sábado, 10 de agosto de 2013

O noivo finado de madallene


 
Quem está agora ao teu lado?
Quem para sempre está?
Quem para sempre estará?
Legião Urbana, O Descobrimento do Brasil 


 Uma coisa muito grave incomodava os longos dias de Madallene. Não era seu peso exagerado, tampouco as papas no rosto e os olhos redondos e grandes. Não, a obesidade da mulher que devorava quitutes, doces e guloseimas com maestria nunca lhe foi um incomodo. O que realmente assustava a quarentona (que já estava alcançando os cinquenta), era saber que ficaria pobre. Miseravelmente pobre e faminta.
 Olhou para sua geladeira farta. Abriu os armários embutidos, cheios de mantimentos que dariam para o resto do mês. Os potes gigantescos de vidro, todos cheios de biscoitos e balas... Um freezer carregado de sorvete, outro só com carne de porco e frango, e o terceiro cheio de carne bovina.
 Sim, fartura era a palavra chave para uma vida feliz:
 — Na vida a gente só aproveita o que se come! – dizia a mãe, que também era gorda e esgoelada. Morreu do coração, com uma taxa de colesterol nunca antes registrado na medicina.
 E comer era uma glória... Seu doce paraíso era a fartura, a geladeira cheia, a boca carregada, os dentes triturando, a língua identificando o inigualável sabor de tudo... A satisfação!
 Nada neste mundo lhe trazia mais felicidade que comer, e foi bem por isto que ela nunca se casou.
 Namorar, beijar, transar, ter filhos... Blargh! O egoísmo não lhe permitia dividir... Se casasse e tivesse bebês, fatalmente comeria a papinha deles, beberia todo o leite das mamadeiras e arrotaria tão alto, que o eco demoraria mais de nove segundos para se calar.
 Assim era Madallene, gorda e farta, vivendo muito bem sozinha.
 Mas a noticia da possibilidade de ficar pobre lhe devorava por dentro... Pensava logo na fome, na escassez, na desgraça de ter que comer do lixo...
 Era sim exagerada, mas sua desgraça estava para ganhar cor. O pai, que morava na capital, lhe mantinha. Lhe dava uma mesada tão gorda quanto ela, e esta mesada lhe dava de comer e beber. E falando em beber, ela não bebia no copo não... Bebia é na boca da pet de 2 litros.
 Só que em um rápido pensar, o velho chegou a conclusão de que agia errado. Viu que criou um comodismo, uma zona de conforto. Estava criando uma porca gorda, uma porca cujo coração se afogaria em gordura, tal qual aconteceu a sua finada esposa. Afinal de contas, se come pra viver, não se vive pra comer:
 — Não Madallene! – disse ele autoritário ao telefone – Não, não e não! Se quer continuar vivendo a minhas custas, terá que se casar! Você precisa conhecer alguém e ter uma vida social! Não é só com a boca que uma mulher vive intensamente, Madallene! Por Deus, você precisa de um companheiro, um parceiro para lhe mostrar outras coisas da vida! Que seja pobre, eu não ligo, banco os dois! Banco, mas quero lhe ver farta e acompanhada! Ninguém vive só de comer e beber não!
 Madallene comia sonhos, mas não vivia de sonhos. Sabia que casar estava longe de suas possibilidades. Uma porque não fazia questão, outra porque não era nem um pouco atraente.
 Um homem pensante, comum ou errante, jamais se casaria com alguém como ela. Não por ser gorda e falha, é que era desajustada a coitada... Ao invés do batom, tinha a boca manchada de molho. As unhas afiadas não eram pintadas, serviam apenas para rasgar carne cozida e até mesmo para abrir melancias ao meio. Não. Um homem em sã consciência jamais casaria com uma maquina de devorar como aquela.
 A vaidade nunca passou por ali, e se passou, foi tão rápido que ela nem teve tempo de saber o que era:
 — Nem morto! – disse-lhe um homem a qual ela em desespero propôs casamento.
 — Prefiro comer merda! – disse o outro depois de cuspir na calçada do bar a cerveja que bebia.
 Sem eira nem beira, Madallene se desesperou. Sabia que o pai era sistemático e cumpriria com o que prometeu... Viveria na miséria até achar alguém para namorar e casar.

 A palavra “escassez” retalhava sua mente como a faca que ela usava para fatiar o queijo. A geladeira ia ficando vazia e mais uma vez ela se lembrava das palavras de sua mãe, que dizia antes de ir comprar mantimentos no supermercado:
 — De onde só se tira e não se põe, uma hora acaba.
 Acabar... Ficaria mesmo na miséria! Não tinha outra renda senão a do pai! Passaria fome, tudo porque não arranjou um marido!

 Meses atrás um frango gordo e de penas negras pulou seu muro baixo e ciscou em seu quintal. Madallene, gulosa que era, logo enxergou um frango caipira cozinhando em sua panela de pressão. Sem pensar duas vezes, levantou a bunda gorda da cadeira almofadada e correu atrás do bicho.
 Depois de apanha-lo, esgoelá-lo e depena-lo, percebeu inúmeros alfinetes enfiados em meios as suas penas.
 Era sim um frango de macumba, mas o bicho cozinhou que foi uma beleza, flutuando com batatas e colorau, dentro de sua panela de pressão que chiava a musica da fome.
 Depois de uma farta refeição, teve uma tortuosa dor de barriga. Parecia que o frango depenado queria sair de dentro dela! Madallene incomodada perdeu a fome, trazendo-lhe então a depressão por dias a fio.
 Os dias passavam e o mal não lhe abandonava. Teve uma caganeira dos diabos, mas fome que é bom, nada.
 A solução veio da indicação de uma feiticeira. Uma senhora no mínimo estranha, que com rápidas palavras lhe diagnosticou:
 — Comeu frango de macumba? Preciso fazer um pequeno corte embaixo de sua garganta. Preciso arrancar um pouco de sangue e afogar sete penas do frango neles. Tens ainda as penas do frango?
 Tinha sim, tinha ainda penas do bicho em seu quintal. Ela trouxe sete delas para a velha, que lhe fez um pequeno corte nas papas da garganta e lhe arrancou uma xícara farta de sangue, afogando nela as sete penas, livrando Madallene da desgraça.
 Pronto! A fome voltou. Os dentes devoravam outros e mais outros frangos. Não mais de macumba, claro.

 E agora tinha outro problema... Se no episódio do frango lhe incomodava ter de comer e não conseguir, agora vivia o grave risco de sentir vontade de comer e não ter comida! Desagradar o pai não era nada bom, e ela tinha de dar um jeitinho de arranjar as pressas um marido.
 Apelou, é claro. Apelou para sua salvadora de outrora. A feiticeira.
 E como não existe no mundo mal irremediável, depois de ouvir o desabafo da gorda que passaria fome, a feiticeira velha lhe deu uma rápida solução:
 — Bem sei de um lugar onde se escolhe marido. Um deles esta lá, fresco e parado, esperando um apontar de dedo para se tornar seu.
 Madallene pouco entendeu dos dizeres da velha. Existia realmente um lugar onde ela escolheria um marido de enfeite? Um ser que fatalmente agradaria seu pai, que manteria a gorda mesada para comprar todo o tipo possível de comida?
 — Existe sim, Madallene – complementou a feiticeira, rindo malévola com os dentes podres. – Freezers não são feitos só para guardas potes e mais potes de sorvetes. Eles guardam também soluções para os problemas de algumas pessoas, inclusive dos seus.
 E a feiticeira mais que depressa misturou líquidos e pós místicos. Fervilhou a poção em uma casca de coco com a chama virgem de uma vela negra e sugou com uma seringa:
 — O que diabos é isto? – perguntou a gorda enquanto comia uma espiga de milho cozida.
 — Isto se chama “solução”. Respondeu a velha nefasta.
 Levou a gorda esperançosa ao necrotério da cidade, onde foram muito bem recepcionadas por Malaquias, o legista.
 Malaquias bem conhecia a feiticeira que fez o parto e fechou o corpo de seu filho. O recém-nascido saiu do ventre de sua esposa quase morto. A feiticeira o arrancou de lá e enfiou palha de trigo em sua boca. O menino cresceu forte e saudável, trazendo eterna gratidão ao pai legista que bem conhecia a morte:
 — Esta aqui é a ala dos indigentes. – disse ele mostrando as ultimas gavetas do necrotério, enquanto fumava um baseado. – Esta lotada. Pode escolher, dona. Só peço que me devolva ele o quanto antes. Se a a senhora não gosta de armário vazio, também não gosto de gavetas vazias no meu necrotério.
 — A gorda só precisa dele por no maximo três dias. – disse a feiticeira – Depois o trarei de volta, tal qual daqui saiu. Pode escolher Madallene. Este é seu luxo de hoje.
 Com relação a homens, Madallene nunca fez questão de escolher. Não se interessou por nenhum vivo, mas agora, com quatro opções de cadáveres congelados, escolheu um bigodudo, meio barrigudo e careca. Nem feio e nem bonito, com um padrão de até que aceitável:
 — Quero este bigodudo aqui. – disse apontando com o dedo gordo. – este é perfeito!
 — Boa escolha. – disse Malaquias o arrancando de dentro da gaveta. – Homem pardo, aparentando 48 anos ou mais. Ataque cardíaco. A família, se é que ele tem, nunca reclamou o corpo. Esta esfriando a cabeça aqui faz quase seis meses.
 Mais que depressa o cadáver foi jogado no porta-malas do carro da gorda e levado até a casa da feiticeira. Tempo suficiente para esquentar a carne e receber a dose da injeção.
 A feiticeira aplicando com cautela assim falou:
 — Ele despertará na base do feitiço. Seu pai virá e você o apresentará como seu noivo. Quando o velho satisfeito for embora, matamos o defunto novamente e voltamos com ele para a geladeira do necrotério. Simples, não é?
 E como era! A gorda farta sorriu quando o cadáver escolhido abriu os olhos. Tinha ela agora um noivo. Um futuro esposo defunto.
 Era só felicidade... Teodoro (este foi o nome que ela lhe deu, já que ele não tinha lembrança alguma do que um dia foi), era um inanimado gentleman. Dizia poucas e repetidas palavras. Era neutro de sentimentos e quase nada comia, o que era ótimo para a gorda, que não gostava de dividir suas guloseimas. Ele era calmo e inerte, vago e indiferente a tudo. Gostava de assistir TV e ria vez ou outra, quando ouvia um comentário bobo. Era ele o esposo perfeito, digno de ser apresentado ao pai sistemático de Madallene.

 O velho desceu desconfiado do taxi. Foi recepcionado com um abraço apertado pela filha obesa. E enquanto era espremido pelos braços rechonchudos, sentia o cheiro misto de molho madeira com o azedo de suor:
 — Como conseguiu um homem essa criatura nojenta? – pensou ele.
 E na mesa de jantar, lhe foi servida uma deliciosa bisteca com purê de batata, molho canadense e fritas, com banana a milanesa. Ele, classudo que era, comia decentemente, enquanto a filha enfiava colherada e mais colherada na boca.
 — E você rapaz? – perguntou ao genro de prato vazio – não come nada não?
 Os olhos do cadáver brilharam. Ele mordendo os lábios arroxeados, levantou-se da cadeira e disse com a voz de zumbi:
 — Caaarneeeeeee....
 Caminhou molambento até a pia, onde uma maminha embalada a vácuo estava quase descongelada.
 Voltou com ela para a mesa, sentou-se na cadeira, abriu o pacote e jogou a carne ensanguentada no prato. Com as mãos lambuzadas de sangue, segurou garfo e faca, olhou para o sogro e voltou a dizer com um leve sorriso no rosto:
 — Caaarneeeeeee.....
 Madallene gargalhou testemunhando o noivo retalhar pedaços da carne crua e jogar na boca. O sogro pra lá de satisfeito, indagou:
 — Eis ai um homem de verdade! Come carne crua, e não essas porcarias cozidas em água fervente e gordura!
 E Teodoro ria débil enquanto dilacerava nos dentes a carne sangrenta, achando graça da aprovação do velho sogro.

 Depois de jantar, o pai da gorda deu-se por satisfeito. Levantou-se de sua cadeira,limpou a boca com o guardanapo e disse:
 — Não quero saber mais de nada! Melhor não poderia ser e nem será, Madallene! Arranjastes um excelente partido, tens minha benção e meu apoio total! Recomendo que case logo com ele, antes que o coitado mude de ideia! Sejas feliz, minha bolinha de carne recheada de banha!
 Madallene feliz da vida gargalhou realizada. O pai foi embora, lhe garantindo a generosa mesada.
 E naquela mesma noite, enquanto estava deitada ao lado do cadáver que tanto lhe ajudou, o ouviu dizer:
 — Mada... Madalleneee... Eu não querooooo...
 — Não quer o que, Teodoro?
 Ele lhe olhou com os olhos tristes e assim falou:
 — Não querooo vollltaaar para aquelaaa gavetaaaa... Não querooooo...
 — Você não tem coração, Teodoro. – disse ela triste, alisando com a mão gorda o bigode do cadáver – Ele explodiu dentro do seu peito, igualzinho o da minha mamãezinha.Vai acabar sendo levado para a universidade, para ser estudado pelos alunos de medicina. Ou então vai ser enterrado em uma valeta comum, com uma cruz de madeira socada na terra, escrita “indigente”.
 — Euuuu nãooo vooouuu volltaaaaar Mada... Nãoooo voltareii paraaaa a gavetaaaa gelaaadaaa...
 Madallene lhe beijou a testa, lhe cobriu com o edredom e disse carinhosa:
 — Durma no quentinho hoje, meu bem. Prometo que se ninguém reclamar seu corpo no necrotério, eu o enterrarei com o nome de Teodoro no tumulo de minha família.
 A gorda dormiu, mas o cadáver não. A cabeça agora pensante de Teodoro, alimentado por carne crua, logo tratou de maquinar um jeito de não mais voltar para a gélida gaveta.

 Fez uma breve visita a feiticeira velha, que não previa que um defunto inerte pudesse gravar o caminho até sua casa. Ela, em meio as suas fronhas, despertou, testemunhado Teodoro dizer, enquanto segurava uma faca cumprida:
 — Não voooouuu voltaaaar paara a gaveeetaaaa....
 A velha gritou. Um golpe certeiro e seco da lamina retalhou em cheio seu rosto, separando a mandíbula do resto da cabeça. Ela com os dedos cumpridos tentava estancar o sangue e a baba que escorria do ferimento e da garganta. Os olhos esbugalhados encaravam o triunfante cadáver reavivado. Triunfante sim, pois teria sucesso em seu bom plano.
 A ponta da faca cravou bem no meio da testa da velha feiticeira, rachando o crânio e atravessando do outro lado. O cadáver que ela mesmo trouxe a vida riu desengonçado, voltando para a casa de Madallene, todo sujo de sangue.

 Quando soube da boca mole do defunto sobre sua ação e maquinação, a gorda o colocou no carro e dirigiu apressada até o necrotério.
 O legista Malaquias estava com trabalho até o pescoço, deu pouca atenção para a gorda que foi devolver o defunto. Malaquias olhou o cadáver gordo e bigodudo de cima a baixo. Coçou o queixo e disse gesticulando:
 — Veja bem, minha senhora. Ele até que teria que voltar a se deitar na gaveta. Mas não posso fazer isto por dois motivos: Um deles é porque ele esta ai, de pé, falando e respirando. Já o outro motivo...
 Caminhou até a gaveta onde outrora estava Teodoro e a abriu. A gorda espantada levou a mão até a boca ao dizer:
 — A velha feiticeira?!
 — Pois é. – disse Malaquias – A danada foi brutalmente assassinada nesta madrugada. Pelo que conheço dela, não tem família para reclamar o corpo, de modos que ocupou a gaveta onde antes estava seu “noivo zumbi”. Pois bem, não tenho espaço pra mais nem um indigente. Se a senhora preferir, mate seu noivo ai e o enterre em uma vala comum, porque se ele estivesse aqui, com a chegada dessa defunta nova, ele fatalmente perderia o lugar e seria liberado para a valeta dos indigentes.
 Claro que se ele estivesse na gaveta a feiticeira velha estaria ainda viva...  Teodoro liberto da gaveta gelada, ficou feliz da vida, digo, da morte, aplaudindo o conselho do legista.
 Sem ter o que fazer, Madallene deu a mão ao noivo defunto. Voltou com ele para seu lar, onde comeu, comeu e comeu, para celebrar sua nova condição. Esposa definitiva de Teodoro, o bom esposo defunto.

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