quinta-feira, 31 de outubro de 2013

O preço do pecado

São dez horas da manhã. Eu estou na escola acuado no canto da sala. Os alunos riem de mim e zombam de minha deformidade. Andressa me olha com desprezo, é a primeira a me chacotear: “Olha o corcunda de Notre Dame chorando feito otário!”. Eles me olham com nojo, e riem da piada sem graça, pois se julgam perfeitos. Pensam serem os bons, só porque são normais. Eu sou feio, tenho cara torta e nariz arredondado. Nasci assim e ainda sou obeso. A professora Helena está na sala, mas nada faz pra me defender, ela não gosta de mim, mas me olha com piedade.

 Eu recebo cascudo dos valentões e sou humilhado pelas meninas. Douglas se aproxima, é o mais folgado deles. Ele me olha, sorri e puxa meus cabelos. Eu choro e tento esconder meu rosto. Em vão... Douglas me dá um tapa na cara. Eu continuo chorando, mas não tenho raiva deles... Tenho raiva dela, da maldita Helena!

 É noite. Estou no quarto zelando pela fotografia dela, minha professora. Helena é bela, tem olhos castanhos como o meu, e pele clara como a minha. Seus cabelos são tingidos de loiro, mas eu sei que a cor natural é preto. Eu a odeio, mas não consigo parar de observá-la, roubei esta fotografia ontem na sala dos professores. Eu observo a imagem fixamente e planejo minha vingança. Eu sei de toda a verdade, mas ela nem desconfia.

 É mais um dia de aula, eu caminho pelo corredor da escola, mas não entro na sala. Não, não entro... Não entrei, pois vi ela, Helena. Ela está sozinha, sentada em uma cadeira na sala dos professores. Não poderia ser mais fácil, estava de costas para mim. Coitada da Helena... Coitada para quem não a conhece, mas eu sim, eu a conheço e sei de seus pecados.

 Eu caminho até a sala, mas não estou sozinho, arranco do bolso meu amigo: "Uma faca de cozinha que trouxe de casa". Eu me aproximo, ela nem percebe. Eu sinto que minha vingança se aproxima e não irei falhar. Eu a seguro pelos cabelos e com um único e preciso golpe, perfuro sua jugular. Ela golfa sangue e agoniza em desgraça. Eu a vejo cair no chão e pronunciar suas últimas palavras:
 
–  Por que fez isso comigo...
 Ela morre. Eu me aproximo do corpo quente e me sujo com o sangue dela, sim, me sujo com o sangue do meu sangue...
 Um dos professores entra na sala, ele se espanta e me tira de cima dela. Eu fico encolhido no canto da parede, enquanto outros professores e alunos adentram no local. Todos suspeitam de mim, me xingam e me julgam... Mas ninguém sabe da verdade.

 É começo de tarde e eu estou na delegacia. O homem grande de olhar penetrante me pergunta:
 – Por que a matou garoto?
 Eu observo pelo vidro grande da sala meus pais adotivos, sinto então um vazio no peito por saber que ficarei algumas semanas sem vê-los. Mas eles sabem o motivo pelo qual cometi essa monstruosidade. Sim monstruosidade, pois me chamam de “monstro” no jornal da tarde.
 Eu olho para policial que me interroga, respiro fundo e lhe respondo com frieza:
 – Ela é minha mãe de sangue. Usava drogas, e é bem por isso que eu nasci assim, deformado e esquisito! Ela tentou por vezes me abortar. Sem sucesso. Quando nasci à desgraçada logo me deu para adoção. Quando cresci, meus pais adotivos me revelaram toda a verdade, e eu quis me aproximar dela. Mas ela não me conhecia, não imaginava que eu estivesse tão perto, muito menos que eu soubesse da verdade. Eu apenas fiz com que ela pagasse o preço... O preço de seu pecado!

Bom apetite



 Se você gosta de um prato fino (requintado, chique, apurado, elegante, primoroso, sofisticado), deveria apreciar as iguarias do Restaurante Casa Vallucci.
 Embora digam com repudio que os donos de lá são um velho pútrido e seu neto encapetado, que preparam todos os pratos, a comida de lá tem um gosto magnífico!

 Mas se querem mesmo saber o grande segredo do tempero, lhes recomendo que averiguem por si mesmos. Para tal feito, se faz necessário que entrem cautelosos pela porta dos fundos... Pulem a mureta baixa onde ficam as garrafas vazias e os sacos de lixo, fiquem a espreita atrás dos gigantescos botijões de gás e testemunhem em silencio a mágica acontecer... Mas eu disse em silencio, absoluto silencio, pois se forem pegos, podem fazer parte desta tal  “mágica”.
 Foi bem isto que aconteceu com Edvaldo. Ele tomou tanto cuidado para não ser pego... Mas, fracassou.

 Depois de jantar com sua noiva Estefânia uma suculenta carne ao molho de girassol e pasta de fígado levemente cozida com sangue grosso, Edvaldo lambeu os dedos e perguntou ao garçom:
 — Mas que carne é essa? Bovina ou suína? Frango eu sei que não é!
 — É carne humana, senhor. – respondeu o garçom, com a maior naturalidade do mundo.
 Estefânia riu, mas Edivaldo não. O garçom igualmente sério pediu licença é saiu, pomposo e firme, rumo á outra mesa.
 Mas aquela indagação permaneceu firme na cabeça de Edvaldo. E por mais que tentasse dormir, não conseguia, pois o gosto suculento daquela carne que lhe deu tanto prazer, não queria calar seu delírio. Poderia realmente ser de um ser humano?
 Há, estava tão bem cozida! O pedaço suculento deixava escorrer molho temperado com o corte da faca.... Quando levou o primeiro pedaço na boca, lambuzado com a pasta de fígado, Edvaldo não teve duvidas de que aquela seria a melhor refeição de sua vida. E o molho de girassol então? Deus meu... As sementes trituradas e semi-torradas estouravam em câmera lenta na sua boca, como que se a comida descesse até seu estomago tal qual uma caravana em festa! Os atritos da faca e do garfo no prato de porcelana soavam como musica, que ritmavam a excêntrica refeição.
 — Qual diabos é o segredo deste prato? – se perguntou após acordar de um sonho – Será mesmo carne humana? Búfalo? Avestruz?

 Na noite seguinte, lá foi ele novamente. Sozinho, sentou-se á mesa e olhou o cardápio. Linha por linha, vasculhava as palavras em busca de um prato que identificasse o tipo ou a origem da carne. Não encontrou, mas ao final do cardápio, viu um prato comum, comum em muitos e muitos restaurantes do mundo: o prato do chefe.
 No entanto, esta opção diferenciava-se por uma coisa: o preço.
 Era caro. Muito caro. Tão caro que era impossível alguém pedir, pois com aquele mesmo valor, seis ou sete pessoas comeriam fartamente inúmeras iguarias naquele mesmo restaurante:
 — Eu quero o prato do chefe. – pediu Edvaldo ao garçom.
 — Perdão senhor, mas não entendi.
 — Eu quero o prato do chefe. Acompanhado com o vinho Português Cavalo Maluco.
 O garçom arregalou os olhos enquanto tirava o pedido. De fato, do que ele lembrava, aquele prato nunca havia sido vendido. Ao menos nunca despertou um interesse tão obsessivo em alguém. O garçom chegou até a cozinha e espetou o pedido. O velho cozinheiro decrépito pegou a comanda, leu e se arrepiou:
 — Não creio! Quem foi o infeliz que pediu isto?
 O dedo foi apontado até a mesa 21, onde estava sentado o curioso Edvaldo.
 O velho conformado respirou fundo, olhou para o neto de apenas 12 anos e disse:
 — Sandrinho, vou precisar da sua ajuda.
 Os dois caminharam até os fundos do restaurante. O velho baixou a calça branca, deitou-se de bruços sobre uma bancada e pediu ao neto:
 — Corte um bom pedaço do meu glúteo. Arranque uma fatia um tanto grossa, um corte rápido e eficiente, sem outras dilacerações.
 O menino olhou com atenção para as nádegas de seu avô... Reparou lá uma enorme cicatriz, como que se um bom pedaço de seu traseiro já houvesse sido arrancado antes. O velho antes de morder uma rolha de vinho contou:
 — Já faz algumas décadas que alguém não pede o prato do chefe! Tinha esperança que com um preço tão alto, tal iguaria seria um luxo desnecessário. Me enganei.
 O velho de fato não gostava de desagradar seus clientes. O menino que era muito eficiente em seu corte, arrancou uma banda da bunda (hehehe) do velho avô. A dor era tão violenta que o ancião talhou ao meio a rolha entre os dentes.

 Fogo baixo e carne na frigideira, fritada com orégano, pimenta do reino e manteiga, com molho de casca de jiló e raspas de limão. O cozinheiro decrépito perfurava com o garfo repetidamente a própria carne fresca, no intuito de que o molho penetrasse.
 Sandrinho picava rapidamente abobora e berinjela. A batata souté cozinhava na panela de pressão. Edvaldo esperava sentado a mesa, comendo a salada de entrada enquanto bebia água e vinho, ansioso pelo prato principal da casa.
 Logo o sino da cozinha tocou. O garçom rapidamente coçou o bigode fino e foi buscar o pedido.
 A carne suculenta fervilhava com o molho em uma travessa de barro seco. Edvaldo foi servido. Cortou o primeiro pedaço e ao colocar na boca, antes mesmo de mastigar, chegou a uma conclusão: valia cada centavo!
 Da cozinha, o velho com a anca dilacerada sorria em tenra satisfação, olhando o cliente meticuloso matar sua doce vontade de comer algo insano e inusitado:
 — Vou subir o preço. – disse o velho chorando e rindo ao mesmo tempo – Ou subo ou tiro do cardápio, pois pela cara dele, vai pedir mais vezes!
 Ao fim, Edvaldo parecia dar-se por satisfeito. Limpou a boca e pediu a conta, deixando generosa gorjeta ao meticuloso garçom:
 — Preciso que me leve até a cozinha, pois quero agradecer e elogiar o chefe. Pode ser?
 Com tão gorda gorjeta, o garçom o levaria até mesmo a Disneylândia, se assim ele quisesse! Que nada, aquela cozinha exótica era bem mais interessante...
 O velho decrépito limpou as mãos no guardanapo para receber os cumprimentos do cliente exigente:
 — Devo confessar que nunca comi tão bem! O senhor e seu neto são dois grandes mestres na arte de cozinhar!
 — Obrigado. – agradeceu o velho tímido – Devo confessar que seu pedido me surpreendeu. Difícil foi garantir que a casca do jiló ficasse no ponto ao entrar em atrito com as raspas de limão, mas ao fim, deu muito certo.
 Mas aquela pergunta... Aquela maldita pergunta poderia ter passado despercebida... Poderia nem ter sido feita, mas foi:
 — E a carne? A carne é do que?
 O pequeno encapetado sorriu leve, o velho engoliu seco e respondeu algo ensaiado:
 — É segredo. Mas lhe garanto que tem boa procedência e é fresca.
 De súbito os olhos de Edivaldo encontraram a calça manchada de sangue do cozinheiro. O cliente percebeu o sangue esvair do ferimento grave, que mesmo tratado as pressas, ainda necessitava de cuidados. Teve exata certeza de que a afirmação debochada do garçom era verídica. Sabia a procedência da carne, e mesmo assim não sentiu vontade de vomitar.
 Saiu dali às pressas, pensando estar louco... Em devaneio, seus pensamentos entraram em conflito contra ele mesmo, e em revelia com suas convicções, tratou de se curar, chegando a um certo ponto:
 — Vou investigar! Preciso ter certeza de que fatos e coincidências não entrem em confronto na minha cabeça confusa! Preciso averiguar se o que comi é mesmo carne humana!
 Ele então se enfiou por entre os carros do estacionamento privado... Chegou até o portão dos fundos, destinado a fornecedores e entregadores. Já lá dentro, pulou a mureta baixa e desviou seus passos das garrafas vazias e os fedidos sacos de lixo. Ganhou um espaço por dentre os grandes botijões de gás, onde tinha visão total dos imensos freezers do lado de fora da cozinha. Ficou em absoluto silencio, certo de que não seria pego.
 Foi então que testemunhou o menino abrir um dos freezers. Sem cerimônias, Sandrinho arrancou de lá o tronco de um cadáver fresco, que mal teve tempo de congelar. Com cautela, arrancava filetes magros de carne, enquanto que Edvaldo testemunha sua hedionda façanha. Eis que a lamina afiada entrou em atrito com o osso da costela. O menino invocou com os ossos. Queria quebra-los. Olhou a sua volta, procurando pela marreta. Não a encontrou:
— Vovô! – gritou atrevido – Onde diabos esta a marreta?
 Quando ouviu uma garrafa se quebrar, Edvaldo arrepiou-se dos pés a cabeça. Ao virar-se, a marreta nas mãos do velho acertou em cheio o meio de sua cabeça. Com o golpe violento, caiu em cima dos sacos de lixo:
— A marreta esta aqui, Sandrinho. Esqueça os filetes desta carne. Teremos ingredientes frescos para o resto desta noite...

 Edvaldo acordou com o barulho da faca de açougueiro sendo amolada na pedra. Com a boca amordaçada, tentava gritar de olhos arregalados, mas não conseguia:
— Quanta ingratidão... – dizia o velho testando o fio da faca – Foi tão bem atendido... Tão bem servido... Lhe dei parte de mim para seu deleite, e mesmo assim, ousou adentrar em meus domínios no insano interesse de desvendar meus segredos ocultos... Lhe digo uma coisa, meu jovem refinado: queria tanto saber sobre meus segredos, que agora, és parte deles!
 O restaurante estava cada vez mais lotado e os pedidos não paravam de chegar...Os garçons apertavam os passos pelo salão, enquanto as frigideiras fritavam alho e cebola. O menino lia as comandas e falava:
— Filé ao molho de mostarda e pasta de fígado com tomate seco pra mesa 12! Ensopado de costela e legumes para a 3 e também para a 2! Posta ao molho madeira...
 E a lamina afiada talhava a carne fresca do homem curioso... O homem que mesmo inerte em sua dor, sentiu estranha gratidão ao lembrar-se do seu ultimo banquete: o prato do chefe.
 O garçom danado levava os pedidos frescos na mesa, servia os pratos dos famintos, enquanto que com um sorriso ensaiado, desejava:
— Bom apetite!
 

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Prostituto das letras


 
 Defini-lo em linhas rápidas?
 Puto e esganado, escrevia e vivia só pra ganhar pouco dinheiro. Palavras esdrúxulas na ponta de um cigarro barato, tragando frases intragáveis, arriscando-se em se perder em linhas imaginarias. Este é o excêntrico Prostituto das Letras, e embora muito se especulasse, quase nada demais se sabia sobre ele.


 Dizem os tortos que ele é um homem comum, que usa chapéu largo e carrega uma maleta vermelha. Nesta maleta tem exatamente uma centena de folhas de sulfite, com letras Times New Roman 12. Letras que formam um livro esquisito, que conta sobre um homem que queria tomar café com o Diabo.
 Ouvia-se uma historia não confirmada sobre Lindalva, uma moça da cidade pequena ao sul, que se matou após se iludir com suas promessas vagas. Contam que ele arrancou tudo o que ela tinha, até mesmo a esperança, a levando ao ato extremo. Enforcou-se em uma arvore. Era um pé de ipê roxo.
  Lhes digo que embora estes fatos ecoem contra a moral deste rapaz, nada pode ser afirmado contra ele. Não existem provas, apenas circunstancias e fatos, os fatos apontam para todos os lados, e em nenhum destes lados sua reputação pode ser afetada.  Mas embora seja necessário, o moço escritor não tem um nome “publicável”, nem mesmo um nome na autoria de seu livro... Acho que é o jeito tímido dele dizer que esta e não esta ligado com pessoas e coisas.
 E o Prostituto rasgou o mundo com sua maleta vermelha que guardava seu maior tesouro, seu maior legado,com o titulo provisório: “Tomando Café Com o Diabo”.
 E o Diabo é lá criatura de tomar café? Mas o Prostituto das Letras não se importava com esta indagação, pois era cego para o que os outros diziam ou pensavam, ele só acreditava naquilo que escrevia, naquilo que criava.
 Em vários e vários momentos da vida o escritor amador se vendeu por um tanto de dinheiro. Se vendeu pra levar adiante sua odisseia, seu sonho perigoso de contar ao mundo sobre um homem que queria tomar café com o Diabo. E em cada cama que acordava, sentia-se o próprio Diabo, só que sem o gosto forte de café na boca.
 Era belo, tímido e voraz. Uma maquina afiada de fazer sexo, algo bom que sabia tirar proveito. Língua e toques afiados, tudo para fazer valer o alto preço que cobrava. Elas se satisfaziam plenamente e retribuíam, certas de que valia muito apena. E valia.
 O escritor soube que na Noruega existia uma Bailarina aleijada que dançou com o próprio Diabo em um teatro em ruínas. Tratou de voar para lá, no interesse de conversar com a mulher...
 E em um jardim cheio de rosas vermelhas e quase despetaladas, o Prostituto encontrou-se com a Bailarina. Ela era velha e os poucos dentes que tinha na boca, eram podres. Mesmo assim ele a beijou ardentemente, pois era de seu costume pagar por aquilo que queria ouvir.
 A Bailarina sentada em sua cadeira de rodas, arrancou o cobertor que cobria seu colo. O Prostituto das Letras viu então suas duas pernas esmagadas, ainda banhadas em sangue, mostrando fraturas expostas e carne dilacerada. Horrível de se ver!
Ele arrepiou-se todo, ela calma, bebeu um gole de chá e lhe contou:

— Dancei com o Diabo sim. Ele de fato é um sujeito formidável e me foi muito gentil. Deixou que eu conduzisse os passos, mas no meio da musica, o teatro em ruínas acabou por desabar de vez. Um caibro caiu sobre minhas pernas. Mesmo ferida, eu queria continuar a dançar. É tão generoso o Diabo! Ele me tirou dos escombros e continuamos a valsa... Me apertou contra seu peito, enquanto meu sangue lambuzava suas calças. Ele não se importou, me beijou a boca e disse que a dança lhe foi um grande prazer.
 Uma mosca caiu dentro do chá do Prostituto das Letras. Mesmo assim ele bebeu, esmagando o inseto entre os dentes, encantado com o testemunho da Bailarina aleijada:
— E onde posso encontra-lo?
 A mulher inerte nas doces lembranças sorriu. Sorriu sim, boba de si mesma, boba e realizada, dizendo em encanto:
— Ele esta sempre aqui e ali... Vez ou outra vem, mas não quer mais dançar. Diz que esta ficando velho e cansado. Mas se quer mesmo encontra-lo, recomendo que faça como eu fiz.
 O homem não entendeu. Ela então continuou a dizer:
— Eu quis tanto dançar com ele que escolhi minha musica preferida e o esperei. Eu limpei o velho teatro, coloquei o disco na vitrola e o aguardei. Ele enfim veio! Dançamos e me encantei... Valeu apena!
 O Prostituto sorriu satisfeito. Levantou-se da cadeira e beijou novamente a Bailarina velha, prometendo em um momento propicio retornar para lhe conceder uma dança.
 Retornou ao seu país de origem, disposto a tomar café com o nobre Diabo.
 A mesa farta montada às três horas da tarde se destacava na casa grande e velha. O aroma do café borbulhando na cafeteira infestava o ambiente que outrora trazia um cheiro almiscarado. Era podridão disfarçada.
O Prostituto das Letras sorriu com a maleta vermelha no colo e esperou pelo seu convidado.

 As moscas esvoaçaram pela cozinha semi-limpa, pousando por sobre as frutas, pães, bolos e bolachas. O escritor tentou espanta-las, pois não queria fazer feio ao Diabo. Não conseguiu. Elas eram atordoantes e atrevidas. Vieram para ficar.
 Eis que a campainha tocou. Ansioso, o Prostituto deixou a maleta de lado e foi abrir a porta. Era o Diabo, com suas calças manchadas com o sangue limpo da Bailarina velha.
 O cheiro de café queimado impregnava a sala. O Diabo entrou e o escritor empolgado o convidou á se sentar.
 Não queria mesmo fazer feio, espantou as moscas e encheu a xícara de café do Diabo. O tinhoso bebeu um gole curto, o Prostituto bebeu também e lhe contou:
 — Escrevi um livro. Conta sobre um caixeiro viajante que se hospeda na casa do Diabo. Os dois tomam café juntos e...
— Pois deixe-me ler. – pediu o Diabo, esticando a mão, esperando pelos escritos do homem.
 Acontece que o Prostituto das Letras era cheio de toques, e embora apreciasse a companhia de seu ilustre convidado, hesitou em dar-lhe de ler.
— Deixe me ler! – insistiu o coisa ruim, quase que sem paciência.
— É que está pronto para publicação... Creio no azar, ninguém pode ler antes da publicação...
 O Diabo riu maroto e disse que aquilo era bobagem. Insistiu pela terceira vez. O escritor que não queria ser rude, abriu a maleta vermelha e passou as folhas ao Diabo.
 E ele leu a primeira pagina. Leu devagar, vez ou outra sorria leve e discordava, mas na maioria das vezes, concordava e apreciava.
Quando terminou de ler à primeira, a colocou no colo sujo de sangue, fazendo o Prostituto das Letras se incomodar. Seu trabalho primoroso estava encharcado de sangue limpo.
 E cada folha que terminava de ler, o maldito colocava sobre o colo com o sangue da Bailarina velha. Na ultima folha, a de numero 100, riu escancarado, aplaudindo o belo final:
— Bravo, bravo, bravo! És um belo final! Digno de ser publicado, lido e relido. Confesso que não esperava grandes coisas de você depois de ter tomado tão ruim café, mas a historia... A historia valeu a visita!
 Entregou as folhas ensanguentadas ao escritor. Tão logo ele notou que o sangue fedia, sentiu incomodo em guarda-las novamente na maleta limpa:
— Pois fique com elas e releia, se assim quiser. Tenho uma copia a sete chaves. Mesmo porque, estas estão sujas e de nada me servirão.
 O Diabo feliz abraçou os papéis lambuzados e disse em tom de profecia:
— Pois farão grande sucesso! De fato temos em mãos um Best Seller, digno de aplausos e prêmios... Alias, falando em premio, consegues sentir o cheiro?
 O Prostituto encarou o Diabo e perguntou:
— Cheiro do que?
 O Diabo meticuloso inclinou o queijo e começou a fungar alto, procurando pelo cheiro no ar:
— É cheiro de premio... Sinta!
 Tão logo respirou fundo, sentiu ele o cheiro pútrido de carniça. Ouviu as moscas zunirem e olhou pelas costas do Diabo. Viu então Lindalva, enforcada e podre, rodeada por moscas, pendurada pelo pescoço no pé de ipê roxo. O Prostituto levantou-se de sua cadeira e caminhou até ela, pisando por sobre as flores meio que azuladas do ipê. Tirou seu chapéu em tom de luto, ouvindo o Diabo lhe dizer:
— De certa forma eu lhe devo, caro amigo. Este de fato foi um grande premio que me destes. Não vejo outra escolha a não ser ajuda-lo em sua odisseia, lhe instruindo para enfim alcançar seu objetivo. Como tem que ser.
 O escritor levou a mão até o rosto deformado da moça suicida. Colocou o polegar no canto de sua boca e falou ao convidado:
— Ela era tão bela e cheia de vida... Tinha tanto a oferecer e eu aceitei... Entrei devagar em sua vida e levei tudo comigo... Tudo!
 O Diabo enfim se levantou, colocando as folhas amassadas e ensanguentadas debaixo do braço. Pôs a mão no ombro de seu anfitrião e disse, sem delongas:
— Ela pagou e achou justo. Você lhe apresentou uma vida alem de suas perspectivas. A balança foi equilibrada e de certa forma justa, pois ela viveu intensamente e quis mais, não encontrou e viu que não faria sentido seguir. Se tornou meu premio. Eu e ela agora somos gratos a você. Ela já lhe pagou, eu estou lhe pagando.
 O Diabo lhe estendeu um cartão dourado, sorriu e contou:
 — Este cartão é de uma vaca feia e encantadora que lhe concederá a chance de ouro! Trata-se de Margot Ferrell, uma agente literária muito conceituada e exigente. Ela certamente se encantará com você e suas linhas. Poderia lhe desejar boa sorte, mas creio que não ira mais precisar disto. Precisa é de um pseudônimo. Creio que posso te dar um.
 O Diabo assim fez. Antes de ir, beijou o rosto do Prostituto das Letras e partiu, levando consigo o escrito ensanguentado e seu premio.
Honrado pela visita e pela graça, o escritor com novo nome deu um largo sorriso, firme em dar o próximo passo.
 Acordou duas noites depois na cama da imunda agente literária, Margot Ferrell. A luz forte do sol bateu em sua retina quando a persiana do luxuoso apartamento foi aberta pela grotesca. A feia mulher nua acendeu um cigarro longo, tragou e falou:
— Hora de acordar, escritor. Tens uma coletiva de imprensa daqui a menos de duas horas. Os repórteres querem saber sobre Dalton Sorvino, o jovem e belo escritor que se destacou em uma obra fascinante, curta e direta.
 Apagou o cigarro no cinzeiro e cobriu o corpo feio com uma camisola grossa. O Prostituto das Letras se levantou da cama grande e respirou fundo, pronto para colher os frutos podres que plantou.
Dois Meses Depois...
 O jardim da velha Bailarina Norueguesa estava seco. Mesmo assim ela tomou seu chá, recebendo o ilustre convidado:

— Não pensei que retornaria. – disse ela, sorrindo tímida com os dentes sujos e podres.
— Como não voltaria? – perguntou Dalton Sorvino, o Prostituto das Letras – Lhe devo uma dança, não?
 Ela ficou encabulada quando ele lhe estendeu a mão, lhe convidando para dançar.
A vitrola velha girava o disco grosso, enquanto a Bailarina feliz levantou-se com dificuldade de sua cadeira de rodas. O escritor de terno branco ignorou o sangue que escorria em abundancia das pernas macetadas da mulher. A tomou em seus braços e dançou calmamente, arrancando dor e alegria de mais alguém...

domingo, 13 de outubro de 2013

Falando Sério

 
              Quando olhei para ela, pensei que o amor era algo distante, que todos contam mentiras sobre o amor, que eu tinha mais pecados que poderia suportar, mas ela moveu o corpo, deixando o lençol sobre a cama, levantando em um ato discreto,então me senti pleno, como homem, ao mesmo tempo recebi o perdão de Deus.
                Petrificado diante do seu corpo, confuso, me torturava, pois não era o deus que poderia satisfazer qualquer desejo dela.
               O travesseiro, livre testemunha do amor, não falava nada, ele não vai esquecer.  Eu vou esquecer, pois haverá outro momento, nem sempre romântico, nem sempre selvagem, porém sempre ao lado dela, nem melhor nem pior, apenas um novo momento, que vai superar aquele de qualquer jeito. Pois é e aquele foi. Sei que o tempo não é nada, pois nada podemos fazer nele.
        
      A tristeza invade qualquer um, até mesmo a pessoa mais feliz do mundo, algum dia acorda triste. Pensei que fosse infeliz, até ela chegar com seus cabelos soltos, sorrindo, falando, alterando tudo a sua volta.
                O mito do amor, as flores do dia regado a sua presença. Nunca aprendo, pois sou criança, nem sei se tudo isso é verdade, ou obra de um santo, um anjo, que fez da minha vida um enigma.
               Sei que ela me ensina a ser bom, tal qual Nietzsche queria, sem hesitação, dono de meu destino.
               -Vem para cama – disse, olhando nos meus olhos, como sempre faz.
               -Agora – respondi. Queria pensar mais, ela queria o repouso à luz de um pequeno abajur, pois as crianças dormem em um quarto de brinquedo, em um reino dourado, escondido do mal e eu preciso ficar de guarda, há tantos perigos!
               -Sinto frio, já é tão tarde! – coloquei o meu corpo pesado ao seu lado, senti o perfume, algo que me libertava, levitei em uma nuvem de lá vi o mundo.
               -Vou dormir. – Ela disse, ajeitando o corpo pequeno ao meu.
               Ficaria vigiando, era o meu dever, diante de todos os anjos, nada poderia fazer só observar, o medo que me atinge é o medo do tempo, que arrasta para o novo dia.
               A marca do amor é na alma, muitas pessoas não acreditam, outros duvidam escondidos e fingem, pois são céticos, discípulos de Hume, para o qual nada é pior que o homem, no entanto o que sabemos?
               Talvez sabemos só o que sentimos, o raciocínio, a matemática das elucubrações metafísicas de nada adianta, somos pessoas castigadas pelo medo, alguns admitem, outros nada dizem, em outros arde esse medo de forma definitiva.
               Levanto para tomar água, sinto os pés no chão, limites de um abismo, ao mesmo tempo extraordinário e assustador de estar vivo.
               Tenho um amor e uma saudade imensa dela, me sufoca, me liberta e me faz entender que nada é maior que esse sentimento.
               Quando volto à cama ela dorme, sei que tudo pode ser uma grande ilusão, que tudo pode desmoronar em um único dia, que todos esses anos juntos nada vão representar quando o tempo levar tudo, ou quando um furacão derrubar essas sólidas bases.
               A vida com ela é a minha solução, procuro viver essa gigantesca força que costumamos chamar algumas vezes de amor, difícil de cuidar, difícil de achar e fácil de perder.

A garota que senta ao lado

Um homem pegava o mesmo ônibus todos os dias para ir ao restaurante onde trabalhava, por volta das cinco da manhã já estava no ponto, esperando a condução. Era a mesma rotina, e como o coletivo andava sempre lotado, dividia o banco com obesos e idosos reclamando do descaso que o governo os tratava, eram sempre os mesmos assuntos.
Rick estava acostumado com aquela vida, até uma certa manhã, uma jovem estudante linda e loira dos olhos azuis, mas com jeito de patricinha, resolve sentar ao seu lado. Ele ficou até meio constrangido com a presença dela, não estava acostumado a ver pessoas bonitas. Ás vezes Rick olhava para ela, observando a janela embaçada disfarçadamente, mas a menina permanecia séria ouvindo musica no foninho do seu celular. No entanto, ele devia perder a esperança, Rick era casado e tinha um filho pequeno com sua esposa. Mas a loirinha começou a pegar o mesmo ônibus que ele todo santo dia e sentava ao lado dele, independente do busão estar lotado ou não.
Porém, ela começa a falar no celular com alguém ao seu lado:
- Eu nem sei quem é você, como quer que eu vá te encontrar?..... Eu sei que você me achou linda, mas eu estudo querido.....
Rick era obrigado a ouvir o mesmo papo toda hora, e ela sempre desligava o aparelho sem falar nada, nunca dava um " Olá".
- Metida! - falou Rick indignado, quando ela não estava perto.
No dia seguinte, a garota senta ao seu lado mais uma vez e inicia outra conversa com o cara misterioso:
- Eu sempre vou naquele barzinho também.... Sério que você me viu? Por que não foi falar comigo?... Vergonha do que amor, eu não mordo não..... Onde você quer me encontrar hoje depois da aula? ....... Tá certo então, no mesmo lugar na avenida Joaquim Benefácio..... Espero que você não seja um maníaco.... Brincadeira, até mais beijos.....
Ela desliga e fecha a cara, fingindo que não tinha falado nada, Rick pensou em aconselhar a não ver esse cara, mas pensou que poderia achar ele atrevido, afinal ela era uma garota mimada que se achava uma verdadeira princesa. Na manhã seguinte, a garota não apareceu no ônibus e Rick sorriu sozinho, imaginando que o príncipe virou sapo. Mas passaram-se alguns dias e nunca mais a garota apareceu e o lugar ao seu lado, sempre ficava vazio. Até que ao chegar em casa, liga a televisão e vê uma notícia de uma jovem estudante e loira desaparecida há uma semana e a família dela estava apavorada. A mulher de Rick, sem saber de nada, disse:
- Coitada! Tão linda e será que não tem ninguém para ajudar a encontrar ela?
O garçom começa a ficar com a consciência pesada, tanto que ao pegar o ônibus para trabalhar, olha a janela do ônibus e avista o reflexo da imagem da garota ao seu lado em forma de caveira, ele se espanta e ao ver novamente, ela tinha sumido diante de seus olhos. Rick não conseguia trabalhar direito, até seu chefe pedir que pegasse umas férias. Ao ir para casa descansar, sua mulher tinha saído com o filho. Ele tomava seu banho no chuveiro, até a água começar a esquentar e ficando cada vez mais quente... Até que de repente a porta do banheiro é trancada e a fumaça tomava conta do local, Rick se assusta e tenta sair do lugar, mas não consegue, e no meio da fumaça branca, avista o formato de uma pessoa dentro do box do banheiro. Ao tentar se aproximar da figura misteriosa, escorrega no sabonete e bate a cabeça na pia, desmaiando na hora.
Acordou horas depois no hospital, sua mulher e seu filho ao seu lado, e ele sem pensar duas vezes, disse:
- Preciso sair daqui agora, tenho que fazer uma coisa meu amor!
- Onde você vai?!
- Confie em mim...
Rick foi á delegacia e contou tudo o que sabia da menina desaparecida, até o nome do suspeito e o local onde era o encontro. A polícia foi acionada e acharam o corpo da jovem esquartejada num matagal, próximo ao barzinho que ela frequentava. O assassino logo foi descoberto e preso, confessou que pegou seu número num restaurante ao pedir por um garçom para que entregasse á garota e Rick entrou em choque ao lembrar que foi ele que levou o número do criminoso para a vítima, a sensação de culpa foi maior ainda. E a mãe de Isabelle, esse era o nome da mocinha, desabafa numa coletiva de imprensa:
- As pessoas achavam que minha filha era uma patricinha metida por causa do seu jeito reservada, mas a verdade era que minha filha sofria depressão e não tinha amigos, vivia grudada no Facebook, achava que ninguém gostava dela e nunca ia achar o verdadeiro amor, até se encontrar com esse psicopata. Por isso tomem muito cuidado ao julgar as pessoas pelas aparências...

''SEM TITULO''

Transformei a escrita de terror em babaquice. Não, não, não, não... Tudo errado! Apague e escreva de novo!
 Transformei o medo em ilusão. Sim, agora esta certo. Estou certo. O medo é o desconhecido, e aquilo que nossos olhos não veem pode ser considerado como ilusão. Não. Errado de novo. Besteira esta de colocar ilusão no meio do desconhecido!
 Quando eu era menino, vagava decadente, cheio de historias pra contar e ninguém para ouvir. Agora que tenho palavras e ouvidos, me calo por medo de me envergonhar. Me envergonhar? Será que existe esta certeza dentro de mim? Quando o frio da noite vem, me aqueço debaixo do edredom e rezo firme para não chover. Às vezes a reza não vale, a chuva cobre meu mundo e o telhado de zinco pipoca, tal qual as teclas do meu computador. Tenho medo da chuva. Medo é ilusão, eu afirmei! Eu estava errado novamente, e, agora estou certo: medo é apenas medo.
 Ainda pequeno, minha mãe quis sair para se divertir, fez uma boneca de pano parecida com ela, se levantou da cama e a pôs do meu lado, para eu acordar e pensar que fosse ela, assim dormiria tranquilo enquanto a danada festejava. Eu não dormi, pois a maldita boneca de pano cochichava a noite toda em meu ouvido, me amaldiçoando e conduzindo minha alma ao inferno.eu não fui com ela ao inferno,estou aqui, lhes contando que fui enganado e assombrado ao mesmo tempo.
 Eu escrevi um conto. Era sobre uma menininha que vagava na escuridão, a procura da mãe morta. Quando a encontrou, descobriu que ela estava viva e podre. Apaguei. É tão fácil criar terror infantil, é fácil fadar a inocência, colocar um pequeno em situação completamente absurda e desvendar os medos e as maldições.
 Comecei outro conto sobre um tolo que escapou da forca, que correu atrás de seu carrasco e acabou por enforca-lo com a mesma corda. Remoído em remorsos, se enforcou. Estória fraca, muita corda pra pouco pescoço. Meus leitores merecem mais...

 Ouvi um barulho lá fora. Não é a chuva, e por mais que isto me incomode, o medo não vem! Ouso investigar, pego o farolete e guio a luz forte em meu quintal. A porta da cozinha se tranca... Eu estou preso lá fora, sozinho e com medo. A chuva cai e o vento parece querer conversar comigo, assim como a boneca sombria... Eu tento responder, pois às vezes converso comigo mesmo. Me faço perguntas e me dou as respostas, um monologo cansativo e exaustivo, mas que me ajuda a criar tolas e necessárias frases de efeito.
 O barulho no fundo do quintal se faz mais forte... Ainda assim não é a chuva, tão pouco o vento. Eu calo as incertezas e jogo a luz do farolete no local suspeito, debaixo do pé de amora. Eu o vejo pendurado lá, o enforcado de minha historia apagada! Eu me calo em medo e agonia! Meu coração dispara de forma preocupante e caiou no chão, com um começo de enfarte. Uma menina me vem, ignora meu sofrer e me pergunta:
 — O senhor viu a minha mãe?
 O desespero aumenta devassamente... Mordo minha língua e sinto o sangue do corte invadir minha garganta seca, o velho coração não vai resistir... Sinto o cheiro de carne pútrida, ela surge diante de nós... A mãe morta... A menina grita em desespero, quase estourando meus tímpanos. A mulher podre a esgana, eu sou testemunha de minha própria loucura...
O homem despenca de sua forca e rasteja até nós... Eu estou condenado... O coração fraco sofre de medo, angustia e dor.
 Ela me arrasta para dentro de casa, me joga na cama e coloca ao meu lado a boneca de pano... A chuva grossa bate no teto de zinco e ainda agonizando, ouço-a cochichar suas artimanhas em meu ouvido.
É só a morte... A morte vem e eu nem tenho um titulo pro texto... Tanto faz. Não gosto mais de escrever mesmo...

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Eternidade




 
Ele deu-lhe a mão, apoiando-a e ajudou-a a subir ao topo da grande pedra. Depois, lado a lado, olharam para a paisagem, que de fato tirava o folego, de tão surpreendente era. O lago e a vegetação captavam múltiplas cores, tornando as imagens quase surreais.
"Gostavas de viver aqui? Ter aqui uma cabana de fim de semana?"
"Sim, porque não? Sempre amei o contato com a natureza." - exclamou, emocionado.
Ela olhou-o de soslaio, ele fixou os seus olhos verdes nos dela, que eram castanho escuros. Foi-lhe impossível resistir, tocou de novo nos seus dedos e sentiu o calor e a macieza da mão dela. Bem como uma suave pressão, correspondendo ao seu toque.
Aproximou o seu rosto do dela até que os lábios se tocaram, a boca dela entreaberta, os lábios húmidos, recetivos. O seu calor inebriou-o e a respiração acelerou. A língua, atrevida, insinuou-se e dançou dentro da boca dela, salivas humedecendo aquele doce contato.
Incapaz de se controlar, as suas mãos percorreram o corpo feminino, fremente, muito próximo do seu, afloraram os seios, os bicos espetados de desejo como que o saudaram. As pernas de ambos fraquejaram e deitaram-se um pouco à toa na relva fresca, sem se separar.
Agora era ela que lhe acariciava o peito robusto e peludo, deslizando os dedos por baixo da camisa.
Despiram-se desajeitadamente e estando ela sobre ele fizeram-se num só corpo, num só ser. Gemeram no arrebatamento da paixão...
Passados largos minutos e sossegado o ímpeto do desejo, beijou docemente aquele rosto junto ao seu, sentindo o respirar agora calmo. Ela de olhos fechados, ele olhando o céu...
"Amo-te! " .
"Eu também te amo. Muito! " .
Abraçaram-se mais fortemente e ficaram assim, indiferentes ao correr dos segundos, dos minutos, das horas... Como se tivessem começado a viver naquele instante... Então ele teve a certeza que naquele ambiente natural, meio selvagem, tinha descoberto a verdadeira razão de existir. O céu, toda a natureza que os cercava tinha agora outras matizes, oscilando de cor como se fosse um arco-íris. Aquela mulher lindíssima, doce e ternurenta, havia parado a sua demanda. Não mais teria necessidade de procurar: ela seria a mulher da sua vida. Para toda a eternidade.

Uma nova história


Paulo saiu da clínica confuso demais.

Como imaginar um exame de rotina, que ele fez somente porque a querida mãe insistiu (aproveitando uma visita de Dona Vânia ao médico da família a qual ele acompanhou), quase brincando, trazendo uma informação tão grave e inesperada?
Se ele sentia o corpo bastante saudável e a mente repleta de energia, como estaria condenado à morte?
Como digerir a dura verdade?
Cinco a seis meses de vida, segundo o médico, restavam para que Paulo abandonasse a pátria azul.

Após pedir a Doutor Célio que não contasse aos pais, prometendo, na segunda, começar o tratamento rigoroso, Paulo resolveu ver o mar.
Nunca mais fizera isso.
A namorada, Ritinha, não aprovava.
Sempre reclamava quando ouvia tais sugestões de Paulo.
Contemplar o mar, ver o Sol iniciar o descanso, olhar o céu estrelado, na concepção dela, era pura tolice.

Observando o mar demoradamente, Paulo percebeu que, em breve, deixaria uma vida chatérrima.
Ele não gostava de Ritinha.
Somente decidiu casar com a moça, pois os pais, principalmente o genitor, um empresário importante, definiu a união de Paulo com a filha de um outro grande empresário.
Considerando que o casal cresceu no mesmo círculo, ambicionando construir um patrimônio seguro, Doutor André aconselhou Paulo a transformar a amizade em algo mais sério.
Tudo muito conveniente, porém contrário aos anseios de Paulo.

Débora, a irmã do amigão José, sempre foi a grande paixão de Paulo.
Os dois irmãos, naquela noite de sexta, viajariam para Paris.
Eles pretendiam investir na carreira artística.
Receberam um convite tentador de um cineasta.
Independentes, ousados, donos de uma boa herança após a morte prematura dos pais, os dois não recusaram a proposta.
Convidaram Paulo, sugerindo que o jovem largasse o futuro idealizado pelo pai, trocando comandar empresas por satisfazer a vontade de ser ator a qual o moço sempre nutriu.
Débora, também apaixonada por Paulo, pediu, insistiu, mas o dever filial e a covardia prevaleceram.
O rapaz não topou encarar a aventura.

O celular tocou, ele conferiu o nome “Ritinha”.
Não sentiu o mínimo desejo de atender.
Falar com Ritinha, seguir adiante com o noivado, continuar um projeto o qual nenhuma emoção despertava, não fazia qualquer sentido agora.
Se ele estava morrendo, se daqui a seis meses já não habitaria o globo, Paulo percebeu que, no término da vida, a melhor opção era viver.

Paulo se levantou e atirou o celular o mais longe possível.
O objeto desapareceu no meio das águas tranqüilas do bonito mar.

Alguns adolescentes, curtindo a bela manhã, jogavam bola.
Ele pediu para participar.
Os garotos estranharam, no entanto permitiram.
A pelada seguiu durante cerca de trinta minutos.
Paulo jamais se divertira tanto.

Por que crescemos fazendo a criança solta e alegre sumir?

Na hora de retornar, Paulo notou que o seu carro não estava no local onde o colocou.
Provavelmente roubaram o veículo.
Paulo sorriu.
Interpretou o fato como um sinal de que os carrões que sempre guiou pertenciam ao passado.

Ele resolveu experimentar um ônibus.
Conheceu, então, o famoso buzu.
Meio atrapalhado confundiu as portas.
O cobrador não tinha troco, mas Paulo não ligou.
Durante a curta viagem, sentado, o rapaz, observando as paisagens, considerou a experiência muito legal.

Chegando em casa, encontrou os pais inquietos.
_ Paulinho, Ritinha está preocupada querendo falar contigo!
A pergunta de Dona Vânia fez Paulo sentir uma forte tristeza, pois a nova jornada não contaria com a presença da adorável mãe.
Eles jamais ficaram afastados, no entanto seria impossível convencer a mãe a acompanhá-lo nesse instante.
_ Mamãe, eu não tenho mais nada para falar com Ritinha.
_ Como assim, Paulinho?
_ Eu tomei uma decisão importante. À noite seguirei com José e Débora rumo a Paris. Eu vou ser ator.
O pai, revelando surpresa e irritação, indagou:
_ Você está louco, Paulo?
_ Não, papai! Eu estou bastante lúcido. Nunca gostei de Ritinha, ela sempre foi uma amiga. Eu nunca quis ser empresário, eu pretendo me tornar um excelente ator de cinema.
_ Se você viajar, eu vou te deserdar. Eu não vou sustentar os seus sonhos imbecis e inúteis!
_ Não tem problema, papai! Eu me viro. Vou separar algumas roupas para a viagem. Só preciso de duas ou três peças. O resto das coisas eu agradeço, mas pertencem ao senhor, portanto podem ficar aqui.
A mãe chorando perguntou:
_ O que está acontecendo, Paulinho?
_ Mamãe amada, eu peço que compreenda a minha decisão. Eu preciso desfrutar a vida que combina com o meu coração.
Os dois se abraçaram emocionados.

Trinta minutos depois, Dona Vânia obrigou Paulo a lanchar, deu algum dinheiro ao rapaz e lhe desejou muita felicidade.
O pai ficou trancado no quarto.
_ Prometa que vai ligar!
_ Assim que eu puder, dou notícias. Fique bem, mamãe!
Paulo beijou Dona Vânia com uma ternura especial.
_ Eles virão te pegar?
_ Eles não sabem que eu vou com eles!
_ Como?
Paulo saiu apressado e sorridente.
Antes de atravessar o portão, beijou a empregada e gritou:
_ Tchau, papai! Tchau, mamãe! Torçam por mim!

Ele voltou a pegar um ônibus.
Seguiu rumo ao aeroporto.
Faltavam cinco horas para o vôo dos irmãos sonhadores.
Ele sabia, pois havia combinado abraçar a dupla no aeroporto.
Quando Débora chegou e percebeu a mochila de Paulo, falou alegre:
_ Eu não acredito, Paulo! Você vai conosco?
_ Se vocês dois aceitarem bancar um marmanjo enquanto eu me organizo, eu viajo com vocês.
José respondeu animado:
_ A gente promete não deixar você morrer de fome!

Quinze dias depois, Paulo ligou para a mãe.
_ Mamãe, tudo bem?
_ Paulinho, por que demorou tanto de ligar, meu filho?
_ Eu primeiro me organizei, depois liguei conforme prometi.
_ Paulinho, a gente ficou sabendo do exame. Doutor Célio te procurou no dia seguinte e explicou o que aconteceu. Você pode ficar calmo, houve um erro, trocaram os resultados, Você não está doente, meu querido!
_ Que maravilha, mamãe! Eu nem sequer pensava nesse assunto, mas é muito bom saber que não estou morrendo.
_ Você vai continuar querendo ser artista?
_ Claro, mamãe! O erro do resultado foi a melhor coisa que aconteceu. Me diga uma coisa, como está Dulce (a empregada), papai e Ritinha? Eu reconheço que viajar sem dizer nada a ela não foi legal...
Dona Vânia interrompeu:
_ Não ligue pra isso, Paulinho! Soube que ela já está namorando outro rapaz. Nesse ponto você acertou. André continua revoltado, mas vai passar. Dulce, igual a mim, está cheia de saudade.
Mãe e filho prosseguiram conversando cerca de mais dez minutos.

Encerrando a ligação, Paulo se aproximou da janela do apartamento o qual dividia com Débora, a futura esposa, e José, o amigo de infância.

Os projetos artísticos avançavam de maneira auspiciosa.
O cineasta estava empolgado com o trio.

O rapaz, respirando fundo, admirando uma árvore distante, concluía que paradoxalmente iniciara a vida após saber que deixaria de viver.
A mudança positiva que aconteceu parecia uma mágica genial.
Quantos, escutando a notícia de uma doença terminal, não ficariam desesperados e complicariam o quadro orgânico com o desequilíbrio emocional?
No caso de Paulo, a notícia fez o rapaz alterar os passos da jornada.
Ele anulou uma existência artificial e criou uma nova história.

Essa nova história Paulo merecia.
Todos nós merecemos.
Ela é composta por metas que cada ser humano alimenta, entretanto não poucas vezes costumamos desprezar a proposta real do âmago e elaborar um conto sem graça, com um enredo bem desagradável.

Paulo felizmente não hesitou.
Supondo que as suas horas estavam contadas, buscou desfazer as páginas tristes, que nem sequer teve o direito de escrever, preparando páginas especiais e fascinantes.

Depois de vinte e cinco anos jogados fora, nosso herói experimentou um encontro precioso e inesquecível.
Ele encontrou ou, talvez possamos afirmar, reencontrou a vida.

Um abraço!

A bela do casarão abandonado

Quando João pegou a coleira e a pôs no pequeno Bob nem se passava pela sua cabeça o que iria acontecer naquela monótona e nublada manhã de segunda-feira.
Ao sair pelo portão, João usava um conjunto de moletom cinza, uma touca de lã preta, tênis brancos e um cronômetro para controlar o tempo da caminhada.
Ao dobrarem a esquina, logo percebeu que embora ainda fosse 07h05min, a avenida estava totalmente silenciosa, algo tão estranho que acabou o intrigando já que normalmente já estaria um trânsito insuportável. Não deu muita importância, continuou caminhando normalmente como se tudo estivesse normal.
Ao passarem pelo arvoredo em frente do casarão abandonado Bob começou a latir sem parar dando trancos em seu dono que não conseguia o controlar.
Inutilmente João dava ordens ao cão que insistia em encarar o velho casarão amarelado. Vencido pelo cansaço, seu dono resolveu encarar o desafio de entrar sozinho na velha mansão Petrone.
Afastando-se dos galhos das árvores descuidadas, empurrou o velho portão rangente, foi caminhando lentamente quintal adentro rumo à porta principal. No caminho havia uma piscina gigantesca estilo olímpica, só que cheia de matos e sujeiras de tudo quanto é tipo, a água fedia insuportavelmente a ponto de ter que tapar o nariz.
Logo na entrada principal tinha uma pequena escada, cinco degraus para ser exato, um corrimão de madeira que era um paraíso para os cupins.
A porta estava entreaberta e a maçaneta era de ouro puro, tentou arrancá-la e colocar no bolso, mas não conseguiu. Caminhou casa adentro.
O que mais o impressionou foi o fato de que dentro da casa era totalmente diferente de fora, tudo estava limpo e na mais perfeita arrumação. Havia uma escada enorme como nos grandes palácios europeus, o lustre da sala principal era todo de diamantes que brilhavam tanto que chegava a ofuscar os olhos, uma sala de jantar com uma mesa com doze cadeiras pesadíssimas, aliás, toda a decoração baseava-se em móveis antigos, tabaco fosco estilo à antiga burguesia.
O aspirante a explorador virou-se, com a intenção de ir embora pensando que a qualquer momento o morador daquela casa iria aparecer botando-o para fora a pontapés, quando de repente a porta se fechou sozinha e um forte vento o empurrou para dentro fazendo-o cair sobre o sofá vermelho sangue. Neste momento Bob já estava todo encolhido sob a mesa de centro.
Uma voz baixa no alto da escada aumentava gradativamente à medida que ia aproximando-se da parte térrea.
- Não tenha medo. - repetia insistentemente a voz. - Por favor, não tenha medo de mim.
Curioso, resolveu levantar os olhos por cima do encosto do sofá para saber a quem pertencia aquela doce voz feminina.
Ficou totalmente enfeitiçado pela beleza daquela jovem moça que embora fosse dona de uma beleza como nunca vira antes, o parecia tão infeliz e tão sozinha... Sentiu um nó na garganta ao perceber a tristeza em seus olhos.
Ela aproximou-se um pouco mais e sentou-se ao seu lado no sofá, ele tirou a toca e deu uma ajeitada nos cabelos. Começaram a conversar.
À medida que a conversa se estendia, João ficava cada vez mais entusiasmado com a moça que agora ele sabia o nome, um nome que nunca ouvira antes: Flor-do-Campo.
Flor-do-Campo tinha um olhar diferente que provocava certo transe no rapaz, ele mal conseguia piscar em sua presença.
Certa altura da conversa, a moça o convidou para almoçar, eles comeriam um prato nunca provado por ele antes.
Sentaram-se aquela extensa mesa de jantar, Flor-do-Campo bateu palmas e foram servidos por dois criados totalmente esquisitos que encaravam o rapaz e lançavam olhares e pequenos risos à senhoria que disfarçava questionando se o jovem estava gostando da comida.
Após limpar o prato, curioso, perguntou o que eles haviam comido, ela soltou um risinho sarcástico e respondeu que eles haviam almoçado "cão à moda do chefe".
Um tremor invadiu todo o seu corpo, apressadamente chamou por Bob, mas o cão não atendia. Questionou qual cão eles haviam comido e onde estava o seu amigo.
Ela continuou com o riso sarcástico, mirou-o fixamente e perguntou se ele não reconhecia os latidos de seu próprio cão em sua barriga. No mesmo instante ele cuspiu, empurrou a cadeira e correu para a porta, mas a porta não abria.
Nervoso, pediu que ela abrisse a porta para que pudesse sair, no entanto ela perguntou se não haviam o ensinado a nunca invadir propriedade alheia, continuou dizendo que a partir do momento em que ele adentrou o seu quintal, havia se tornado propriedade sua e que jamais poderia sair dali já que ele seria servido no jantar daquela noite.
Para a infelicidade de João, a bela jovem era na verdade uma espécie de ser que a centenas de anos ganhava forças e rejuvenescia através do consumo de carne humana, advindo de um pequeno planeta até então desconhecido pelos humanos. Nos dia-a-dia, alimentava-se apenas de pequenos animais que entravam em sua propriedade, só que pelo menos uma vez a cada seis meses precisava devorar um humano para não morrer, não tinha preferência por homem ou mulher, contanto que fossem adultos, mas percebeu logo que chegou em nosso corpo celeste que era mais fácil atrair os homens do que as mulheres. E foi assim desde então que ela vem atuando silenciosamente.
Os dois criados o pegaram, o amarraram, o amordaçaram e prepararam um grande caldeirão com temperos dos mais variados tipos... O jogaram dentro.
Naquela noite João foi servido como prato principal num grande banquete no velho casarão abandonado.
Conta-se por aí que a curiosidade matou um gato, neste caso, matou um jovem e o seu fiel cão.

Complicada e imperfeita - Mini Conto


 
Laura sentia-se deslocada nas mais variadas situações. Dentro da família encarnou o papel da mulher esquisita que ninguém mais se atreve a entender. O primeiro marido pediu o divórcio por não suportar seu grau de dependência. E o segundo, ao se dar conta de que Laura não precisava dele para coisa alguma. Ao longo do tempo, a coleção de equívocos e desencontros — um banquete glorioso para os ressentidos — passou a inspirar histórias muito mais estranhas do que sua própria vida. É bem verdade que Laura não alcançou sucesso na carreira literária, mas finalmente havia encontrado companhias interessantes: suas personagens.

Lua De Mel

I

      O mais novo casal da família Rodrigues chegou finalmente à suíte do hotel de luxo no Caribe que custou dois meses de economias. Ele arfava de cansaço, mas disfarçava com um sorriso, não foi fácil trazê-la da limusine até a cobertura nos braços.
      "Creio que ainda dê para ver o pôr-do-sol, querida" disse, deixando-a no sofá. Ela logo correu até a janela para ver ao vivo o espetáculo desenhado no cartão-postal.
      O vestido branco era a roupa mais bonita que já vestira na vida, mas seus ombros já doíam de tanto tempo com aquele peso todo, o maxilar adormecido de tanto sorrir para os convidados, como se tivesse que provar que estava feliz. Como se alguém se importasse com alguma coisa que não fosse os docinhos e um pedaço bem suculento de bolo.
      "Infelizmente já anoiteceu..." ela avisou, seu marido estava no banheiro, provavelmente desabotoando aquelas mangas que lhe vinham alfinetando os pulsos pelo dia todo. "Mas o luar visto daqui é esplêndido..."
      "Aproveite bem essa noite. Afinal, quando é que teremos outra assim?"
      Ela sorriu, tirou aquela grinalda e véu da cabeça, o tecido fino já estava deixando sua pele avermelhada, mas para despir o vestido demoraria mais, não gostaria de rasgar nem uma fibra sequer, queria guardar muito bem qualquer lembrança do dia mais feliz de sua vida.
     As estrelas, aos poucos, começavam a pipocar no céu cada vez mais negro. Uma fresta do mar se tornou branca refletindo o brilho cálido da lua cheia.
      Ela suspirou. O dia já estava acabando. Não queria acordar amanhã e ver que isso tudo já era passado.
      "Quer ouvir uma história engraçada que eu soube hoje?" ele perguntou pondo a cabeça para fora do banheiro, as mangas do paletó já estavam na altura dos cotovelos.
      "O quê?"
      "Parece que a cidade que escolhemos para passar a lua de mel está apavorada graças a um maníaco..."
      "Pelo amor de Deus, querido, o que isso tem de engraçado?"
      "Ao que parece, o tal assassino invade os hotéis, rouba os hóspedes e depois os mata...".
      No começo ela sentiu um súbito susto, mas logo viu que os detalhes que ele estava contando eram convenientes demais e conhecia o tom de voz do marido quando ele só estava brincando. Respirou aliviada.
     "Nessa você quase me pegou!" disse sorrindo. "Quase me assustei..."
      Os dois voltaram a ficar em silêncio, ela virou-se outra vez para a praia quase deserta e o espetáculo que era o luar no Caribe.
      Ouviu alguns ruídos no banheiro, depois alguma coisa caiu no chão e se espatifou em milhões de pedacinhos.
      "Você está bem, querido?"
      "Não se preocupe, foi o espelho que quebrou. Esses hoteizinhos vagabundos..."
      Ele não perde a mania de falar mal de tudo, ela pensou.
      "Sete anos de azar começando a contar na lua de mel" comentou. "Isso não é nada bom, sabia?"
      Seu marido saiu do banheiro finalmente, as mangas ainda arregaçadas e a mão esquerda nas costas.
      "Você acredita em superstições?"
      "Prevenir não custa nada, não acha?"
      Ele se aproximava com aquele sorriso que a havia conquistado há três meses. Agora ela conseguiu calar a boca de todos que diziam que esse casamento estava sendo rápido demais para que pudessem ser felizes. Sentia-se muito feliz.
       "O que você está escondendo aí atrás, hein?"
       "Uma surpresinha para a minha querida esposa..."
      "Hum, adoro surpresas...".
      Ele agora estava frente a frente com ela, com a mão direita que estava livre ajeitou o seu cabelo para que pudesse ver melhor o rosto da esposa. Fitaram-se profundamente.
      "Não precisa se preocupar com o azar" ele disse. De repente ela  sentiu uma pontada forte nas costas, uma coisa gelada que a invadiu e dilacerou sua pele; ainda teve tempo de se curvar e ver que o que ele tinha atrás de si era um caco pontudo de vidro, o caco que ele enfiou nela e que agora estava sujo de seu sangue. "Não precisa se preocupar, pois seremos felizes para sempre..."
      Ela estava confusa, milhares de perguntas vinham à mente, completamente desnorteada, perdia o controle das pernas, sentia as forças esgotarem-se, seus olhos devagar foram se fechando, até que por fim, como num daqueles filmes da década de trinta, caiu docemente nos braços do marido.
      "Seremos muito felizes..."


II

      Ela não sabia direito quanto tempo passara inconsciente, mas agora que seus olhos se abriam devagar trazendo as imagens distorcidas e foscas do quarto bem-decorado, vinham também as lembranças do que havia acontecido.
      A primeira coisa que conseguiu distinguir foi a figura do marido sentado numa cadeira ao lado dela passando um pano molhado na lâmina de uma faca de carne. Olhou então para si própria e viu que estava caída no chão, deitada e amarrada com uma corda que parecia ser um imenso fio de telefone. Já era difícil de se mexer graças ao vestido que agora estava insuportavelmente apertado. Ademais, aquela corda não a dava chances de escapar.
      "Querido, que brincadeira é essa?"
      "Ah, acordou, amor" ele deu uma olhadela para ela, depois voltou a polir seu reflexo na faca. "Não vejo brincadeira nenhuma."
      "Por que você está fazendo isso?"
      Ele se levantou e foi até as costas dela, a esposa quis se revirar, quis tirá-lo dali, mas não conseguia mover um músculo.
      Ele analisou o ferimento feito nas costas dela.
      "Hum... não pegou em nenhum órgão vital, vou ter que terminar o serviço..."
      "Querido, por favor, pare com isso. Está me assustando...".
      "Quer saber de uma coisa muito interessante?" ele perguntou. "Na verdade, você já deveria estar sabendo, mas duvido que tenha lido o contrato nupcial; ele dizia, numa clausula muito específica, que caso um de nós venha acidentalmente a falecer, o dinheiro da conta bancária do casal não precisa ser dividido entre familiares. Fascinante, não acha?"
      "É por dinheiro? Você está fazendo isso por dinheiro?"
      Ela queria chorar, mas a raiva não deixava que as lágrimas rolassem.
      "E não é tudo nessa vida por causa do dinheiro? O mundo não gira em torno de um bendito papel verde?"
      As lágrimas queriam escapar, mas ela não deixaria.
      "Você não precisava fazer isso... Você teria tudo enquanto estivesse casado comigo..."
      "E ter que te aturar pelo resto da minha vida? Agüentar aquela vaca da sua mãe e aquela sua irmã ridícula dar em cima de mim sempre que você sai de perto? Acho que te matar é uma opção menos tortuosa..."
      Ela conhecia agora quem era o homem com o qual se casou, e sua família tinha toda razão em não gostar dele.
      "Você não sairá impune, é claro que todos logo desconfiarão..."
      "Quer saber de mais uma coisa interessante?" ele parou de limpar a faca, ajeitou o cabelo e sorriu para o reflexo perfeito. "Aquela historinha que eu te contei, sobre o assassino dos hotéis, não era de tudo mentira, ou você acha que uma praia caribenha estaria deserta numa noite estrelada? E a genialidade do plano está justamente aí, eu estudei o tal assassino, e sei como ele age... você será só mais uma vítima do cruel psicopata dos hotéis. Quem desconfiaria do pobre maridinho, viúvo tão cedo, pobrezinho...?"
      Ela sabia que, ao contrário dele, a sua aparência devia estar terrível a uma hora dessas, a grossa camada de maquiagem que pusera já não devia agora de um amontoado de manchas borradas ao longo do rosto, e lembrou-se então de todo o trabalho que tivera para se maquiar, das horas arrumando o cabelo e ajeitando o vestido, dos meses tentando ficar mais bonita com exercícios que não foram feitos para o seu biótipo, e tudo por ele, todo esse esforço em troca de um pouquinho do amor dele.
      "Você nunca me amou?" a pergunta saiu involuntária, meio humilhante.
      "Isso é uma típica pergunta sua" ele respondeu amargamente, passou a andar em volta dela escolhendo o melhor lugar para enfiar a lâmina "uma gorda sentimentalóide tão insegura que precisa arranjar um homem pobre para fingir acreditar que é amada. Simplesmente patética."
      Ele se abaixou e segurou o queixo dela, passou a lâmina gelada pelo seu rosto, mas sem cortá-la. Mas não foi pela dor causada pela lâmina que ela causou a chorar naquele instante, e sim pela maior, pela mais intensa, a dor das palavras que ele dissera. E o choro irrompeu trazendo os soluços e os caminhos negros que o lápis de olho úmido criaram no seu rosto.
      No começo ele só pode sorrir. Aquilo era o que era não queria: chorar. Havia percebido o esforço que ela vinha fazendo para evitar dar esse gostinho a ele, e fracassara, para o seu grande prazer ela fracassara.
      Mas depois de vê-la chorar por um bom tempo ele começou a se entediar com isso, tanto que abaixou-se, tirou o lenço da lapela, e secou-lhe as lágrimas cuidadosamente, para depois dizer:
      "Você está tão bonita para morrer hoje... Fez bem em se arrumar tanto..." olhou-a nos olhos, a esposa tentava ainda achar apenas um pouco de piedade naquelas duas esferas brilhantes, procurou pelo homem calmo e amoroso pelo qual se apaixonara, mas não encontrava, não encontrava nem vestígios: aquele homem nunca existiu. "Lembra de quando eu te conheci? O livro que você estava lendo quando trombei em você?"
      "E daí?" ela perguntou, agora com o tom de voz raivoso que ele queria que ela tivesse, finalmente havia compreendido que não sairia viva da lua de mel.
      "Qual era?"
      "Você sabe!"
      "Qual era!" ele gritou. Um chute nas costas que desenhou uma pegada no vestido branco, gostara de bater, ansiava por isso há tanto tempo que não resistiu e lhe deferiu um segundo golpe, e um terceiro.
      Ela sentia o coração a duzentos por hora, respondeu bem baixinho, amedrontada:
      "Cem anos de solidão, Garcia Márquez."
      "E aí está a maior das ironias, minha querida", ele se levantou rindo da própria genialidade. "O nome do maníaco dos hotéis é Gabriel Garcia Márquez, não que seja incomum esse nome aqui na América Hispânica, mas não é engraçado?" fez uma pausa para exibir seu verdadeiro sorriso, cheio de um maléfico cinismo. "Claro que seria mais irônico se tivesse sido Crônica de uma morte anunciada, mas nem pra isso, nem para escolher um maldito livro você prestou..."
      "Você é louco!"
      Ele sorriu. Nem na hora da morte ela deixa de ser sonsa, pensou.
      "Todos somos, meu amor, mas somos loucos e loucos..."
      Foi a última coisa que ela ouviu. Naquele momento a faca lhe perfurou a carne, interrompendo a sessão de terror psicológico e salpicando o vestido de vermelho enquanto o marido gargalhava da brincadeira.
      Levantou-se, enrolou a faca num jornal velho e colocou-a atrás da calça para jogá-la no mar e depois voltar e dizer que encontrou a esposa nesse estado, que se soubesse dessa história de assassino nunca viria passar a lua de mel nesse lugar, que a policia de via proteger mais as pessoas, etc., etc., etc..
      Era o plano perfeito.
      Saiu da suíte policiando os dois lados do corredor, não havia ninguém. Todos estavam morrendo de medo do serial killer latino-americano.
      Apertou o botão do elevador e esperou, não conseguindo refrear o sorriso contente. Estava tudo certo.
      A porta do elevador se abriu e a primeira coisa que ele viu foi o cano do revólver 38 mirado na sua cabeça.
      "Não estou aqui para brincar" O rosto atrás do revólver esbravejou, em espanhol. "Ponha as mãos na cabeça e volte devagar para o quarto!"
      Ele obedeceu, uma faca não podia competir com um revólver. Abriu a porta lentamente e os dois entraram naquela suíte. Não demorou muito para que se ouvisse um disparo, e depois uma longa e insana sessão de risos.
      Quem estava ali era Gabriel Garcia Márquez, e não era o escritor.

Plano Diabólico


Heitor Savallas era casado com Sophia Lambrou, uma mulher atraente, e de uma antiga e aristocrática família Grega. Era alta e magnífica, com uma dignidade inata. O casamento dos dois foi uma surpresa geral para a sociedade Grega, por eles terem passado por todas as formalidades em menos de dois meses.
 Heitor Savallas era dono de uma frota de navios que fazia fretes por todo o  continente, enquanto Sophia era filha única de um ilustre banqueiro.
 No começo parecia um casamento perfeito. Heitor era divertido e atencioso. Era um amante excitante e ardente, constantemente surpreendia a esposa com presentes suntuosos e viagens a lugares exóticos. Típico de um autentico cavalheiro.
 E já na primeira noite da lua de mel, ele manifestou sua maior vontade:
Teremos muitos filhos.
 Os dias correram e viraram meses, eis que chegou aos ouvidos de Heitor a grande noticia.
 No dia que soube da gravidez da esposa, Heitor ficou  extasiado e confiante. Abraçou sua amada e profetizou:
Ele vai assumir meu império!
 Mas infelizmente Sophia abortou no terceiro mês... O homem ficou fora de si quando descobriu que sua amada não poderia mais lhe dar filhos, devido a uma grave deformidade em seu útero.
 Daquele momento em diante a vida de Sophia tornou-se um inferno. Heitor comportava-se como se a esposa tivesse deliberadamente matado seu filho. Ignorava-a e começou a sair com outras mulheres.
 Sophia poderia até suportar isso, mas o que tornava a humilhação tão angustiante era o prazer que o marido sentia em ostentar publicamente suas ligações amorosas. Levava suas amantes para sua ilha particular em seu iate. A imprensa registrava alegremente as aventuras românticas de Heitor Savallas.
 O casamento de Heitor e Sophia vinha se desintegrando há anos, mais a gota d’água aconteceu quando ela descobriu que Heitor estava saindo com sua melhor amiga.
Você consegue transformar qualquer mulher em uma prostituta! – Gritou ela – Tudo que toca, se transforma em lixo! Você é meu marido e eu ainda o amo, mais vou lhe jurar uma coisa: Eu vou acabar com você, você vai pagar por todas as humilhações que me fez passar no decorrer desses anos!
 Heitor fitou-a nos olhos e percebeu que dizia a verdade, mesmo assim não se preocupou.

 No começo Sophia não fazia a menor ideia de como faria. Sua vida não tinha mais importância, precisava acabar com a dele...
 A ideia surgiu em uma noite depois de vê-lo chegar de mais uma de suas noitadas...
 Heitor ainda trabalhava em seu escritório quando Sophia entrou. Ela carregava um embrulho com um barbante grosso. Tinha nas mãos um facão de cortar carne.
Heitor, poderia cortar esse barbante pra mim? Não consigo.
 Ele levantou os olhos para ela e disse impaciente.
Onde já se viu segurar uma faça pela lamina?
 Ele pegou a faça e começou a cortar o barbante.
Não poderia pedir a um dos criados para fazer isso?
 Sophia não respondeu.
Pronto!
 Ele largou a faca e Sophia pegou-a pela lamina com todo o cuidado. Voltou para o quarto e depositou a faça dentro de uma embalagem plástica e a guardou no fundo de uma gaveta do criado mudo. Pronto. Agora era só esperar chegar a noite e colocaria seu plano em ação.

 Sua majestosa casa localizava-se aos redores de Pireu, tendo ao fundo um imenso lago, rodeado de arvores frondosas e altas. Era ali onde Sophia planejava finalizar seu plano de destruir o marido.
 Heitor costumava chegar em casa altas horas da madrugada e ia direto ao seu quarto, a muito tempo deixou de visitar o leito matrimonial, onde a esposa dormia.
 Já se aproximava das 22hs, quando Sophia resolveu que tinha chegado a hora. Todos os criados já tinham se recolhido e a casa se encontrava no mais absoluto silencio. Pé ante pé, ela foi até o quarto do marido e escolheu uma camisa que se encontrava na sexta de roupa suja e arrancou um botão, voltou para o quarto e aleatoriamente jogou  no tapete do quarto, pegou o relógio de ouro que ganhara do marido e quebrou, jogando sobre o criado mudo, enquanto revirava todo o quarto. Quebrou o abajur,e conseguiu desprender uma das cortinas das presilhas. Pegou cuidadosamente a faça no fundo da gaveta,  enrolou na camisa que mais cedo tinha retirado o botão e desceu até o lago.
Chegou a hora... – Pensou ela quando se aproximou do lago
 Pegou a faça pela lamina, enrolou o cabo na camisa e fechando os olhos, respirou fundo e se preparou para o grande ato. Cravou a lamina na parede abdominal na altura do umbigo.
 A dor foi intensa... O sangue começou a escorrer manchando a areia. Começou a sentir-se tonta, cambaleou até um pequeno morro, pressionado o sangramento com a camisa.
 E dentro do tronco de uma velha arvore caída, ela depositou a faça enrolada a camisa ensanguentada..
     Caminhar de volta até o lago foi uma tortura. Caiu de joelhos e pensou:
Não posso desistir agora! Tenho que conseguir!
 Continuou a andar, lutando contra a vertigem que a dominava, por fim, sentiu a água fria do lago em seus pés e sorrio. Agora era só continuar andando.
 Quando a água fria bateu no ferimento ela não resistiu e gritou de dor, mas o ódio pelo marido falou mais alto e ela continuou até sentir que finalmente suas forças acabaram...

 No dia seguinte Heitor saiu para o escritório como fazia todas as manhãs. Lá pelas 11 horas sua secretaria anunciava que um investigador de policia  tinha urgência em vê-lo.
Mande entrar, essas pessoas estão sempre querendo contribuições que nunca sabemos onde vão parar.
 Quando o investigador entrou já foi logo anunciando:
Sr. Savallas, o senhor esta preso pelo assassinato de sua esposa.
 Tudo parecia acontecer em câmera lenta. As provas eram incontestáveis. Tudo no quarto levava a crer que tinha acontecido uma briga, objetos virados, o botão de uma camisa que horas depois foi encontrada enrolada em uma faça com suas digitais, manchas de sangue na areia que levava ao lago e finalmente o corpo boiando nas águas geladas, com o ferimento mortal em seu flanco...
 Finalmente Sophia tinha conseguido destruir o intocável Heitor Savallas..