
- ???
- No sonho, eu beijei sua boca.
- Sonhar não é proibido e ainda não se paga impostos.
- Sonhar não é proibido, é verdade. E beijar sua boca? É?
- Não. Meu namorado sempre beija minha boca.
- Deixe que ele aproveite disso enquanto pode.
- ???
- Bom domingo pra você. Até logo, Renata.
Ela saiu?! O que ela quis dizer com “Deixe que ele aproveite disso enquanto pode.”?
Fui ver as fotos dela. Agora havia mais álbuns abertos. Alta, morena, cabelos curtos, olhos verdes, malhada. Em todas as fotos ela está sorrindo... Aquele sorriso espontâneo e encantador. Ela é bonita. Muito bonita.
Saí da rede social e fui ler meu livro. Meia hora depois, alguém chegou por trás e tapou meus olhos com as mãos.
- Oi, Carlinhos.
- Oi, meu anjo. - Disse ele, me virando e me dando um beijo na boca.
Lembrei-me do que Fabiana falou. “Deixe que ele aproveite disso enquanto pode.”
- O que está fazendo aqui?
- Sua mãe me convidou para almoçar. Não está feliz em me ver?
- Não é isso, eu só não te esperava tão cedo.
Ele ficou me olhando.
- Você está bem?
- Estou. Por que pergunta?
- Você está com olheiras, parece não ter dormido bem.
- Dormi tarde e acordei cedo. Mas estou bem.
Desliguei o notebook para dar atenção a ele.
- Vamos para a cozinha, vou ver se minha mãe precisa de ajuda.
Ele me abraçou.
- Vamos ficar um pouco mais aqui. Quero beijar minha namorada linda.
Ele foi me levando para a cama e me deitou, deitando-se sobre mim. De repente, senti uma de suas mãos alisando minha coxa.
- Carlinhos...
- Hmm! Que pele macia você tem.
E me beijou de novo. Sua mão não parava quieta. Passava pela minha perna e subiu, tocando meu seio e depois minhas nádegas. Isso estava me incomodando.
- Pare! - Eu o empurrei. - Você ficou louco? Meus pais podem entrar e nos vir assim.
- Desculpe. Você está certa. Depois do almoço vamos para a minha casa.
- Eu não vou para a sua casa.
- Renata, eu preciso tocar você, te beijar, te abraçar. Que tipo de namoro é esse que nunca ficamos juntos?
- Um namoro normal. Ainda estamos nos conhecendo.
- Depois de dois meses ainda estamos nos conhecendo? Ah, por favor, Renata! Esse namoro está parecendo com o tempo de meus bisavós. Ridículo.
- Ridículo? Se você acha isso, então, podemos terminar agora.
Ele me puxou e me apertou contra a porta.
- Eu sou louco por você! Eu estou muito apaixonado, Renata. Nunca senti isso por nenhuma garota. Eu só quero...
Ele começou a beijar meu pescoço, minha boca e passar as mãos em meu corpo. Eu não o estava reconhecendo, Carlinhos estava descontrolado.
- Pare com isso! O que deu em você? Nunca me tratou assim.
- Eu já disse, preciso sentir você, preciso ter você.
O que ele estava querendo dizer com isso?
- Renata, eu não quero te forçar a nada, mas já passou do tempo.
- Passou do tempo de que?
- De transarmos. Eu quero você.
Ele realmente estava louco.
- Por favor, Renata! Vamos para a minha casa, eu prometo que não farei nada se você não quiser. Por favor!
- Não me sinto pronta ainda.
- Eu farei com que fique, garanto.
- Não quero.
- Não quer? Você sabe quantas garotas estão a fim de mim? Sabia que é só eu estalar os dedos e todas farão o que eu quiser?
- Faça isso então.
- Posso ter qualquer mulher, quantas eu quiser.
- Já disse. Faça isso.
- Mas eu quero você, só você.
- Se me quer mesmo, terá que esperar.
Abri a porta e fui para a cozinha. Minha mãe pediu que eu arrumasse a mesa. Carlinhos sentou-se na sala e começou a conversar com meu pai.
Depois do almoço, Carlinhos insistiu que eu fosse para a casa dele. Eu me recusei. Irritado, ele foi embora.
Lavei a louça do almoço e fui para o meu quarto. Minha mãe entrou.
- Você e Carlinhos brigaram?
- Não.
- Ele parecia nervoso. Nem quis ficar com você hoje.
- Ele está cansado, só isso.
Minha mãe se sentou na cama.
- Filha, precisamos conversar sobre um assunto delicado, mas necessário.
- Pode falar mãe.
- Você e Carlinhos já transaram?
Que droga! Será que hoje é o dia do sexo e eu não to sabendo?
- Não.
- Ótimo. Muito bom. Mas, se isso acontecer, você sabe que deve se prevenir e...
- Já sei mãe. Se eu transar, vou usar camisinha, não se preocupe.
- Ótimo. Muito bom.
Minha mãe me deu um beijo no rosto e saiu. Liguei meu mp3 e ouvi minhas músicas. Beatles, Eagles, Pink Floyd, Black Sabbath, Rita Lee, Capital Inicial e claro, Legião Urbana.

 
CONTINUA...
 

 
Qualquer semelhança com nomes e acontecimentos, terá sido mera coincidência. Não são fatos reais.

Floresta do mal

Na mente dos homens, vive alojadas algumas idéias de loucuras, cuja ciência não tem explicações, tão absurdas quanto a historia contada neste conto, como se fosse o universo dos loucos, é a imaginação do escritor. Sua historia, frutos da imaginação, insana, produtivas ou improdutivas, a ciência talvez explique!

     O calvário das almas amaldiçoadas, um lugar aonde os corpos são enterrados, bem longe de seus familiares.
     Os poucos guerreiros de uma batalha fria e conturbada enterram os mortos na floresta negra para que os espíritos não encontrem o caminho da salvação.
     Os guerreiros do inferno defendem uma idéia de que o bem não existe e quem ousar desafiar esta idéia, ou provar o contrario;
     Será morto e suas almas condenadas a viver na penumbra dos horrores.
     Suas honras serão manchadas na memória dos viventes.

Bento – onde estou? Que lugar é este?

     Bento é um homem publico cobrador de impostos, ele tem tido divergências com a sua chefia dentro da hierarquia do seu Departamento.
     Isso devido ele ser honesto e não compartilhar com os corruptos, assassinos e ladrões.
     Os bandidos armaram para Bento morrer e levar toda a culpa mediante a sociedade, inclusive de seus entes queridos; esposa e filhos.
     Após ele morrer, os maus espíritos o encaminharam para uma espécie de sala de espera dos horrores, ali, já havia uma guerra do bem contra o mal, os espíritos maus, queriam que Bento se vingasse de seus algozes, mas o espírito do bem, o teriam outras ações para Bento, porem, vai demorar em os espíritos do bem entrar no charque que se encontra a alma de Bento.

     O lugar é escuro, não tem sol, a terra é úmida e o pouco de mata que existe, é quase sub-merça por uma lama preta, gosmenta e com cheiro de sangue.
     Bento, um cobrador de impostos justo, o único de sua espécie, contrariou os homens de maus espíritos, corruptos, almas negras que preenchem o intimo dos corpos ainda em vida humana.
     Por isso; fora morto e sua alma lançada na floresta de horrores, um lugar onde o espírito paga pelos atos que se comete em vida.

Bento – quem é você? Porque eu estou aqui?
Criatura – aqui é o inferno, um lugar que não se pode imaginar em quanto este vive, aqui vêm apenas os condenados. Você deve sofrer por seus maus feitos.
Bento – eu sou justo, trabalhei com honestidade, então, aqui não é meu lugar, me ajude a sair, por misericórdia.
Criatura – mesericórdiaaa? naaãoo, você não terá misericórdia, você terá que assombrar os que vivem, deve semear a discórdia entre eles e matá-los. Por isso foi enviado para cá. Para se vingar dos que o condenaram. Só assim poderá ser liberto. Não, não vou me tornar um assassino. Minha alma é pura, eu sou limpo. Diz Bento!

     Criatura profere uma gargalhada seguida de um eco estrondoso.
     E parte em direção ao pântano, deixando Bento chafurdado no lamaçal de sangue e enxofre.

     A Criatura é um ser de quatro olhos, pele rústica e em relevos, igual à de um elefante, asas enormes e com espinhos, embora tenha asas, ele não voa, suas asas parecem estar quebradas.
     Apenas os anjos voam.
     E ao voarem, passam bem altos, eles assim o fazem, tentando encontrar almas boas desprezadas no charque negro.
     A missão da Criatura é esconder as almas para que os Anjos não às encontrem.
     A Criatura é o anjo do mal.

Bento – em pensamento; não, eu não posso ficar aqui. Vou caminhar por estas trilhas, mesmas escuras, lamacentas. Vou tentar encontrar alguém, deve ter mais alguém por aqui.

     O cansaço toma Bento e ele se deita em baixo de uma figueira brava, de lá, ele vê os Anjos sobrevoando a floresta, ele sente-se tão cansado, que não consegue sinalizar para os Anjos.
     Em breve, ele é surpreendido pela Criatura, que vem em sua direção carregando dois corpos estraçalhados para os jogarem no charque.
     Os corpos caem próximo de Bento.
     Ele vê quando as almas saem dos corpos estraçalhados.
     A Criatura faz Bento carregar os corpos e o intimida a não fazer amizades com as almas.
     Bento observa uma das almas, é malvada e cruel, a outra, esta consumida em duvidas e desilusão, inda não decidiu se boa, ou ma.
     As almas se discordam entre si, elas não aceitam ajuda de Bento.
     A criatura percebe, e lança a alma que se sente em duvidas num precipício escuro.
     A outra se ajoelha aos pés imundos da criatura e se coloca a sua inteira disposição, a criatura fita Bento e lentamente, volta os olhares para aquele imundo espírito.
     A criatura o levanta de seus pés, olha bem dentro de seus olhos e dá uma ordem;
- traga Bento para nosso lado.
     Então terá perdão, eu o promovo a uma espécie de secretario, diz a criatura!

Bento é conhecido por suas boas ações, em vida, por isso sua alma é pura, isso o torna vulnerável. Se ele for contaminado pelo mal, poderemos usá-lo para conseguirmos o que queremos; quanto mais almas nos corromper-mos, maior o nosso império será. A floresta esta infestada de almas, o pouco de terra que existe, esta forrada de ossos podres. A escuridão é quase permanente. O mundo dos vivos esta cada vez mais corrompida, a cada dia nasce mais e mais o mal. Mas os vivos não percebem que isso é coisa dos maus espíritos. E seus destinos é um charque de podridão, angustia e dor, uma dor quase que eterna.

     Bento em pensamento - Hoje os anjos sobrevoarão os céus escuros deste inferno, vou tentar me comunicar, eles devem conhecer meus pensamentos.
     Durante um tempo, não se ouve nenhum rumor, mas uma lamentação vem da profundeza do precipício, a alma caída, lamenta, arrepende-se de suas fraquezas.
     Bento arrebata aquela alma e a traz para seu lado.
     Juntos eles esperam os anjos.
     A criatura percebendo o bem que Bento pratica, não tem duvidas, esta alma não fará o que ele quer, agora, a alma negra terá que agir, imediatamente!  O mal precisa proliferar e tocar a alma dos que ainda estão em vida, os viventes precisam conhecer mais invenções, de forma que os vivos praticam mais o mal e passem a desacreditar num amor, o mesmo que os salvariam.
     Bento agora, não esta mais só, tem outra companhia.
     Uma alma arrependida e decidida a praticar o bem.
     Os anjos sobrevoam, cada vez que uma boa alma em um corpo com vida esta orando por alguém, e esta noite, seus entes queridos oram por Bento, os anjos voam e desta vez, Bento se comunica com eles.
     Desta forma, suas almas saem do charque resgatado pelas orações de seus entes queridos.
     O charque, o lodo maldito continua, este lugar é para receber aqueles que não acreditam no bem.
     Somente os justos se livram dele.
     Por tanto, não adianta denegrir, caluniar ou levantar falsos testemunho contra aqueles que praticam o bem.
     Eles sempre estarão a salvos, contra o mal.




                    “A imaginação do escritor é o universo dos loucos”


                                              Fim

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Hospício

                            Os Loucos são os melhores
                                              Eles enxergam além
                                              Não temem a incompreensão
                                              Não temem ser sempre tão iguais
                                              Os loucos são visionários
                                              Trancados longe das vistas dos comuns
                                              Dos comuns escravos da sanidade



 Escapou pelos corredores estreitos e limpos do hospício, se esquivando das seringas pontiagudas dos enfermeiros. Encarou os muros altos e escalou ousado, em sua gana por fugir.
 Ao chegar ao topo, contemplou a altura exagerada, andou se equilibrando no muro torto, mas ao avistar os enfermeiros subindo em sua captura, correu desequilibrado e faceiro, desafiando o equilíbrio.
 Quanto chegou próximo a uma arvore alta, pulou ousado, como um gato astuto, alcançando um galho cumprido. Escorregou o corpo com a fina roupa pelo tronco da arvore velha e seca, ganhou a calçada e em seguida a movimentada avenida.
 Os enfermeiros desesperados abriram os portões e o perseguiram vorazes, segurando uma camisa de força e seringas com calmantes.
 O louco correu em meio à multidão tão apressada e desesperada quanto ele, babando medo e sua anciã de fugir... Chegou a um prédio e entrou, subiu pelo elevador, enquanto os enfermeiros subiam as longas escadas até o topo.
 Logo todo o prédio foi cercado, o demente chegou ao ultimo andar e correu para a cobertura, e lá de cima do prédio de 18 andares, avistou todo o mundo que suas vistas há tempos não contemplavam.
 Quatro enfermeiros finalmente chegaram à cobertura. O louco subiu no parapeito e ameaçou:
— Eu puloooo!!! Eu me pulo e caio em mim! Na redundância de dias melhores!!!
 Os enfermeiros se aproximavam calmamente, o louco sorriu, abriu os braços e continuou a dizer:
— Não creem, não é? Não enxergam meu absurdo comum nem minha fala mansa que lhes profetiza meu fim? Maldito sejam vocês, que me forçarãon a morte escabrosa! Me limpem lá embaixo, arranquem meu sangue das solas gastas de seus sapatos e me bebam em vinho e espírito!
 Despencou em desleixo, enquanto os enfermeiros em agonia acompanharam o corpo rasgando o infinito e se espalhando em meio à avenida.
 Acordou no hospício, rindo desengonçado, olhando o corredor estreito e os enfermeiros calmos, lamentando o fracasso de seu plano de fuga de um sonho ruim

sábado, 10 de agosto de 2013

I, the moon and you



          1943 – A cidade de São Paulo recebe um ilustre viajante, trata-se de Jerônimo, um poeta e escritor que vem de uma pequena cidade do interior de Salvador Bahia para buscar inspiração numa grande cidade.
          Jerônimo tem hábitos nada comuns, algumas pessoas em seu estado, pensas que ele agi estranho às vezes por ser um homem com a imaginação de poeta, muito ativa! Seus hábitos são peculiares.
          Na cidade onde ele mora ninguém conhece seus familiares, seus atos, são misteriosos.
          No bairro do Bixiga em São Paulo, ele alugou uma casa grande, embora morasse só, suas bagagens precisam de espaço.
          São muitos livros, e há correntes de aço, ele não se aparta delas.

Ao conhecer Gracinha, uma linda jovem e estudante de letras, Jerônimo apaixonou-se, foi amor à primeira vista, assim que chegou à cidade grande.
          Sentado sobre o degrau da escada na porta da frente de sua nova casa, ele campos sua primeira poesia, apaixonado.
          Esta viria dizer pela primeira vez o seu verdadeiro sentimento, mas em poesia, a doce Gracinha, não o temeria.

“VERSOS SOMBRIOS”

Meus versos são sombrios desalentos
No silencioso ecoar das vozes
Ouço ao longe a agonia dos algozes
Tais fantasmas que marcham sonolentos.

Quem poderá entender os lamentos
Dessas almas que vagueiam a atrozes
Uivam vorazes quão lobos ferozes
E versam em seus ávidos tormentos.

Eu vejo a morte embalando o poeta
Na melodia lúgubre que o completa
O sorriso confunde-se com pranto.

Eles prosam, valsam com perfeição
Em que treva me estenderás a mão?
Grita o poeta em seu fúnebre canto.
             
          Ao terminar o versejar apaixonado, embora com um tom de negro tormento, Gracinha o abraça com juras de amar aquele desconhecido poeta.

           No inicio da noite Gracinha sai da casa de Jerônimo, onde estava com seu amado e sai a caminhar pelas ruas do Bixiga, ela vai em direção a sua casa.
           Uma leve dor de cabeça a atormenta, ela para por um instante na calçada em frente ao portão de entrada, ate que passe a breve tontura, por certo ocasionada pela dor de cabeça.
           Ao entrar em seu quarto, Gracinha abre a janela para apreciar a lua, esta noite a lua estará entrando em uma fase de fascínio, a lua cheia.
           Em uma rápida e confusa visão, ela percebe um vulto que cruza o canteiro de pequenos arbustos no centro da rua.
           Ela esfrega os olhos com as costas da mão, parece não entender a estranha visão. Parece um cão enorme; Gracinha – estou ficando maluca, deve ser efeito da dor de cabeça.
           Ela vai a sua estante na sala, toma um analgésico.
           E senta-se a beira de sua cama.
           Tal lembrança da imagem vista, a perturba.
           Gracinha vai mais uma vez a janela para ver se a tal visão se repete, mas tudo que ela vê, são as folhas ainda balançando.
           Em pensamento; - será que foi mesmo um cão enorme? Mas... Muito grande! Gracinha fecha a janela, a cortina e se põe a preparar-se para dormir, em seu pensamento meio turvo, vem Jerônimo, ela se encanta com o romantismo e a graça do soneto versejado pelo amado, um breve sorriso desalinha seus lábios doces e carnudos, ela fecha os olhos abraçando seu travesseiro de cetim e dorme com desejo ardente de sonhar com o estranho de voz rouca, suave e carinhoso que conhecerá naquela tarde.

           Jerônimo com gestos sutis, fez com que Gracinha se fosse para longe dele, pois a tarde deste dia já começava a fechar as cortinas da noite e a lua já exerce seu poder sobre a maldição que domina o poeta.
           A partir dali em diante, ele não responde por seus atos.
           Portanto, ele precisa adentrar em sua casa, acorrentar-se com sua inseparável corrente de grilhões em aço.
           Ao adentrar o porão da casa, logo após sua amada ter partido; ele não encontra a corrente, devido à mudança, as coisas ficam meio perdidas.
Ele sente-se perdendo o domínio, Gracinha vem em sua memória de uma forma forte, sente como se uma cachoeira escorresse em seu cérebro.
           Não encontra a corrente e a metamorfose tem inicio, a lua passa com sua graça e domínio sobre o homem, as nuvens se esvaem num céu escuro descobrindo a lua de forma graciosa e imponente, a transformação do belo para o terrível e amedrontador monstro das trevas rasgadas pela lua cheia, é inevitável.
            Jerônimo sai nas ruas estreitas, ele vai se esgueirando pelos cantos das casas e becos, ele busca sua amada, ele tem o faro de um cão no cio, ele sente o perfume de Gracinha e a segue, bem próximo de sua casa, ele a vê adentrando e fechando o portão, seu instinto de lobo, o faz se esconder entre os arbustos, embora inconformado, decide cruzar a rua em direção a um bosque, onde teria sua fome saciada, vorazmente, embora inconsciente.
            Mal sabe Jerônimo que sua amada o viu, mesmo sem ter clara certeza, apenas como a um vulto.
          Esta noite; Gracinha estava à salva da morte atroz.
          Na manha seguinte, gracinha sai em direção à praça, ela a travessa para ir a uma loja de chapéus, ela pensa em presentear seu amado com um belo chapéu de linhagem Italiano.
          No centro da praça, um pequeno grupo de pessoas reunido em volta de algo que lhes chamavam atenção.
          Gracinha aproxima-se.
          E surpreende-se com a cena terrível, uma pobre jovem caída ao chão e seu corpo dilacerado com profundas marcas de mordidas de cão.
          Gracinha se apressa a caminhar em outra direção, seu intuito é sair o mais rápido possível daquele local tenebroso.
          Pobre moça – diz Gracinha, pobre moça, o que deve ter acontecido com ela? Por enquanto, pergunta sem resposta, ela esta chocada.
          Após ela comprar o chapéu que desejava presentear seu amado.
          Tomou um taxi e foi o mais breve possível à casa de Jerônimo.
          Ao chegar a casa; percebeu a porta da frente com uma leve danificação nas dobradiças, como se estivesse sida arrombada.
          Gracinha adentra a casa com cautela, ela caminha lentamente, abraçada com a caixa de chapéu e se ponha a prestar atenção no ambiente, um tanto misterioso.
           Ela para em frente à porta do quarto de Jerônimo, a porta entre aberta, propicia uma visão parcial da cama do moço.
           Ela percebe que seu corpo esta nu, ao aproximar da cama, ele tem ferimentos cicatrizados nas costas, e observa pelos grossos no lençol, como se ali, um cão enorme e preto tivesse dormido com o rapaz.
           Ele acorda e ao perceber a moça em seu quarto, irrita-se, ele pede para ela sair. Gracinha para no centro da sala enorme da casa.
           Jerônimo apareceu na porta de entrada, agora vestindo uma calça de linho preta e uma camisa de cetim marrom, levemente amarrotada.
           Jerônimo preocupa-se com a moça e diz para ela não vir a sua casa sem antes avisá-lo.
           Gracinha comenta com ele sobre o que presenciou na praça próxima a sua casa. Gracinha – uma jovem perdeu a vida de forma cruel e violenta perto de minha casa, eu venho aqui para conversar com você sobre este assunto, fiquei impressionada.
           Jerônimo – quando eu estava na Bahia, ouvi dizer que São Paulo tinha muita morte violenta.
           Não deste jeito, atacada por cachorros, diz Gracinha! Como assim? Cachorro. Jerônimo se assusta e se demonstra curioso, porem de uma forma discreta, sem deixar transparecer sua preocupação.
           Jerônimo sente gosto de sangue na boca e discretamente se retira, vai ao banheiro da casa olhar seu rosto, principalmente seus dentes.
           Gracinha o convida a um passeio as margens do rio Tiete, haverá uma competição de pequenos botes no rio.
           Jerônimo aceita o convite, mas pede a moça para passar com ele na Igreja antes. Gracinha – vai se confessar? Sim, diz Jerônimo, sem maiores comentários.
            No caminho ele pede ao taxista para deixá-los na Igreja, o Padre João esta no confessionário, lá, o rapaz faz uma confissão dramática, antes, ele se certifica se o Padre não o vê.
            Padre João – fala meu filho, o que fez de errado para que eu possa perdoá-lo. Jerônimo – perdoar-me? Padre, não tem perdão para meu pecado, diz com uma voz meio embargada.
            Como assim meu filho? Indaga o Padre.
             Eu matei varias pessoas, a moça morta na praça ontem à noite, fui eu, quem a matei.
             Um mórbido silencio toma aquele lugar santo, o Padre ameaça abrir a cortina, Jerônimo percebe e diz, com um tom ameaçador, não, não abra, eu não posso deixar que me veja, eu não tenho culpa, eu sou um monstro d noite, eu, não tenho culpa, reza por mim, reza Padre, só isso eu lhe peço.
             Ao confessar, não esperou a benção do santo homem e partiu, pegou a moça pelo braço e saiu apreçado, ele não queria correr o risco de ser visto pelo Padre.   Caminharam algumas quadras, Jerônimo esta em silencio, Gracinha também não lhe perguntou nada durante o trajeto.
            Embora ao chegar ao clube, do rio tiete, ela lhe indagou; - o que confessou ao Padre? – nada, nada importante, mas de agora em diante, não vá a minha casa sem me avisar, por favor, eu a amo e não a quero mal falada.
           Uma senhora ao lado deles, segurava um pequeno cachorrinho, Jerônimo olhou para o animalzinho e seus olhos brilharam, fato, que o cão, o estranhou, com gestos de submissão, apenas se encolhendo ao colo da senhora, sua dona.
            Ao retornar a casa naquela tarde, Jerônimo deixa Gracinha em sua casa e vai logo embora, ele sente arrepios no corpo e teme a transformação na frente da moça.      Naquela noite, Jerônimo encontra as correntes e se acorrenta a uma pilaste no porão da grande casa.
            A meia noite a lua brilha terrivelmente, em quanto os casais apaixonados trocam juras de amor sob o luar, Jerônimo tem sua maldição presente, a transformação acontece, ele uiva desesperadamente, a ponto de chamar atenção da vizinhança, senhor Antenor e sua esposa Lidia, não seguram suas curiosidades e decide adentrar a casa para ver de perto o que causa tamanho pavor.
             São surpreendidos por um enorme cão de dois metros de altura, a corrente longa, possibilita o ataque lamentável do lobo contra a senhora Lidia, Para salva-la, Antenor se lança sobre a fera, mas é estraçalhado sem piedade.
             A pilaste se rompe, o grande lobo sai às ruas do bairro arrastando os grilhões da corrente de aço.
             O barulho e ouvido pela vizinhança, que assustados trancam suas casas e passam a observar a lastimável cena pelas frestas das portas e janelas.
              A cena é terrível, um lobo caminhando sobre as duas patas traseira, ensangüentado e arrastando enormes correntes.
              Jerônimo não consegue retornar a casa, o lobisomem vagueia pelas ruas e becos, feito a um cão perdido na madrugada, durante estas caminhadas, fora deixando muitos corpos caídos e rastros de sangue por onde passava.
              A noite que o atormenta separa dele a amada.
              Uma comoção no bairro alarma os policiais que saem a caçar o lobisomem, Gracinha ouvindo o que os policiais falavam, ficou curiosa e pensou dividir com Jerônimo.
              Ela foi a casa dele, mas não o encontrou.
              Ela vê roupas rasgadas caídas ao chão e começa a recolher, quando se depara com algumas fotos.
              São fotos de um terrível monstro, o lobisomem e em uma gaveta, ela encontra jornais com reportagem citando casos de lobisomem na cidade de onde vem Jerônimo.                  Ela descobre que seu amado é o lobisomem.
              Gracinha sai em desespero para tentar encontrá-lo e salva-lo da morte certa.
              Ao chegar num beco, ela vê vários carros da guarda nacional parado e policiais fazendo o cerco, a tensão é grande.
              Gracinha ouve uivos desesperado de um lobo tentando uma fuga, à noite esta cortinada por uma neblina baixa, e de longe percebe um grande individuo se aproximando dela, ao se aproximar, gracinha sente a presença de Jerônimo, embora a visão seja aterrorizante, ela não sente medo e vai ao encontro do lobisomem.
             Ela tenta chamar sua atenção; - Jerônimo é você? Pelo amor de deus, é você?
             O que esta acontecendo meu amor? O lobisomem para, ele sente o cheiro da amada por alguns instantes, os policiais se aproximam. – moça, moça, afasta-se daí, nos vamos atirar.
             O padre João segura ela pelo braço, vamos filha, vamos, este monstro não é seu amor, é uma aberração, deixa a policia cuidar dele. – não, exclama a jovem com piedade, ele é bom, eu o amo.
              Num breve momento, ouvem-se vários tiros.
              O Padre corre tentando proteger a jovem, muitos tiros são alvejados.
              Num determinado momento; ouve-se um grito de voz humana; - deixa-me atirar, vocês estão gastando munição sem efeito.
              O bicho só morre com bala de prata.
              Gracinha não reconhece a voz, nem poderia, era um caçador que segue a trajetória de Jerônimo desde sua primeira transformação, o caçador é Valentim, o lobisomem matou sua esposa e dois filhos na Bahia há dez anos, desde este tempo, Valentim segue Jerônimo, ele tem certeza que é o lobisomem.
             Valentim – agora eu pego você, o lobisomem parte em direção ao homem determinado a matá-lo.
             Valentim corre no beco, ele tenta retornar, mas o lobisomem o pega, um segundo de silencio; ouve-se o tiro, uma bala de prata acerta em cheio o coração do Lobisomem.
             Gracinha desespera-se e sai correndo ao encontro daquele enorme corpo peludo caído, ensangüentado no chão.
             O lobisomem não reconhece à jovem, mas um olhar de suplica mira os olhos de Gracinha.
             Ela se joga sobre o corpo dele, e o abraça, lamentando a cena, ela chora; - não, não, você é bom, é um poeta, carinhoso e eu o amo.
             A metamorfose tem inicio inverso agora, o monstro começa a se destransformar bem na frente de seus algozes.
             Em alguns minutos, um corpo nu surgiu por entre os enormes pelos grossos e negros.
             A mão de gracinha esta sobre o ferimento da bala, ela tenta estancar o sangramento, embora inútil tentativa.
             Ainda da tempo de uma breve declaração de amor de Jerônimo; Eu, eu a amo, amei você desde a primeira vez que a vi.
             Perdoa-me, perdoa.
             Levemente, Jerônimo eleva os olhos para a lua cheia, e diz; - porque não me salvaste? Tanta desgraça cometi por seu encanto.
             Agora, estou caído diante da minha amada, sem poder fazê-la feliz.
             Padre, Padre, me de sua benção, eu não quero ir para o inferno.
             O padre João promete rezar por ele.
             A lua cheia se esconde por entre as nuvens especas e por entre as tímidas estrelas.
             Jerônimo fecha os olhos, por certo em direção a uma luz, que não é da lua cheia.
             Gracinha é amparada pelo Padre e os policiais os levam embora.
             Ao chegar a casa, Padre João; - Gracinha minha filhas, você esta sangrando, deixa me ver este ferimento.
             Gracinha foi mordida momentos antes de o Lobisomem morrer. Mas agora, a vida precisa continuar.



Esta historia termina aqui, mas a lenda; continua viva!