quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Meninos do bairro

Desculpe, estranho
Eu voltei mais puro do céu...

Sempre estar lá
E ver ele voltar
Não era mais o mesmo
Mas estava em seu lugar...
Astronauta de Mármore, Nenhum de Nós
     
 Sem esperar por grandes surpresas, Teles pegou sua bicicleta e pedalou até a pracinha da cidade. Lá, como de costume, se encontrava com outros meninos do seu bairro, dentre eles Claudinei, o mais velho e o mais metido a inteligente.
 Sulivam sempre chegava por ultimo com seu skate de prancha remendada. O danadinho cuspia no chão e perguntava aos dois amigos:
— Qual é a boa da vez?
 Claudinei com olhos de líder olhava para o topo, onde o menino Matheus pregava faceiro seus dizeres, atraindo o resto da criançada com sua sabedoria. Irritado, Claudinei indagou:
— Deve estar lá contando outra historinha idiota... Não sei se é mais tolo aquele que diz ou aqueles que ouvem...
 Os três riam para disfarçar a raiva, enquanto testemunhavam o menino atrair a atenção da multidão de crianças.

 Desde que Matheus se mudou para aquela cidade pequena foi assim. Ainda nos primeiros dias, as crianças lhe olhavam com estranheza. Mas não foi difícil ganhar a atenção de todas elas. Com dizeres e  mistérios que desvendava em seus lábios pequenos, tornava-se no mínimo interessante aos olhos dos meninos e meninas da sua idade. Revelava e ensinava coisas que todos desconheciam, arrastando um numero considerável de crianças para as suas historias que mais pareciam pregações mirins.
 Claudinei conseguiu convencer Sulivam e Teles a se manterem afastados da lábia do garoto. Sabia que alguma coisa estranha tinha com aquele fedelho enigmático... Antes era ele o mais respeitado, o mais temido... Sim, mas temido que respeitado, é claro, pois ninguém era contrario a ele. Quem discordasse de seus dizeres, era severamente punido... Claudinei nunca se incomodou em enfiar lixo pela boca dos desobedientes enquanto Sulivam e Teles os seguravam.
 Mas agora deixou de ser temido pelos pequenos...
 Desde que Matheus chegou ele não mais arrastou crianças desobedientes até o gramado para fazê-las cheirar coco de cachorro... Tinha certa saudade do seu tempo de ditador mirim. Estava até sentindo necessidade de governar aqueles fedelhos que o estranho lhe tomou.
 Queria retomar o poder que antes tinha, mas de certa forma, sentia incomodo ao pensar no confronto com o garoto esquisito que atraiu a atenção de todas as crianças:
— Pois eu vou até lá! – indagou Claudinei aos amigos, depois de tomar um pulso de coragem – Vou até lá dar uma surra naquele imbecil perto da corja mirim! Ai sim eles vão ver quem é que manda!
 Sulivam encarou Teles, perguntando com os olhos se Claudinei teria mesmo coragem para tal feito. Teles jogou sua bicicleta no chão e botou lenha na fogueira:
— Essa eu quero ver bem de perto! Vamos até lá com você!
 Determinado, Claudinei caminhou rumo à pequena multidão de crianças, sendo seguido por seus dois comparsas.
 A ira avassaladora o fez cruzar cego por entre os pequenos. Chegou até o centro, onde o garoto Matheus de cabelos negros bem penteados pregava seus dizeres. Ele sorriu receptivo ao garoto em ira, que arrogante lhe indagou:
— Não gosto de você! Você é estranho com seu cabelo lambido de vaca e suas palavras bestas!
 Matheus o olhou com indiferença, ignorando a raiva que o menino sentia. Claudinei então ousou. Juntou saliva na boca e cuspiu contra o rosto do menino. Esperava uma reação para agir com toda sua brutalidade de outrora. Mas o fato é que Matheus não reagiu, limpou o rosto com a manga da blusa de moletom e disse paciente, quase despreocupado com as inocentes palavras que saiam de sua boca:
— Você e seus dois amigos são tão comuns... Anseiam em tentar se destacar em meio aos outros, mas não passam de desajustados fracos e teimosos. Podem gritar aos quatro ventos suas indignações, podem até ousar em suas selvagerias... Podem berrar como bebês para garantirem seu lugar em meio aos comuns, no entanto, nunca passaram disto. Nunca serão mais do que ovelhas em um rebanho... E embora estejam desolados, longe dos que me seguem, eu consigo vê-los. Vejo vocês de longe, mendigando um pouco de atenção. Vejo vocês vez ou outra se entorpecendo de coragem e torcendo para não serem iguais aos que me seguem. Sei que querem me ouvir, sei que querem saber o que tenho para lhes dizer, pois anseiam pela sabedoria que sai abundante de meus lábios...
 Claudinei em ira fechou o punho e o golpeou voraz. A mão fechada acertou em cheio na boca do menino Matheus, que caiu sentado em meio à multidão de meninos e meninas.
 A boca sangrava em desordem graças a um profundo corte no lábio superior. Teles impressionado encarou o sangue de intenso vermelho... Em todas às vezes em que viu Claudinei gladiar por algo de seu interesse, jamais havia testemunhado tamanha brutalidade...
 A mão de Claudinei ardia, ele cheio de si tentou aproximar-se do menino para lhe espancar, prosseguindo com seu feito ameaçador, mostrando assim quem é que mandava. E mesmo assustados, Sulivam e Teles se prepararam também. Eis que as crianças entraram na frente, protegendo Matheus da perversidade dos insanos.
 Claudinei se afastou sorrindo, olhou para o garoto protegido e ameaçou:
— Isso não acaba aqui Matheus... Vou te pegar de novo, e na próxima vez, você não terá tanta sorte!
 Matheus se levantou ainda com um sorriso no rosto ensanguentado. Os malditos se distanciaram gloriosos do feito:
— Bem em cheio na boca dele, hem Claudinei! – comemorou Teles puxando o saco.
— Quero ver agora ele contar historinhas! – brincou Sulivam, aplaudindo o feito.

 Por mais que sorrisse diante de sua estupidez, Claudinei sentia fortes dores no pulso que usou para golpear o pequeno. A noite veio longa no silencio do seu quarto escuro. O pulso dolorido latejava, travando seu sono, lhe dando febre.
 Ele abriu os olhos na madrugada e gritou de insana dor.
 Os pais vieram em seu socorro, ele chorava em agonia, babando Babava um bebezinho, tamanha era a dor nos ossos da mão. Foi levado de imediato ao hospital.
 E enquanto o médico olhava a radiografia, o menino esperava o efeito do antibiótico que tardava a lhe arrancar a dor.
 Todos os dedos quebrados. O médico impressionado perguntou como o menino conseguiu aquela façanha. Ele jamais revelaria.
 O que causava conforto em sua dor era imaginar os pontos que Matheus levou no lábio. Pensava no menino com a boca roxa, chorando ainda mais alto que ele enquanto o medico lhe remendava com agulha e linha.
 A dor passou a ser um alivio ao imaginar que o menino profeta estava sentindo uma angustia muito maior graças a boca ferida.
 A noite ainda lhe foi longa e cheia de dor. A mão latejava dentro do gesso apertado.
 Mesmo assim acordou cedo e foi à escola. Foi contra a vontade dos pais, pois precisava se recuperar.
 Na verdade ele foi para ver seu feito. Foi para ver Matheus com a boca inchada e costurada. Essa seria sua grande recompensa. Um troféu e tanto!
 Mas o destino realmente não é um sujeito compensativo... O menino Matheus como sempre acompanhado de seus seguidores passou por ele, e estava com o rosto limpo e intacto. Lhe sorriu com a boca pequena, sem corte, cicatriz ou vestígio de sangue... Sorriu como se o ontem nunca tivesse acontecido, lhe cumprimentando levantando a mão e balançando os dedos pequenos.
 Por um instante Claudinei achou que seus olhos mentiam... Não, não estava enganado. Matheus estava normal e mais confiante que o de costume, conversando com as outras crianças e lhes seduzindo com suas palavras. Sulivam e Teles chegaram e também se impressionaram com a face limpa do menino:
— Não pode ser! – Indagou Claudinei inconformado – Eu arrebentei a boca do desgraçado!
 Teles se benzeu como a mãe fazia quando se deparava com estranhezas... Sulivam boquiaberto começou a perceber que a descrença era tolice:
— Talvez ele tenha mesmo algo a nos dizer, Claudinei... Talvez ele não seja tão estranho como nós o pintamos... Talvez seja um anjo, ou algo assim...
— Aos diabos com sua desordem mental, Sulivam! – indagou Claudinei, confrontando a fé do amigo – Esse malditinho nada é alem de um comum de merda! Um falho, prestes a ser derrubado por um golpe mais forte. Golpe este que eu darei! E desta vez garantirei que ele nunca mais ira sorrir!
 Teles duvidoso entrou na onda de Sulivam, tentando desencorajar uma possível ação de Claudinei:
— Acho melhor deixarmos de lado essa marra... Não precisamos segui-lo e nem persegui-lo... Vamos apenas deixar que ele prossiga com seus dizeres, certamente não nos farão mal e nem bem.
— Deixem de ser covardes! Vão ceder pelo simples fato dos lábios dele não mais guardarem cortes? Vocês estão sendo tão tolos quanto os outros! Não sou descrente, vocês é que são crentes demais!
 Sulivam sentia que perdia o rumo do que pensava. Teles até temeu em ser governado pela convincente eloquência.
 O tempo fechou. Era ainda de manhã quando as nuvens escuras cobriram a escola. E elas foram testemunhas dos dizeres de Sulivam:
— Vamos pega-lo sozinho. Vamos massacrar o malditinho e provar de uma vez por todas que ele não passa de um tolo comum!
 O tempo carregado prometia chuva das brabas. Sulivam olhou para Teles. Teles convencido de que devia isto a Claudinei, concordou no plano maldito.
 Era disso que Claudinei precisava... Um voto de confiança... Apenas um voto de confiança dos dois pequenos que ainda tinha sob seu controle.
 E Matheus indiferente a tudo, continuava com suas palavras. As crianças ainda mais impressionadas com seus dizeres e façanhas, e ele, de longe, olhava os três diabólicos que planejavam seu despencar.

 Teles pedalou apressado debaixo da chuva grossa pela Rua São João. Tinha pressa em chegar até a Travessa Aracaju, onde em um terreno baldio, Claudinei com o gesso protegido por sacolas de plástico, aguardava com Sulivam:
— Ele vai mijar pra trás... – disse temeroso Claudinei – Vai se acovardar!
 A boca de Claudinei se fechou quando a bicicleta derrapou e entrou em meio ao matagal do terreno baldio. A chuva intensa fazia a água correr entre o asfalto e o meio-fio, enquanto os meninos se preparavam para o ataque.
 Aquele era o caminho até a casa de Matheus, e mais cedo ou mais tarde ele passaria, sozinho.
  Claudinei arrancou da mochila um canivete. Os raios e trovões clamaram nos céus e Sulivam perguntou:
— O que é isso Claudinei? Esta ficando doido?
— Relaxa... – disse ele alisando a lamina – É só pra dar um sustinho nele... Quero vê-lo mijar nas calças!
 Eis que na ponta da Travessa Aracaju ele se fez presente. Caminhando bem no centro do meio-fio, como um equilibrista, um “dono do mundo”, cantarolando uma canção vazia... Sim, ele cantava despreocupado, rumando á sua casa, sem temer e sem se desvirtuar.
 Teles em susto o enxergou de um modo diferente... Ele ali, caminhando no meio-fio, parecia um indiferente, um ser totalmente imune ao que pensavam e tramavam... Uma criança como todas as outras, que caminha apenas no meio-fio, brincando em se desafiar.
 Quando se é pequeno e a imaginação é vasta, imaginasse que o meio fio é um espaço neutro. O lado da calçada é o céu, que nos protege, o lado da rua é o inferno, que representa o perigo... E Matheus não caia para nenhum dos lados, pois era indiferente a tudo e todos... Era apenas alguém que gostavam de ouvir... A chuva forte batia em suas costas e ele cantava, sem pressa de chegar em casa.
 E quando passou no meio-fio do terreno baldio, Matheus despencou no inferno... Teles o golpeou na cabeça e ele caiu assustado, pois era apenas um menino...
 Sulivam desgovernado o golpeou ainda no chão, com a prancha rachada do skate. Tamanha foi a violência da pancada que o skate acabou de quebrar. Matheus gritou de dor, tentando se levantar do caos. Não conseguiu.
  Claudinei se preocupou e pediu para os dois comparsas arrasta-lo até o meio do terreno baldio. O sangue grosso escorreu da cabeça do menino, caminhando junto com a enxurrada...
 Em meio ao matagal, o menino ainda levou mais chutes e pontapés. Claudinei então empunhou seu canivete... Teles e Sulivam o encararam em tom de reprovação:
— O que é isso Claudinei? – exclamou Sulivam.
— Não há mais volta Sulivam... Precisamos terminar o que começamos!
 Matheus inerte abriu os olhos assustado. Encarou Claudinei com o canivete debaixo da chuva grossa. Claudinei se ajoelhou diante dele, determinado. Teles virou as costas, Sulivam se ajoelhou também e segurou os ombros do menino indefeso:
— Não faça.... – Implorou Matheus – Não faça isso...
 A lamina pontiaguda confrontou-se com seu destino. Matheus arregalou os olhos e abriu a boca, golfando sangue. Em impulso, segurou a mão engessada de Claudinei, que em lagrimas, o perfurou outras vezes, até ver que ele realmente estava morto.
 A mão quebrada latejava mas não doía. Claudinei impressionado saiu de cima do menino morto de olhos abertos, indignado com a violência de seus algozes:
— Esta feito... – disse o assassino conformado, largando a lamina – ele esta morto!
 A chuva caiu com mais força... Os raios e trovões povoaram o céu carregado enquanto os meninos correram dali, deixando para trás o cadáver de Matheus.

 Claudinei tomou um banho longo para se livrar do sangue que impregnada seu corpo. Debaixo da água quente, tentou mexer os dedos dentro do gesso protegido pelo plástico. Sentia seus ossos fortes e curados, ousou rasgar a proteção e arrancar por conta própria o gesso molhado.
 Livrou-se do casulo branco. A mão estava totalmente regenerada, e nem assim ele sorriu.
 Uma certa culpa o invadia, mas não o impediu de ter uma boa noite de sono. A culpa não lhe povoou a mente e ele descansou, na esperança de acordar em um novo dia, onde enfim governaria.
 O dia amanheceu e o sol forte invadiu a janela do seu quarto, o fazendo despertar.
 Era a primeira vez que não acordava com sua mãe lhe chamando. Ouviu o barulho de um carro em alta velocidade e ousou levantar-se da cama e olhar pela janela.
 Testemunhou o carro correr veloz pela rua, até se chocar-se violentamente contra um poste.
 Assustado, desceu correndo as escadas de seu quarto. Ouvia na rua carros se chocarem uns com outros, parecia que o mundo todo havia enlouquecido.
 Procurou pelos pais e não os encontrou, eis que abriu a porta que dava até a varanda e os viu.
 Estavam pendurados, cada um em uma forca feita na ponta de uma mesma corda, cruzada no caibro grosso da varanda. Os dois enforcados balançavam no ritmo do vento curto, enquanto o coração de Claudinei disparava.
 Os pais estavam mortos... Só podia ser um maldito pesadelo! Não era. Sua angustia ia alem da percepção de um sonho ruim... Aquilo tudo era real, e ele caminhou até a rua, olhando as pessoas se atirarem dos prédios altos. Correu pelas ruas, tentando fugir do caos que varria tudo a sua volta...
 Por todos os cantos que ia, via os adultos se suicidando... Testemunhava as pessoas praticamente hipnotizadas, privando-se da própria vida, como que se aquilo fosse parte da natureza delas...
 Era demais para sua cabeça de menino... Estava só, olhando o horror cobrir seu bairro, sua cidade, seu mundo... Um corpo despencou próximo a ele e o lambuzou de sangue e vísceras. Ele bestificado olhou ao longe uma multidão se aproximar...
 Sem pensar duas vezes, correu até ela. E quando mais chegava perto, mas forte seu coração disparava. Era uma multidão de criança, e o menino que os conduzia, era Matheus.
 Ao seu lado, estavam Sulivam e Teles. Bestificado, viu quando Matheus lhe abriu os braços e lhe disse:
— Tenha bom animo Claudinei! Não há nada pra se temer. Você me abriu os olhos, me mostrou que a morte é um mal necessário. O mundo não precisa ser ouvido e nem aconselhado... Precisa ser reinventado. Crianças não são desobedientes, os adultos é que são, e para um novo começo, se faz necessário que eles tombem. Assim poderemos crescer e evoluir em um novo mundo, livre da maldade que nos seduz a crescermos como todos. Faça parte de um novo começo. Venha conosco.
 Claudinei assustado olhou a sua volta. O sangue dos adultos escorria em abundancia pelo meio-fio, como a água da chuva no dia anterior. E em meio a uma era de mudanças, entregou-se a inocência, caminhando ao lado de Matheus e das outras crianças, todos prestes a desbravar um surdo mundo novo.

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