quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

O diferencial

Conheci uma garota chamada Larrisa. Ela tinha marcas pelo corpo, sinais que demonstravam seu sofrimento. Quando perguntei a ela se não havia outro modo de exprimir sua tristeza, ela apenas deu de ombros.

Conheci uma garota chamada Joana. Ela tinha olhos extremamente vermelhos, daqueles que se destacavam de longe. Quando perguntei a ela se não havia outro modo de expulsar a dor, ela apenas fez uma careta.

Conheci uma garota chamada Olívia. Ela sorria como se houvesse algum fio esticando os cantos da sua boca. Quando perguntei a ela se não havia outro jeito de ser feliz, ela apenas continuou a sorrir.

Conheci uma garota chamada Nina. Ela vivia em bares como se eles fossem algum tipo de salvação. Quando perguntei a ela se não havia outro modo de esquecer as infelicidades, ela apenas pediu uma dose para mim.

Até que em um belo dia conheci uma garota chamada isis. Ela, de longe, era a mais quieta de todas. Não se auto-mutilava, não chorava, não sorria falsamente e não bebia. Apenas permanecia na sua, com grandes olhos abertos e um nariz empinado. Quando perguntei se ela não tinha nenhum problema, ela apenas balançou a cabeça incrédula e respondeu: “Moço, todos temos problemas. O diferencial está em como lidamos com tais fatos”.

Larissa era rejeitada por uma boa parte das pessoas ao seu redor.

Joana estava em uma crise de baixa auto-estima.

Olívia era infeliz com um marido que a traía descaradamente.

Nina havia levado um pé na bunda do namorado.

Já a minha pequena isis… Ah, pequena grande isis. Isis tinha uma doença terminal e, por incrível que pareça, foi a que mais me ensinou a viver.
Todos temos problemas, o diferencial está em como lidamos com tais fatos.

domingo, 26 de janeiro de 2014

Mar, Amar, Amor.

A gente caminha por aí, como dois apaixonados. Você ri e me olha, eu sorrio de volta, como se nada me fizesse mais feliz. A gente amanhece noutro dia, se ama ao nascer do sol, até que nos dê vontade. A gente briga, todo mês, ou toda semana, ou todo dia, o que importa é a reconciliação depois. No nosso canto, ao som da natureza, a gente canta como se não houvesse mais problemas, como se fosse só nós e o mundo estivesse parado por isso. Como se tudo sumisse e só houvesse nós, pelo menos por um dia, só a gente, ou pra sempre. Finge que é de verdade, finge que somos de verdade, finge que isso tudo aconteceu.
Eu nunca te pedi pra mudar, não por mim. Se um dia tivesse que mudar, teria que ser por você, acima de qualquer coisa. Eu queria apenas um pouco mais de atenção, como nunca me deram antes, e quem sabe, um pouco mais de carinho. Eu sei é o teu jeito. Mas saiba que me deixa confuso, quem se esconde atrás dessa fala. Dizem que quando se gosta de algo ou alguém, a gente cuida, protege, quer estar perto, fazer parte da vida. Eu aqui, trocando prioridades, te dando atenção e carinho, a ponto de fazer com que meus amigos sintam ciúmes de ti. E você aí, no seu mundo. Dizendo que esse é o teu jeito. Dizendo que cuida e gosta da sua maneira.
Talvez, se um dia me deixares, eu passe a mão na minha barba mal feita, e sinta saudade do quanto você gostava disso. Ou percorra trajetos que eram teus, na tentativa de não deixar que você se disperse das lembranças. As boas. Por escolha ou fatalidade, pouco importa, eu possa pensar em você todos os dias, e ainda assim, preferir o silêncio. Ele pode reler teus beijos, procurar o teu cheiro em outros cheiros. Ele pode ouvir suas músicas, procurar tua voz em outras vozes.
Aprendi que nessa vida as coisas que amamos podem ir embora sem avisar, outras vão embora e deixam bem claro que estão indo. Ambas as formas irão doer, doeram. Não se escapa de um tiro quando ele já está na sua direção, assim como não é possível escapar de um amor que já tomou conta do coração inteiro, o que é o meu caso com você. Se o meu amor não for suficiente para impedir a sua partida, a continuação não iria nos deixar ter um final feliz, se depender de mim minha cara pequenina, só vou chorar por você, quando não te ter em meus braços mais, quando a vida te tirar da minha vida, mas não por vontade sua ou minha, mas sim por todos nós um dia ter que partir.







Uma ninfeta explosiva

Nas noites mal dormidas teve frio, chuva, enchente... até tentativa de estupro aconteceu, mesmo assim elas estavam felizes, afinal faltavam poucos minutos para abertura das bilheterias, os  30 dias de sofrimento seriam agora recompensados: a venda de ingressos para o show do "Teen Idol" da vez, estava para começar.
A jovem repórter dentro da van da emissora enquanto se arrumava pensou em como odiava aquilo tudo, mais um adolescente mimado que logo iria desaparecer para dar lugar ao próximo, fazendo assim girar a roda da fortuna...das gravadoras...é claro!
Com os cabelos já arrumados e pronta para começar a matéria não pôde deixar de exprimir sua decepção com o trabalho:"PQP! tantos anos de "facul" para acabar nisso..." o cinegrafista apenas sorriu em sinal de simpatia...e saíram da van.
Aquilo era um campo de guerra, as meninas se espremiam em filas intermináveis diante das bilheterias.
A repórter queria terminar logo o serviço e sumir dali, com experiência neste tipo de matéria sabia o que fazer: acompanharia a primeira da fila até ela ter comprado seu ingresso depois era só entrevistá-la: mostrando ao telespectador a fã com cara de quem acabou de encontrar o Santo Graal.
A primeira menina da fila tinha os cabelos tingidos de vermelho e era bem desenvolvida para seus 16 anos, usava top e um shortinho mínimo, isso animou a repórter, ela sabia que um apelo sexy tornava qualquer matéria mais interessante aos olhos da audiência.
A menina atordoada deixou o guichê com o pequeno cartão nas mãos e deu de cara com o microfone da experiente profissional que disparou a pergunta clichê:"qual a emoção de comprar o primeiro ingresso..." o cinegrafista que até então filmava as curvas da garota, fechou um close no rosto da jovem, a menina começou a respirar com dificuldade, revirar os olhos e então soltou uma enxurrada de frases sem sentindo. A esta altura a equipe percebeu que a entrevistada estava a beira de um ataque... o que não seria uma surpresa depois do mês que passou, devia estar desidratada e mal alimentada some-se a isto a histeria de estar com o tão esperado ingresso. Numa atitude oportunista e cruel, a mulher da tv disparou uma sequencia de perguntas sem dar fôlego para infeliz adolescente, tinha a esperança de que a jovem perdesse o controle de vez... e tivesse um troço em frente a câmera.
Ficou feliz vendo que sua estratégia estava funcionando, a fã falava compulsivamente, sacudia corpo e tinha o belo rosto contorcido como uma possuída de filmes B.
De repente parecendo asfixiada levou as mãos ao pescoço, encarou a câmera e explodiu cobrindo a equipe da tv com seu sangue e pedaços sabe-se lá de que...ééca!!
Os milhares de ingressos que estavam a venda foram esgotados em menos de 40 minutos e o show foi um grande sucesso.

Horror na estrada



                - Quando ela sumiu? – Perguntou o policial civil Afonso, responsável  interinamente pela delegacia de Vargem Verde, cidade que fica a trezentos quilômetros da capital.
                - Há uns dois anos. Já estava desistindo de tudo, então enviaram para a minha mãe, Lucia Alves, o senhor deve conhecê-la... Acho que todo mundo conhece minha mãe nessa cidade – disse Marcos ajeitando os óculos, com as mãos trêmulas e com gotas de suor escorrendo pelo lado da face.
                Um homem com boa aparência aquele Dr. Marcos, pensou o policial. Olhos pequenos, rosto firme, lembrava o ator  Sean Penn  usando óculos.  Ele continuava a falar e a cabeça de Afonso  balançava afirmativamente, sem nenhum interesse no assunto.
               -Sabe, não tive muito contato com a minha mãe. Ela é uma pessoa difícil, devo tudo a ela, mas nunca entendeu as minhas escolhas;  por isso não venho visitá-la, mas agora ela está com câncer...
               -Não se explique! -  Disse Afonso -  Não sou daqui; venho apenas trabalhar nesta cidade, cumpro meu dever de policial e vou embora. As lendas desse lugar não me interessam, pois sei que em  cidades do interior cuida-se bem da vida dos outros. Já me contaram poucas e boas do senhor e sua mãe; fofocas, coisa bestas carregadas de muita bobagem sobrenatural.
Afonso chegou perto da janela e ascendeu um cigarro, a chuva caia lá fora e anunciava alagamentos e sofrimentos.  “Que droga de lugar amaldiçoado por Deus”.
                Pensou nas coisas que Jairo disse sobre a família de Marcos. Afonso não acreditava em nada daquilo: bruxas e feitiçaria. A velha era odiada por toda cidade, mas recebia muitas pessoas de fora para “tratamento espiritual”.  Aquilo causava transtorno para o prefeito e para a polícia, até que ela adoeceu;  teve câncer  e virou uma inválida numa cadeira de rodas que nem ao menos falava.  Os vizinhos tinham medo dela. Apenas um homem surdo-mudo fazia o serviço da casa todas as manhãs,  e depois ia embora.
                - O senhor Tarso, quem é? – Perguntou Afonso.
                -Meu  irmão de criação – fez a ressalva esfregando as mãos. Fomos criados juntos, ele teve meningite quando criança e  ficou surdo – Marcos enxugou o suor da testa. 
  Afonso pensou que ele estava nervoso, mas lembrou-se do boato sobre sua  internação em um hospício e todas aquelas noticia nos jornais sobre os ataques de pânico do grande cirurgião.
                - Não me leve a mal. Eu também fui adotado, mas Tarso sempre foi o preferido dela.
                - É … Ele parece um filho dedicado – disse Afonso.  As famílias são assim... Minha mãe sempre preferia a minha irmã.
                - Não sou um ingrato, senhor Afonso!  Por isso acho bom explicar: Tenho uma boa condição financeira e minha mãe anda quase na miséria.  Sei que deveria ajudar mais, porém ela não aceita. Ela nunca aceitou a minha partida, sempre disse que médicos não sabem de nada – Marcos abaixou a cabeça – ela considera um absurdo tudo o que  eu digo.  Nos amamos,  porém temos  opiniões divergentes.  Eu fui  adotado por ela e recentemente conheci a minha mãe biológica...  Sabe,  de repente descobri que tenho afinidades com ela. Isto é como ter uma segunda mãe.
                - Diante de tudo isso, essa mensagem vem parar exatamente aqui!  – Disse Afonso abrindo mais uma vez a caixa. – Não gosto disso!  Tenho uma sensação ruim aqui na minha clavícula e,  na última vez que tive essa sensação, perdi um irmão assassinado.
                - Acho que quem a enviou, queria ter  a certeza que eu  a receberia.
                A caixa estava aberta e,  o que os olhos viam, assustava até mesmo um médico experiente como Marcos.  Seus sentimentos por Lúcia ainda eram fortes e suas esperanças foram violentamente abalada por aquela mensagem. Ao longe um trovão abalou o silêncio do momento, seguido por outro.  Afonso estava há seis meses na polícia e pensava seriamente em mudar de atividade assim que pudesse.  Era baixo, usava um bigode que lembrava filmes antigos e tinha uma expressão facial do Mazaropi.
                - Não há nada que eu possa fazer aqui.  Tenho que levar a evidência e o senhor para a capital, como sabe.  Pode repetir a história novamente?
                Marcos parecia estar cansado de repetir toda a história, porém o  fez mais uma vez.  Conheceu Lúcia na estrada da vida há dez anos atrás, quando deu uma carona para a jovem morena que pulou à frente do seu carro.  Bonita e com uma expressão trite,  Lúcia cativou o médico.
               Ela tinha uma expressão meiga e começaram então a sair depois daquele encontro. A menina morava sozinha em um quarto no centro da cidade e lhe disse que seus pais eram do interior.   A verdade é que Marcos nunca os conheceu.  Quando foram morar juntos, repentinamente, ela se propôs visitar a mãe adotiva de Marcos.  As duas  não se entenderam, pois a velha não aceitava outra mulher na vida de Marcos.  Voltaram para a capital e naquele mesmo  dia, quase se separaram.  A jovem fez com que Marcos  lhe prometesse que nunca mais a levaria naquele lugar terrível e ele cumpriu.  Três meses depois ela desapareceu.
                - Uma história de cinema! – disse Afonso. – Tem certeza de que o que está dentro dessa caixa é dela?
                Marcos tirou da carteira uma foto e disse:  - Tirei esta foto de surpresa.  Isso pode lhe ajudar.   Afonso olhou a bela jovem de cabelos negros e sorriso aberto.
                 -Muito bonita, realmente.  Olhos castanhos … Pode ser!  – Fez um gesto com as pernas  e depois levantou-se – Acho melhor o senhor reportar-se ao delegado da capital. Temos um  ônibus que vai sair em uma hora; pegue as suas coisas que arranjo uma vaga. Veja: Esse temporal vai isolar essa cidade em quatro horas,  se continuar assim, devemos partir logo! – Afonso parecia exausto. - Essa chuva tem me causado muitos problemas.                    

                O prefeito está fora e  o delegado pediu-me para levar (junto com as provas) um casal de amigos dele e uma mulher gestante em trabalho de parto prolongado.  O senhor que é  médico deve saber, parece que o filho dela está meio de lado na barriga e a polícia acaba fazendo trabalhos que não são de sua competência. Eu preciso levar um preso e umas provas, o Jairo vai ficar responsável pela delegacia;  vamos em um ônibus da prefeitura com um trator fazendo a nossa escolta (limpando o caminho e portando uma corda, para o caso  de atolarmos).  Você está de carro?
                - Não vim de carro.  Há alguns anos não posso dirigir devido a um problema de saúde. Tenho síndrome do pânico e  não posso mais operar.
                - Poderia me ajudar com a gestante?
                - Entro em pânico quando vejo sangue – disse Marcos.
                - Talvez possa nos ajudar com a gestante – insistiu Afonso – uma ajuda é melhor do que nenhuma.
                - Meu ataque de pânico não permitiria.  Sinto muito.
                Afonso teve uma sensação ruim ouvindo aquelas palavras. Aquele médico estava lhe escondendo alguma coisa, porém não ligava. Seu turno de trabalho estava acabando e logo, dali a quatro horas, estaria em algum bar curtindo o que a vida tem de melhor: o vício e as mulheres.  Já  até sentia o gosto de uma bebida na capital, livre daquela gente e, principalmente, livre do maluco de óculos com sua caixa maldita.
               -Isso é um olho humano senhor Marcos? A perícia pode determinar com mais detalhes, mas é um olho humano, não há duvida; e muito parecido com o desta foto.
   Marcos chorou. Aquele parecia um choro forçado, mas  Afonso não queria julgar ninguém.
                A chuva caia impertinente. Grandes corredeiras se formavam dificultando qualquer deslocamento a pé. Afonso teria que se deslocar até o hospital o casal, juntamente com a gestante,  estavam esperando-o lá. Reinaldo, o motorista, parecia impaciente. Gritava que logo as pontes cairiam e eles não conseguiam passar. O ônibus tinha correntes nas rodas e um reforço na estrutura que protege o motor; e tinha  sido construído para andar naquele inferno.
                - Temos que ir, policial. A chuva só vai piorar – disse Reinaldo.
                - Temos que levar outro passageiro – disse Afonso para Reinaldo.
                - Certo. Vamos logo! A chuva vai destruir as pontes.
                As gotas caiam como pedras. Afonso amaldiçoou o dia que ouviu o seu amigo Lauro lhe dizer que, no interior, a polícia é mais tranquila. Teve um trabalho imenso até juntar todo mundo e colocar o trator para andar.
                Quando a viagem começou, os passageiros se dividiram no ônibus de forma heterogê0nia: O casal sentou-se no meio;  conversavam sem parar como se estivessem de férias. A gestante amparada por uma enfermeira gemia no fundo do ônibus e tinha um soro acoplado ao seu pulso; Marcos sentava-se no primeiro banco e Afonso ficou de pé ao lado do motorista. À frente, estava um trator conduzido pelo experiente Helmer e todos andavam em uma velocidade pegajosamente lenta, escorregadia e cheia de balanços.  Na primeira hora os solavancos deixaram Marcos enjoado, e então ele levantou-se.
                - Fique sentado, senhor! – disse Afonso.
                -Estou enjoado. Você tem algum remédio para enjoo? – perguntou Marcos. Depois escutou-se um barulho tremendo e  uma sirene disparou.
                 – Ah meu Deus! O que aconteceu com o trator?
                Todos olhavam para frente. Nada do trator.
                - Deve ter feito meia volta – disse Reinaldo que conduzia o ônibus bem devagar. – A visibilidade está péssima, mas na minha frente ele não está mais.
                - Pare o ônibus! – disse Afonso – vou descer para ver o que aconteceu.
                Marcos desceu atrás do policial que tentou protestar, mas... O mundo é livre! Ele praguejou alguma coisa do tipo “o azar é seu se morrer”.  Os dois andaram por uns cem metros, sob chuva torrencial. Havia pouca visibilidade, pois já era cinco da tarde, mas... Afinal, o que havia acontecido com o trator? Olharam um pouco mais a frente, na lateral da estrada, no acostamento.
                - Olhe Afonso! – disse Marcos.
                - Oque foi? – balbuciou Afonso no meio da chuva forte.
                - Acho que ele caiu ali – disse apontando para uma enorme cratera feita na estrada.
                Afonso olhou para onde Marcos apontava e percebeu que o  buraco  na estrada tinha uns três metros de profundidade, mas estava totalmente fora da trajetória. Somente um erro grosseiro levaria o trator para aquela direção. A pergunta que Afonso estava se fazendo naquele momento era: Como um motorista experiente foi cair naquele buraco?
                - Que merda está acontecendo? – perguntou Reinaldo.
                - Alguma coisa desviou o caminho do Seu Helmer e ele caiu no buraco – disse Afonso quase gritando. Sua voz saia fina, como a de uma mulher – temos que descer lá. Há cordas no carro?
                Reinaldo fez um sinal afirmativo com a cabeça e foi buscar a corda. Afonso desceu devagar e seus pés escorregavam na lama; Marcos e Reinaldo seguravam a corda que estava amarrada no ônibus. O que Afonso viu foi terrível:  Helmer teve o corpo esmagado, seu sangue era levado pela chuva, que tudo sugava como um vampiro; e essa hemorragia  o levaria à  morte.  Antes de morrer, ele disse umas palavras:
                - Afonso, fuja! E leve essa gente com você. Uma coisa horrível... Eu vi uma coisa horrível!
                - Não diga nada. Você perdeu muito sangue. Vamos pegar o macaco do ônibus para levantar o trator e retirá-lo daí; depois voltamos para Vargem Verde.
                - A coisa me atacou e disse que a cidade deve pagar pelo que fez....
                - Como é?
-A mãe do médico, a velha bruxa – ele tossiu, pela boca saiu uma quantidade sangue. Tarde demais, Helmer estava morto.
 Afonso pediu que o ajudassem a subir.
                - Vamos voltar para Vargem Verde! - Quando Afonso disse essas palavras,  já estava dentro do ônibus. Ele não comentou  nada do que Helmer  lhe disse.  Marcos permanecia calado. Reinaldo estava resignado, afinal, estavam apenas a cem quilômetros de Vargem Verde, poderia voltar para casa e dormir em uma cama quente.
                Afonso foi até o médico e gritou.
                - Que diabos está acontecendo aqui?
                - Não tenho a menor ideia - disse Marcos.
                - Helmer falou que toda essa merda é obra de sua mãe – disse Afonso.
                - Você acreditou em tudo? Sobrenatural.
                -Vamos voltar! – disse Afonso.  Na delegacia quero ouvir essa história novamente.
                A enfermeira foi a primeira a se manifestar:
                - Não podemos! A criança dela está atravessada e logo vai sentir dores muito fortes, assim morrerá.  Marcos concordou com a cabeça.
                -Eu tenho negócios. Se não chegarmos à capital, perderei muito dinheiro – disse o amigo do prefeito, enquanto a sua mulher esboçava uma gritaria.
                Afonso pegou a sua arma.
                -Estão vendo isso? Isso é a minha autoridade. Vamos voltar para Vargem Verde. Nada mais tenho a dizer e quero todos calados no caminho de volta;  já temos um bom homem  morto debaixo de um trator  por tentar nos ajudar.  Não quero ninguém mais morrendo! – Ele apontou para a enfermeira e para Marcos que desviou o olhar.
                 – Você tem que cuidar dela. Sei que é experiente e já viu o Dr. Mauro, antes de morrer, fazer dezenas de cesarianas. Agora é a sua vez.
                O caminho foi lento. A  chuva parecia aumentar e muitos tentavam secretamente usar o seus telefones celulares. Afonso nem  tentou. Sabia que telefones não funcionavam ali e que estavam por conta própria, jogados à própria sorte. Ninguém mais poderia saber pelo que eles passavam naquele momento. Ninguém.
                O pneu dianteiro direito do ônibus estourou. Reinaldo parou o veículo.
                - Merda! Vamos perder de uma ou duas horas trocando o pneu. Já está ficando tarde e essa grávida não para de gritar.
                 -Vamos! – disse Afonso.
                 Todos tiveram que descer do ônibus. A lama cobria os joelhos e a água caia com força. A gestante começou a gritar de dor, nada amenizava o seu sofrimento, nem mesmo as injeções de remédios. A gritaria e a noite deixavam o ambiente tão desesperador que se sentia um arrepio constante nas costas. Pensamentos ruins passavam pela cabeça de todos.
                - Cala a sua boca! – disse o amigo do prefeito. - Estou ficando louco com sua gritaria, sua grávida de merda! Na hora de fazer, o gritinho era outro....
                Marcos queria esmurrar aquele homem. Afonso ignorou, pois estava pensando em coisas mais importantes.
                A gestante deu um grito ainda mais forte, seguido de outro.  Afonso pediu para o amigo do prefeito se afastar,  com a arma em punho. Com medo, o homem retrocedeu. Afonso ficou na frente da gestante que gritava de dor.
                - Alguma chance dela parar? – disse o policial.
                - Não – disse a enfermeira que se aproximou de Afonso, falando próximo ao seu ouvido – em algumas horas ela estará morta, se não chegarmos ao hospital.
                - Vamos chegar! Darei um jeito de chegarmos a algum hospital – disse Afonso.
                Marcos aproximou-se do policial e disse:
                - Vou tentar. Acho que posso ajudá-la, mas temos que chegar ao hospital. Posso dar o meu máximo... Ainda tenho conhecimentos de obstetrícia – disse pegando uma medicação em uma maleta e injetando no soro. – Isso vai retardar o parto, mas se não chegarmos ao hospital ela vai morrer.
                Afonso balançou a cabeça afirmativamente.
                - Cadê a minha mulher? Onde está a Karla? – disse o amigo do prefeito.
                - O que aconteceu com ela? – perguntou Afonso.
                - Foi atrás daquela arvore fazer xixi e desapareceu.  Já procurei... Meu Deus, o que eu vim fazer nesse fim de mundo?
                Afonso correu até o pé de manga.  Teve dificuldade pois havia muita lama. Nada. Nem uma pista. O amigo do prefeito começou a chorar e gritar o nome de Karla. Minutos depois, Afonso e Marcos faziam o mesmo; estavam exaustos  e com as pernas  atoladas  no meio da lama.
                Ficaram caminhando nesse delírio por horas. A chuva molhava mais que a alma, os olhos nem podiam ser totalmente abertos, os gritos por Carla somavam -se à gritaria infernal da  grávida, alguma coisa esbarrou junto com a enxurrada na perna no amigo do prefeito. Um galho solto entrou em sua coxa e rasgou quarenta centímetros da sua carne, fazendo com que o sangue que saia da parte posterior de sua  coxa misturasse com o barro e com a lama.  A dor deve ter sido intensa, pois o homem magro, de face feminina e jeito educado perdeu os sentidos. Marcos olhou para ele e teve a certeza de uma lesão na artéria femoral. Afonso tentou  correr para ajudar o homem que empalideceu. Correr é um eufemismo diante da lama, da enxurrada e da chuva pesada. Os movimentos pareciam em câmara lenta e a noite começava a aparecer. O farol do ônibus iluminava, mas a escuridão fora daquele clarão era quase que total. Marcos e Afonso estavam usando uma pequena lanterna que iluminava o caminho de uma forma precária e macabra.
                Quando avistaram a mulher andando com dificuldade pela lama, havia alguma coisa errada com o pescoço dela que estava tombado, reclinado e preso  por fios de aço. Olhar aquilo, por si só,  já dava vontade de vomitar. Marcos teve um acesso de pânico e o amigo do prefeito misteriosamente acordou, tirando forças ninguém sabe de onde, e correu pela lama gritando desesperadamente.
                - Karla, você está bem?
                - Amigo pare! Há alguma coisa errada com ela - disse Reinaldo.
                O homem, usando de uma força sobrenatural, correu o que pode. Seu rastro de sangue apavorava as pessoas que assistiam a tudo imóveis. Quando chegou perto da mulher, parou como se estivesse enfeitiçado; tudo  ficou congelado, frio. Todos podiam ouvir seus corações e uma fração de segundos se passou onde apenas o barulho da floresta foi ouvido. Até que a mulher ergueu as mãos, segurou a cabeça do marido que não ofereceu resistência e, mesmo com o pescoço tombado,  mordeu a sua face arrancando um pedaço  e depois outro.
                - Que lugar dos infernos! – gritou Afonso que foi atirando na direção de Karla. Uma das balas acertou a cabeça da mulher, que caiu.
                - O que fizeram com eles? São mortos-vivos! Será que a lenda é verdadeira? – disse Reinaldo.
                - Que lenda?– disse Marcos.
                - Um zumbi (português brasileiro) ou zombie (português europeu) é uma criatura cujo esteriótipo define-se nos livros e na cultura popular tipicamente como um morto reanimado, usualmente de hábitos noturnos, que vive a perambular e a agir de forma estranha e instintiva; um morto-vivo; um ser privado de vontade própria, sem personalidade. Histórias de zumbis têm origem no sistema de crenças espirituais e nos rituais do Vodu afro-caribenhos, que contam sobre trabalhadores controlados por um poderoso feiticeiro – Reinaldo disse. – Neste lugar há muito tempo atrás, diziam que haviam mortos-vivos, gente que morreu e continuava vagando, alimentando-se de outros seres vivos. Sua mãe me contou essa história. Sabe que eu tinha muito medo daquela velha, não é?
                - Minha mãe é praticante de Vodu. Ela também me contou essa história...
                  -Querem calar a boca! – disse Afonso. Ele estava olhando para Karla. Somente a última bala que a atingiu entre os olhos derrubou aquilo. Sua pele estava fosca e havia muito sangue do amigo do prefeito. Afonso apontou a arma para a cabeça dele e disparou.
                   -Por via das dúvidas... Não acredito nessa história, mas não vou ficar esperando que um indivíduo se levante e venha comer a minha carne.
                - Que vamos fazer? Temos que voltar para a cidade e a grávida esta gritando de dor – disse Reinaldo.
                Afonso olhou para Reinaldo com desprezo. Seus cabelos sujos pela lama e grudados na cabeça davam a ele um aspecto de louco.
                - É tudo culpa dele!– disse Reinado apontado para Marcos. A mãe dele é a bruxa dessa cidade! Sempre foi. Sempre trouxe o mal junto dela. Quando eu era criança, ouvia coisas horríveis que ela fazia com meninos e meninas... Agora dizem que ela está morrendo de câncer e quer levar a cidade junto com ela.
                - O que minha mãe tem com tudo isso? Muito do que falam dela é mentira! -disse Marcos.
                - Nós sabemos, doutor, que o senhor ficou no hospício – disse Reinaldo. Em uma cidade pequena sabe-se de tudo – disse encarando  Afonso que ainda estava de olho no amigo do prefeito e escutava a discussão cuidadosamente.
                - Fiquei porque nasci assim. Não tem nada de estranho no fato de uma pessoa ter síndrome do pânico. Não sei o que minha vida pessoal tem com essa merda toda!
                - Calem a boca! Essa conversa não vai chegar a lugar nenhum! – disse Afonso.
                - Na cidade dizem que o senhor recebeu os olhos de sua esposa pelo correio... Pode ser que ela esteja viva e bem na casa de sua mãe, senhor Marcos. A velha é uma praticante de magia e arrancou os olhos de sua mulher porque não gostava dela. O senhor sabe que ela fez isso! Por isso veio aqui... Quer que ela pague, mas tem medo dela.
                - O senhor ficou louco?
                - É adotado não é? Ela roubava crianças e as oferecia  em sacrifício. A gente ouvia os gemidos e isso deixava muita gente doida – disse Reinaldo. Não sabe nada sobre aquela velha... Antes de morrer ela vai destruir essa cidade. Vivo aqui a minha vida toda, ela vai acabar com a cidade... ela acha que a cidade lhe pertence.
                Um grito aterrador ocorreu. Era a mulher grávida.
-Ela está morrendo! Temos que tirar a criança agora! Aqui e agora – disse a enfermeira. – Pode ajudar doutor?
                O médico começou a tremer e suas mãos estavam suadas. Ele vomitou, depois caiu para frente. Afonso tentou levantá-lo, mas ele manteve a face na lama. Reinaldo ajudou a erguê-lo; seus olhos estavam virados, parecia em transe. Afonso bateu com a mão espalmada na face duas ou três vezes até que o médico começou a chorar e chamar a mãe.
                - Ele está tendo a porra de um ataque de pânico! – disse Reinaldo.
                - Doutor, nós  precisamos do senhor! – gritou Afonso.
                Como um robô, sem escutar direito o que Afonso estava falando e com as mãos trêmulas, Marcos pegou na maleta o velho bisturi. Jogou um pouco de álcool na barriga da grávida e, quando ia cortá-la, Affonso perguntou segurando o seu ombro:
                - Ele vai corta - la?
                - É – disse Reinaldo.
                - Salvará a vida do bebê. – Disse a enfermeira.
                Marcos passou o bisturi apenas com cuidado para não ferir a criança, depois retirou -a. A mulher não sobreviveu.
                - Que merda! – disse Afonso olhando todo aquele sangue, lama e chuva. No meio de tudo... Uma menina.
                Marcos entregou a criança para a enfermeira, mas o que viu não pode ser traduzido em palavras. Em toda a sua vida nunca viu algo tão macabro: Centenas de pessoas andando pela lama, devagar, com faces deformadas e  pescoços tombados. Duas coisas eles tinham certeza: Primeiro, eram todos habitantes da cidade; a outra é que estavam todos mortos.
                Afonso começou a atirar e depois gritou.
                - Corram!
                Então fez o último disparo.
                Alguma coisa agarrou a enfermeira, ela desequilibrou e para proteger a criança caiu batendo a cabeça no tronco, Afonso olhou para o lado esquerdo onde estava Reinaldo, ele havia desaparecido, Marcos estava parado e olhava fixo para a mulher mais velha que conduzia a multidão, aquela mulher que um dia chamou de mãe.
                -Doutor precisa pegar a criança – disse Afonso.
                -A enfermeira está morta, precisa segurar a criança, eu vou tentar pegar o rifle e a outra pistola que estão no ônibus.
                -Não quero ficar sozinho aqui – disse o médico.
                -Todos nós estamos sozinhos nesse mundo Doutor, pegue a criança se eu não voltar corra o máximo que puder...
                Ele nunca voltou.
                Marcos não sabe quanto tempo andou, nem quantas horas ouviu o choro da criança, mas quando chegou a estrada havia um carro parado uma chave no banco do carona, roupas para a criança, alimento, e uma carta.
                Onde havia os dizeres:
                -Chama-me de “Lucia” é um presente meu para você, depois de um tempo vai entender tudo.
                 Marcos ligou o carro, queria sair dali o quanto antes. Não havia mais medo, Lucia estava do seu lado, ele conseguia enxergar, finalmente a chuva parou e tinha o seu amor de volta.

              -Ela é linda não é? - disse Lucia. Marcos sorriu, sabia que tudo era coisa da sua cabeça da loucura. A criança chorou, tinha que sair dali antes de perder a sanidade definitivamente.

Amor, Entre o falso e o verdadeiro






                               Dizem que o mundo mudou e que o amor não é mais o mesmo, que o romantismo é piegas, que há uma necessidade de massificar tudo, levar aos extremos, todos sabem a resposta, o prazer em primeiro lugar e é assim que vivemos, pois os outros são bons, eles são os melhores então seremos iguais a eles.
                               O casal individualizado, no seu amor e na sua alma. Com suas alegrias e tristezas, calmos, dispostos a sentir a brisa e a música, não serve, pois no mundo moderno não há casais, a verdade é intransigente o que conta é a beleza, riqueza e prazer. A beleza magra, forte e dura, peitos e plásticos misturados em uma forma elástica, abençoada estática das prateleiras e dos bisturis.
                               Há quase nenhum espírito em tudo isso, homens macacos batendo em seus fortes peitorais, fêmeas cheias de suas belezas esperam pelo mais forte, aos gritos de (aí galera, massa veio, cara...). O que é óbvio é que o bonito vence, descemos um degrau ou dois, estamos mais perto do reino animal que imaginamos, tudo isso é tão natural quanto o excesso de álcool, cigarros e drogas, tudo isso sempre existiu, agora tudo é na “cara mesmo” “tá ligado”.
                               A sensação provocada pelos grandes romances e pelas belas músicas agora é substituída pelo funk ostentação, pelo “lelele” na mulher objeto, que afinal quer ser objeto, pois acha que sempre foi? Onde o beijo numerário, repetido é involuntário, surdo, completamente visual, um pequeno troféu.
                               A musica be my baby, diz em sua letra: “para todo beijo que me der, darei três em você” (The Ronettes - Be My BabyBe My Baby" é um single de 1963 escrito por Phil Spector, Jeff Barry, e Ellie Greenwich, interpretado por The Ronettes, lançado como o primeiro single do grupo e produzido por Spector. A canção é uma de uma série de produções de Spector que contam com o vocal de apoio de Cher, até então uma aspirante a cantora de 17 anos ). Uma belíssima música, imagine  sentir a música, comprar aquelas flores, então o coração disparar, esperar pela aprovação do gesto  mais tolo, pelo tão sonhado beijo  o respeito pelo amor conquistado.
                               Há algo que vivi para sempre em algum lugar, talvez a forma mais bela de se encontrar o amor é através do sorriso da amada, para isso nos transformamos em comediantes, então a tragédia da vida, através da comédia, em um passe de mágica vira um belo romance. Diante de um amor tão necessário a massa de jovens se movimenta em uma lama igual de narcisismo, sintropia , comuna maciça, consumindo uma energia tão interessante para vida, liberando de forma desordenada, mortos diante de uma competição estéril, onde todos perdem, tornando a vida uma imensa brincadeira de videogame, onde a felicidade é impossível, por isso a busca louca pelo prazer.
                               O homem quando se afasta do reino animal, de alguma forma se aproxima da divindade, devemos pensar sempre nisso, ou será que essa história toda sobre Deus é uma grande mentira?

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Cantinho de Poemas Semeados


 
O cair da tarde refletia o peso melancólico do passado. No céu de um violeta escuro aveludado estrelas já brilhavam como pequenos prismas naquele lugar longe do mundo, um cantinho onde o amor torna tudo possível.
Este era o único lugar onde desejaria estar. A cabana em que seus lábios se tocaram pela primeira vez, um instante voraz, congelado no tempo. Sob a luz do luar ele abrira os braços e ela se aninhara entre eles, e ficaram assim, um bom tempo, convictos de que os dois se amavam o suficiente para encontrarem uma maneira de continuarem juntos para sempre. 

Naquele paraíso, por anos, o tempo do amor tinha sido um espaço sem fronteiras.
Os dois no silencio da lua.
Deusa do seu querer, ela abria os olhos, e ele se recolhia em seus olhos de lua enquanto ela dançava para ele, enfeitiçando-o com seu olhar, incendiando de paixão sua alma.

“Não chores por mim. Em vez disso sorria de alegria por mim e por meu amor”. E tão perfeitamente adormecida, os olhos dela se fecharam e a cabeça virou para o lado.

Espalhou as cinzas ao vento e sobre as flores, ali no lugar que ela amara.
Caminhou por entre as flores silvestres. As cinzas saíram voando, rodopiando sobre o cantinho de poemas semeados, como se estivessem procurando por ele, chamando-o pela ultima vez.
Pensou se devia dizer alguma coisa. Fazer um tributo à mulher que lhe dera o coração para não ser mais devolvido.
Decidiu que não. Palavras não saberiam descrever o amor tatuado em seu coração, uma estrela que nunca ia morrer. 
Ao invés, no vesperal silencio, deixou sua alma murmurar, gritar, cantar a esse amor a sua eternidade.

O rompimento

Eram quatro horas da manhã. Joanna rolava de um lado para o outro na sua imensa cama de casal. Pensava no dia em que teve a brilhante ideia de comprá-la. Sempre foi tão confortável. No entanto, isso foi antes dele ir embora. Agora essa mesma cama era fria, desagradável e vazia, e ela achou impossível continuar ali.
Ela pegou as chaves e entrou no seu velho Fiat branco. Começou a dirigir sem pensar para onde estava indo. No rádio tocava Bed of Roses, do Bon Jovi. "I wanna lay you down in a bed of roses. For tonight I  sleep on a bed of nails", Joanna murmurava para si esses versos da música. Não podia aceitar que ele não estivesse com ela, eles eram perfeitos um para o outro, ela tinha certeza. Dois anos de relacionamento, tantas conversas, tanto amor, sexo. Houveram algumas brigas, mas nada que ela achasse relevante, afinal, todo casal briga. O que ele disse para ela não justificava, o amor não podia ter simplesmente ter acabado, não era justo.
O carro parou e ela se deu conta de onde estava. Aquele velho portão de ferro, o número três na porta de dentro, o já conhecido cheiro de cachorro, vindo do quintal. Destrancou o portão com a cópia da chave que ainda tinha e entrou no quintal. Não sabia bem o que estava fazendo. Ela foi até a janela que dava para a sala e viu uma luz acesa, abaixou um pouco a cabeça e espiou. Escutou um gemido e grudou mais a cara no vidro. "Droga!", ela pensou. Seu ex estava com uma mulher, ela queria impedir, mas sabia que não deveria. Saiu correndo dali para a sua casa.
Duas da tarde, o telefone tocou. Viu no identificador, era ele. Não ia atender, não depois do que ela tinha visto na noite passada. Ela estava sofrendo por ele e enquanto isso ele estava com outra. Isso doeu. Mas e se não tivesse sido nada demais, e se ele tivesse percebido que gostava mesmo era dela. Sim, era isso mesmo que devia ter acontecido. "Alô".
No fundo ela sabia o que devia ter feito, mas jamais admitiria para si mesma. Ela não iria trair a sua tão amada esperança.

Naquela noite

foto 1
Incrível como em algumas horas toda uma vida pode mudar. Como os sonhos podem morrer por causa de um milímetro. Como a inteligência e lógica podem ser destroçados por aquilo que apaga o fogo da morte. Como a mais linda das criaturas pode… Sucumbir diante da impureza e escória. Como a felicidade cômica pode virar a tristeza melancólica... E tudo isso. São marcas que não saem, sangramentos que não param, tormento que nunca vai embora.
 - Não tente me enganar, essa máquina é viciada, porra, viciada!
- Vá se danar, Carlinhos, você é que não tem dinheiro pra pagar a aposta!
- Seu idiota! Olha isso aqui, a polícia tá a um passo de descobrir que não é casa strip, e sim um casino!
Eu olho com divertimento para a briga entre o dono do casino e o tal de Carlinhos. Carlinhos é um homem de cerca de 27 anos, de corpo normal, como o de qualquer jovem que quer sair por ai cheirando cola e vivendo uma vida normal… Tem um porém: ele é viciado em jogos de azar.
- Porra, é por isso que chama caça-níquel, é enganação, enganação, enganação!
- Cala a boca e paga meus 25 mil, seu merda!- Grita o dono do cassino.
Um silêncio se abre pelo casino. Ninguém fala, apenas olham para Carlinhos.
- Você tá ficando doente, eu nunca deveria ter te trazido aqui!- Gritou mais uma vez, o dono do casino.
E então chega uma mulher com um criança nos braços. Ela deve ter uns 40 e poucos anos, mas muito bela. Tem cabelos negros na altura da cintura e um corpo escondido por roupas florais típicas de senhoras. Ela começa a implorar para Carlinhos que pare, até que…
- Meu filho, por favor…- Implora a mulher, de joelhos.
Nenhum som. Além dos soluços de choro da mulher e o choro da criança.
- Eu não aguento mais!- Diz ela, bem baixo, só pode ser ouvido por causa do silêncio.- Vocês são pai e filho! Pai e filho!
Carlinhos olha para o dono do casino e começa a fazer cara de choro.
Ela se aproxima do senhor e diz:
- Você escolheu mexer com esse tipo de coisa mas nunca deveria ter envolvido nosso filho nisso, Ricardo!
- Era brincadeira de criança!- Responde o homem.- Mas ele ficou viciado!
- Sua culpa! E então aquela mulher insignificante que tem nos casinos, cheia de maquiagem… Espere… Não é mulher.
- Tá bom, tá bom tá bom! Sem clima pra festa. Estamos encerrando nossas atividades por hoje…
Carlinhos enxuga as lágrimas.
- Eu não quero ficar aqui.
E então o dono do casino, Ricardo, começa a chorar.
- Meu filho, volte!- Grita.
Mas Carlinhos está da porta pra fora.
Eu sou curiosa… Algo me diz que essa história tem mais… Vamos ver…
Carlinhos sai fumando um cigarro, está indo em busca de sua namorada, Bianca. Como sei? É a foto saindo da carteira dele com o nome, é a mancha e batom em sua camisa, é o sorriso tímido em seu rosto.
Ele anda apenas alguns metros até um prédio, e eu vou atrás.
O prédio é um daqueles antigos, muito pacato, a única estranheza é a ausência de um porteiro…
Entramos na portaria, como já disse, sem porteiro. Ela tem uma parede cheia de botões e nomes… Dr. Carlos(coincidência?), Dona Isaura, Sr. Licurgo Passos, Tiago Moreira, Antônio Boamorte (e família), Bianca Soares… Bianca!
Ele aperta o botão e se aproxima da parede, e eu procuro prestar bastante atenção no que eles dizem.
- Qual é a senha?- Pergunta ela com ironia.
- "Você é o amor da minha vida”…
Ouço um tipo de suspiro vindo dela.
- O que posso fazer se não consigo ficar longe de você?
Ele se dirige ao elevador, parece confiante… Eu sigo… Como boa espectadora. Ele entra e aperta no 3° andar. E então, algo inesperado acontece… Ele tira do bolso uma caixinha de veludo vermelho, e lá dentro há um anel… Um anel de noivado…
Os olhos dele brilham e o sorriso tímido volta… Tudo o que já presenciei se torna tolo ao ver aquilo, simples… Encantador...Saímos do elevador e vamos em direção a porta “45″, ou seja, o apartamento “45″. Quem abre não é ela, é outra pessoa, que recomenda que ele faça silêncio. Ele não está surpreso, mas se faz de surpreso.
Entramos eles começam a fazer uma festa. Ele faz cara de quem não entendeu e vai em direção a Bianca, a garota da foto.
- Esqueceu meu aniversário?- Pergunta ela.
- Esqueci.
- Esqueceu?- rindo e se aproximando dele, ele recua sorrindo.
- Sim, esqueci. O que vai fazer?
Ela coloca os braços em volta do pescoço dele.
- Eu vou te fazer lembrar… Com um beijo…
E então morde o lábio inferior dele, fazendo ele recuar de dor e rir ao mesmo tempo.
- Eu admito… Sou um canalha…
É um pouco verdade o que ele disse… Ela lança um olhar feliz e abraça-o. Ele fecha os olhos e sorri. Parece que encontrou seu lugar no mundo… O único lugar onde não se sente tão só.
Eu estou começando a achar que não deveria estar aqui… Minha procura sempre foi a outra coisa, não isso. Mas algo diz que eu devo ficar aqui…
E então, desviando o olhar eu vejo um homem, jovem, de estatura baixa filmando eles.. Mas algo me diz que eu deveria observar o que ele filma, e eu vejo que ele não filma eles ele filma… Ela… E eu penso que ele admira-a, ele vê ela como a criatura mais doce e inocente do universo, como a mais linda, a mais delicada, a… Mais encantadora…
Carlinhos percebe que ele filma, e deixa de ser aquele apaixonado para se tornar novamente um encrenqueiro.
- O que você tá fazendo, seu filho da puta? O cara parece fraco demais pra lutar, mas Carlinhos empurra-o.
E então ela foge entra todas aquelas pessoas. Ela fala com uma amiga e eu resolvo ouvir.
- Calma, você sabe que…- tenta argumentar a amiga.
- Eu não aguento mais ver ele brigando com o meu amigo.
- Carlinhos é ciumento, tenta entender…
- O que eu faço, por favor? Como vou contar pra ele desse jeito?
- Calma, tudo vai se ajeitar…
Elas vão em direção ao quarto.
- Admirá-la, tudo o que eu quero é admira-la!
Meus instintos me levam de volta aos dois.
Carlinhos dá um chute no rosto do homem.
- Você é um merda!
- O dinheiro que você quiser, o dinheiro que você quiser se me deixar apenas admirá-la.
Carlinhos parece se acalmar, e… Decide tentar ouvi-lo
- Ela é sua, cara, sua! Eu só gosto de vê-la, ver como é bonita, só isso… Eu sei dos seus problemas, cara, eu posso resolver, cara! O dinheiro que você quiser…
- Tudo bem…- Murmura Carlinhos – Vamos falar sobre isso.
Eles vão para a cozinha.
- Quanto você quer?
Carlinhos olha pra ele com vergonha.
– 25 mil… Não toque nela!
- Eu nunca o faria!- Exclama o homem.
Apesar de tudo, Carlinhos sabe o que fazer agora. ele pega a caixinha vermelha e, depois de ter vendido a imagem de sua amada, vai pedi-la em casamento. Tê-la por inteiro, mesmo sabendo que a imagem dela é também de outra pessoa…
Ele esconde a caixinha nas costas e procura por ela, mas logo acha, indo em direção a porta da frente.
Ele sorri e vai em direção a ela.
- Amor, eu…
- Babaca!- Grita ela.
Ela sai porta fora e bate fazendo um barulho que todos podem ouvir, apesar da música alta.
Ele até cogitou em ir segui-la, mas pensou em deixa-la esfriar a cabeça...
Para resumir, passou-se uma hora. Ele bebia e cheirava bastante,enquanto traia Bianca com um monte de mulheres.
Ele parecia um maluco, pulando e rindo… Isso até chegarem as 5 da manhã, quando todos vão embora e ele se vê sozinho. Bianca não está lá. Ele decide ir procurá-la na casa da amiga dela, que fica do outro lado da rua.
Acho que agora as coisas estão indo como eu havia imaginado, pois na calçada ele se depara com Bianca com o rosto ensanguentado dentro de um carro. Ela está debruçada no vidro, e quando ele se aproxima ele vê que o motorista é nada mais nada menos que o comprador dela. Ele sorri e deixa um papel cair na rua, e arranca com o carro muito rápido.
Carlinhos pega o papel e corre atrás do carro até os seus pulmões não aguentarem, ele não consegue alcançar.Que ironia? O papel é um cheque de 25 mil reais que ele trata de rasgar em um milhão de pedacinhos… Até que ele se lembra de algo importante…
Meu sorriso é inevitável. Essa será a mais divertida que eu já vi!
Ele corre até a casa do pai em busca de algo. Ele entra sem cerimonia e pega uma arma dentro da gaveta da sala, para emergências.
- O que você tá fazendo?- Diz o pai, que acaba de acordar com o barulho.
- Nãããão!- Exclama a mãe dele, que acordou antes para alimentar o bebê, que agora está no chão brincando com uns blocos com letras, números, animais…
- Seu doente, doente, doente, doente! Solte isso!- Exclama o pai.
- Ele mexeu com a Bianca, levou ela pra longe, eu vou matá-lo!
- Haja como um homem uma vez na vida, chame a polícia!
Ele coloca a bala na arma.
- Isso é entre mim e ele…
- Para com isso, meu filho, fique aqui em casa e chame a polícia. Ficaremos todos aqui com você, não precisa disso!- Diz o pai, tentando convencê-lo.
- Não!- Exclama Carlinhos.
A mãe está assustada e não consegue dizer nada. O pai, então parte para cima do filho tentando tirar a arma dele. Carlinhos reluta até que deixa a arma cair e ela dispara… O silêncio toma conta da sala. Carlinhos sabe o que aconteceu quando ouve o grito histérico da mãe.
O tiro foi parar na cabeça da criança.
- Nããããããããão!- Grita a mulher, de agonia e dor, dor de mãe.
Ela chora enquanto abraça seu filho sem vida, e o sangue inocente banha suas roupas brancas de dormir. Carlinhos fecha os olhos e se ajoelha no chão. O pai simplesmente chora sem saber o que fazer.
- Monstrooooooo!- Grita a mulher enquanto no seu outro filho, manchando-o de sangue.- Você acabou com a minha vida! Você não deveria ter nascido!
Carlinhos começa a chorar também, percebendo a besteira que fez… E por fim, ela volta a abraçar o cadáver inocente, olha para Carlinhos com frieza e diz:
- Assassino!
A esta altura o pai já havia chamado a ambulância e a polícia, com esperanças de que a criança sobreviva.
Os médicos e policiais chegam. Os médicos checam os sinais vitais da criança e balançam a cabeça em sinal de negação. A mulher vai ao chão mais uma vez, gritando de dor.
- Nããão! Meu filho nããão!
Os médicos levam o corpo e os policiais levam Carlinhos, que, a esta altura… É só um corpo.
E eu vou saio pensando em como as coisas acontecem, assim, de repente… Rápido... Tudo pode morrer em um piscar de olhos, e nada tem uma explicação...

 A vida é assim… A morte é assim.

A melodia dos tempos

     A noite estava morna e eu acabava de abalar a corda de minha guitarra, soando uma última nota de uma melodia lenta que eu improvisara. Me veio à mente a lembrança de certa ocasião em que eu, pela primeiríssima vez, beijei uma garota. Eu era bastante novo. Eu e minha estimada amiga fomos embalados por uma súbita curiosidade à cerca de tal representação de amor dos adulto. Em seguida, percebi que pouco tempo depois, me foi solicitado, por outra menina, um beijo meu. Cedi-o sem hesitar. Seguiu-se, ulteriormente, outras solicitações desse tipo. Às quais eu atendia da melhor forma possível. Aprendi que eram cumplicidades deliciosas e busquei-a em diversos lábios femininos ao longo do meu início de juventude. Lá pelos meus quinze anos, tornei-me extremamente envaidecido pelo fato de ser desejado pelas mais desejadas meninas da pequena cidade em que morava. Para alimentar minha auto-estima eu precisava estar sempre pondo em prática minhas habilidades sedutoras. Sem que eu percebesse, havia me tornado um menino muito inseguro. E notavelmente bonito. Aprendi, com o tempo, que não deveria desperdiçar meu belo rosto juvenil. Também percebi que meu poder social consistia em não ter, por menina alguma, um beijo negado. Precisava disso para sentir-me aliviado. Aprendi a beijar sem amar, arrancar o recheio e jogar fora o biscoito. Aprendi a amar para fazer drama. Desejando, sem perceber, que não me amassem de volta. Assim, eu poderia ser o pobre coitado de quem as gurias tinham vontade de cuidar. Pratiquei, por toda a minha juventude, o crime de (através de consolidações físicas de afeto) representar afeto onde não havia sequer um pingo de sentimento. Matei em mim a capacidade de amar e ser amado. Ajudei a disseminar por aí o beijo vazio, a simulação de um namoro que dura algumas horas. Afinal, é tudo o que resta aos pobres coitados abençoados geneticamente com a beleza visível aos olhos. A capacidade de exaurir, aos amassos, a própria beleza e a beleza do próximo, como a produção industrial que mata o charme do trabalho artesanal. Hoje, de tanto beijar por beijar, herdei de minha juventude a habilidade de tratar uma mulher como um instrumento musical. Para exprimir de qualquer uma o prazer, aprendi as técnicas de todos os acordes da anatomia feminina. Mas não sei fazer brilhar em nenhuma a melodia da paixão duradoura. Eu não sabia até então, mas hoje percebo que o recheio sozinho, não preenche nenhum campo vazio da alma. Porém, não sei mais o que fazer com o gosto do biscoito. Isso daria uma história boa, repleta de conflitos e amores conquistados ou perdidos, se eu não houvesse compreendido tudo isso. Toda vez que desligo o telefone, depois de uma conversa com Sandra, digo-me que todas as outras foram mera curtição e posso colocá-las em um canto da minha mente e dizer ao contemplá-las: "é, eu curti a vida, foram válidas, apesar de agora eu curtir tudo isso em uma pessoa só".
       Mas isso não passa de auto-consolo. Eu nunca precisei delas. Fui simplesmente fraco e cedi aos elogios. Fui medíocre ao deixar-me transformar em um fantoche da sociedade, seguindo a moda da mocidade. Quisera eu, agora, ter beijado somente Sandrinha. Quisera agora somente poder retribuir a ela todo o amor que ela tem por mim. Ao me beijar, sei que ela põe no beijo todo o amor dela. Ela parece eletrocutar minha alma ao passar para mim aquela paixão devastadora através de beijos e de caricias espontâneas. Enquanto eu a manejo com mera técnica, uma superficial necessidade de agradá-la fisicamente, sem nada sentir. E muito embora ela ainda não tenha percebido, sem nada fazê-la sentir verdadeiramente. Arrependo-me agora, nessa noite morna, com a juventude morta, de ter transformado meu coração em uma fábrica capitalista de prazer. Quisera tê-lo privado de certas garotas, para saborear completamente essa que eu tenho agora.
       Tenho hoje vinte e tantos anos de vida e me sinto acabado neste quarto de hotel. Poderia estar tocando a macia pele dos dedos de Sandra, mas só tenho estas cordas de minha mais nova guitarra. Ah, é claro: a mão esquerda intercalo entre precisar os acordes na guitarra e trazer à boca o gargalo de uma legítima cachaça mineira de Uberlândia. Se perguntassem-me como é Uberlândia, eu não saberia dizer, estou aqui há dois dias e nem me dei ao trabalho de sequer explorar o hotel no qual estou hospedado. Só percebi um cheiro esquisito que vem das paredes que, apesar de fazerem parecer que é cheiro de tinta (cheio que eu amo de paixão), colocando alguém a todo instante ao corredor, fingindo pintar a parede, dá pra perceber que o odor azedo vem de detrás da tinta, talvez de dentro da parede. Porém, pouco me importa o cheiro de podridão que exala de dentro das paredes. Minha alma me ameaça mais que segredos paranoicos que eu guardaria nas paredes de um hotel mineiro.
       Entre acordes e bebericadas, argumentava em minha mente sobre como consenti-me ao aceitar, desde pequeno, as vicissitudes da minha vida. E como a minha vida e as pessoas que fazem parte dela se recusaram a aceitar-me, muito embora digam que aceitem para, em seguida, argumentem algo e contradizerem-se, sem perceber. Minha vida sempre fora muito simples. Morei em diversos lugares diferentes, estudei em inúmeras escolas e me adaptei ao ambiente e às pessoas que iam e viam em minha vida. Aprendi a beleza da diversidade. Mas de repente, à certo ponto de minha escalada em direção à felicidade, largaram-me na multidão e me vieram com conselhos que leram no espelho e exigências implícitas no fundo dos próprios olhos (onde eu não podia evitar de lê-las, enquanto as pessoas próprias não as viam). Eu já não sabia o que era importante e o que não era, muito embora o importante é aquilo que se considera importante, simplesmente. Sentia-me burro, pois a inteligência era aquele brilho que iluminava, com um pouco mais de alegria, a satisfação, e dava prudência para viver. Ajudava a criar e desenvolver novas ideias, melhorar constantemente o mundo e as pessoas e etc. O mundo me veio com a ideia de que aquele que está a todo instante buscando notícias na mídia e que soubesse reproduzir aos amigos no bar o que estava ocorrendo com algum presidente distante, não era uma pessoa meramente bem informada e sim, alguém muito inteligente. Aquele que se submete a ser moldado por professores, que aprende o que lhe é mandado aprender, que vive ensaiando para a próxima apresentação, no intuito de arrancar sorrisos e aplausos de alguém, achando que é o próprio sorriso que busca, mas não percebendo que vive em prol dos ladrões de sorrisos desavisados, também não são pessoas meramente responsáveis que cumprem com as obrigações impostas por outros. Convenceram-me que esses são os inteligentes. E assim, apagaram em mim, a luz da inteligência que eu achava ter. Talvez eu ainda tenha essa gigantesca lâmpada dentro de mim, ainda agora, que minha alma é um breu total. Mas dispensaram o brilho de meu talento. Sufocaram com mediocridades e conceitos impregnados na sociedade o meu conhecimento analítico. Se eu quiser brilhar, vai ter que ser de fora pra dentro. Talvez essa guitarra seja meu interruptor, ou (como eu quisera certa vez, com mais intensidade), um lápis e um caderno.
       Já havia lido em tantos livros, histórias assombradas que ocorriam em hotéis macabros e já havia assistidos inúmeros filmes de terror onde alguém se matava num quarto escuro e frio de hotel. Larguei a guitarra na cama, no lugar onde deveria estar minha pequena Sandra, e peguei na gaveta da mesa de cabeceira meu caderno e meu lápis. Senti-me compelido a escrever algumas páginas de angústia, tendo como cenário aquele soturno quarto de hotel. Contudo, me pareceu clichê demais e logo abandonei a ideia. Eu já havia escrito várias páginas naquele caderno velho e pus-me a lê-las, somente. Constatei na leitura que eu havia decididamente abandonado qualquer acentuação. Já estava preparado para a próxima reforma ortográfica. Cada vez mais, abandonam-se os acentos. Me pareceu, naquele momento, ao ser ortograficamente incorreto, estar sendo, na verdade, super clarividente. Afinal, escravos da gramática são os alunos de ensino médio que avaliam massantemente as grandes obras de ilustres autores, enquanto os verdadeiros, outrora, gênios literários, brincavam com a ortografia, criando e recriando com as palavras, sem respeitar demasiado as regras, orientando-se nelas apenas. Deixando para os responsáveis e bem informados queridinhos, inteligentemente dissecar poesias em busca de regras gramaticais.
       Decidi abandonar aquela leitura que nada me acrescentava e fui tomar um banho. Enquanto a água do chuveiro derramava-se em mim, minha mente pôs, mais uma vez, a deleitar-se em mórbida nostalgia, só pra me irritar um pouco mais. Meus pensamentos voaram ao meu passado um instante e trouxeram de lá fatos. E mesclaram os novos fatos das antigas, nos pensamentos frescos do meu raciocínio. Isso resultou em certas conclusões e ideias frescas. Apesar de eu ter tido muitas meninas para dançar a melodia do amor, seguindo a apologia: sem música. Eu passava muito tempo sozinho com meus pensamentos. E a solidão me ensinou a cultivar ideias próprias. Coisas das quais o mundo não tinha acesso. Eram pensamentos e conclusões minhas e somente minhas. E quando eu os colocava para fora, modelados com criatividade, pessoas aplaudiam ou balançavam a cabeça sorrindo e dizendo “só você mesmo, hein.” Mas isso não durou muito. Logo minha ideias, outrora admiradas por ter aquela benção de serem virgens, a graça de fazer rir, fazer espantar, agraciar as engrenagens mecânicas e cansadas daqueles que se limitavam a decorar velhas ideias e conceitos, agora não tinham mais brilho. Muito pelo contrario, ultimamente minhas peculiaridades, outrora admiradas, agora fazem de mim, uma pessoa imprópria para viver em sociedade. Minhas ideias são a causa de toda discussão e mal entendido. Tornei-me um veneno para mim mesmo. Aliás, falando em veneno, foi nesta parte da história em que bateram à porta. O som ressonou oco no ambiente. O barulho do baque dos nós dos dedos à placa de madeira que separava o quarto do compridíssimo corredor alvirrubro me fez sobressaltar e errar um acorde. Fui atender e deparei-me com um simpático funcionário do hotel. Trazia-me uma garrafa de Champanhe que dizia ser cortesia por parte do senhor Alvarez, dono do hotel Bona Solistina. Ao menos foi o que entendi. Trouxe para dentro a garrafa, a taça e o abridor. Abri, fingi festejar algo e deixei, sem querer, a garrafa cair ao chão. Praguejei, sabe-se lá por que, mas surpreendi-me quando uma fumaça subia do carpete bege. Demorei a perceber o que estava ocorrendo. Primeiro por que estava bastante bêbado por causa da cachaça, e depois que entendi, avaliei bem se era fruto de minha imaginação embriagada ou era fato verídico. O dono do hotel então teve a gentileza de compreender que eu não me sentia bem neste mundo e decidiu mandar-me para o além, certo? Maldito seja o bendito. Na minha concepção, por mais cruel que possa parecer, somente três pessoas neste mundo tem o direito de tirar minha vida, as duas primeiras são as que “me deram a vida”, e depois, eu. Afinal de contas a vida é minha, então eu faço o que quiser com ela. Estragar, consertar, tecê-la em qualquer direção ou atirá-la no precipício eterno. E meus pais, sendo eu, deles, minha vida também os pertence, até certo ponto. Antes de tentar compreender as razões "assassínias" do estimado senhor Alvarez, arrumei, de pronto, as minhas coisas, afim de partir daquele lugar o quanto antes.
       No dia seguinte eu amanheci naquele quarto. Devo ter desmaiado, provavelmente. Não lembrava de ter ido dormir voluntariamente. Só sei que apaguei na noite anterior, porque despertei na manhã seguinte. A cabeça doía e eu sentia toda aquele mau estar contido na ressaca de meia garrafa de cachaça. Bom, pelo que constei, eu estava vivo. Não sabia, porém, se por isso vibrava ou lamentava. Enquanto Tico e Teco discutiam a respeito, desci, prestando bastante atenção ao redor, para tomar café da manhã. Estava preparado para qualquer coisa, menos para deparar-me com duas belas (e põe belas nisso) jovens garotas no corredor do terceiro andar (um andar abaixo do qual eu estava hospedado). Ambas sorriram e cumprimentaram-me. Eu cumprimentei-as friamente. Não sei demonstrar afeição, assim de pronto, normalmente eu preciso sempre arquitetar minhas atitudes, até para improvisar ao ser pego de surpresa, sabe-se lá como, eu consigo estar previamente preparado. O cheiro ali embaixo, que tenho quase certeza, vinha das paredes, de dentro delas, estava pior. Era um cheiro azedo, de podridão. Chegando lá embaixo (surpreendi-me comigo por ter demorado tanto para decidir tal coisa), optei por tomar café da manhã em uma padaria, não muito longe do hotel. Quando voltei, o recepcionista, sorrindo nervosamente, entregou os pontos com uma inconfundível expressão de “como diabos você ainda está vivo?”. Tendo constatado no rosto do funcionário tal exasperação, desaprovando implicitamente o meu viver, o meu “ainda” viver, senti-me estranhamente inclinado a viver. À alguns degraus de distância do quarto andar, pude ouvir alguma movimentação pouco sutil no corredor. Ao caminhar pelo corredor em direção ao meu quarto, observei que um funcionário do hotel ficou subitamente preocupado com a minha indesejável presença e apanhou desesperadamente um balde de água e esfregou a parede, com força, um produto de limpeza de cheiro muito forte de álcool. Quando me aproximei perguntei:
       – Incomodo?
       – Não, não senhor! – respondeu com tremor na voz.
       Sem que eu planejasse, meu olhar caiu sobre o balde de tinta vermelho-sangue pousado no chão. Entretanto, antes que pudesse ver ou sentir o cheiro da tinta para avaliar melhor, o pintor jogou em cima da lata uma tampa e carregou suas coisas no carrinho. Arrastou-o às pressas corredor afora. Duas portas à frente ficava a suíte em que eu estava hospedado. Abri a porta, entrei, tranquei a porta atrás de mim e atirei-me na cama. Eu tinha sérios problemas de concentração e, portanto, esqueci-me logo que corria risco de vida naquele antro melancólico e cheio de mistérios sombrios. Passei a mão pelo rosto involuntariamente e percebi que precisava fazer-me a barba. Não por vaidade (é claro que não). Mas não me restava disposição para isto. Nunca me resta disposição para tais minúcias. Porém, eu gostava de conservar-me o mais jovem possível, ao menos na aparência. Assim, eu acreditava amenizar as pressões das obrigações que jogavam sobre mim ao me perceberem. A vida cobra a todos de acordo com sua vontade. Igualmente, os homens cobram aos seus semelhantes, também de acordo com sua vontade, e percebi que quanto menos idade possuir o ser humano, menos lhe é cobrado pelos homens. A vida, no entanto, não nos faz distinção alguma. Nem de idade, nem de cor dos olhos, dos cabelos ou tom de pele. Maior sendo sua idade, você, como imã, atrai frases como: “você já tem vinte anos nas costas”. Como se, ao completar dezoito anos, você magicamente se tornasse adulto, capaz de atender à demanda de responsabilidade dirigida, costumeiramente, aos adultos. Como se as fases da vida fossem impostas pela natureza e não fossem conceitos sociais abstratos que não existem efetivamente em campo físico. Como se todos fossem sujeitos a sofrerem místicas mudanças de comportamento para tornarem-se adolescentes, adultos, idosos e etc. Para tentar livrar-me disso, tento manter fresca minha aparência, o rosto mais de menino que puder, para que ao me olharem, mesmo sabendo de pronto que tenho vinte anos de idade, eu possa atrasar um pouco tal conclusão, ao enganar os olhos de quem me vê. Dos que não sabem minha idade, é ainda mais fácil, pois a única certeza que eles têm é a que lhes é concedida pela visão.
       Na hora do jantar, abri cautelosamente a porta da minha humilde suíte e adentrei o corredor. Atento à tudo e à todos. Quando já me aproximava das escadas, ouvi atrás de mim, o início de uma sessão de passos femininos. O sutil estampido oco ecoava corredor adentro. Abstive-me ante o primeiro degrau e olhei para trás. Vi uma menina de roupas casuais, daquelas que se usa para ir até a padaria da esquina e na ausência do pijama que foi posta para lavar, ou na ausência de disposição para trocar pelo uniforme de dormir, se deixa no corpo para deitar-se. Apesar de o som revelar-me que ela calçava um salto fino e firme, daqueles que se usa com vestidos chiques, meus olhos desmereciam a sentença do áudio e me mostravam que a menina calçava um par de sandálias altas. Vendo que eu a olhava, sorriu-me, graciosamente. Tinhas os cabelos claros, mas não muito. Parecia ser do tipo que não tem o hábito de pentear-se nunca. Umas mechas escorridas ocultavam as laterais de seu rosto fino e solene. Sorri de volta, gentilmente, e pus-me a descer lentamente os degraus, permitindo assim, que ela se aproximasse. Esperando que caminhássemos juntos ao corredor do primeiro andar, que levava ao salão de jantar.
       Lá jantamos. Eu em uma mesa e ela em outra. À uma distancia de quatro outras mesas um do outro. Olhávamos de soslaio vez ou outra. Ambos comemos bastante pouco e, primeiro eu, depois ela, voltamos aos nossos respectivos quartos. Sei que ela subiu depois de mim porque ouvi seus passos sincopados ressonando no corredor.
       Mais uma noite morna. Coloquei em um aparelho de som empoeirado, um CD qualquer de Marilyn Manson. Entre a garrafa de cachaça mineira que estava pela metade e a garrafa virgem de vodca, optei por despertar a vodca caloura. Peguei meu caderno e meu lápis e tentei escrever algo, qualquer coisa que fizesse aumentar a angústia da pessoa que encontrasse meus escritos após minha morte prematura. À esta pessoa, meu estreito talento para a escrita lhe pareceria um imenso talento. Curto, pois não teve a chance de ser desenvolvido. O que acrescentaria lamento à fatalidade à mim ocorrida. Mas enfim, acordei no dia seguinte e ainda era noite. A primeira explicação que me veio a mente foi a de que o sol havia esquecido de dar as caras, pela primeira vez na história da humanidade. Ou quem sabe, a escuridão se desse decorrente de um eclipse do qual eu não fora avisado? O que não é muito improvável, uma vez que eu não presto atenção à grande parte dos pormenores que me cerca, não digno atenção à essas minúcias que fazem órbita em torno das pessoas que me orbitam. Desliguei o som onde girava desenfreado um álbum de Marilyn Manson. Mesmo apesar de o som estar desligado, meu amigo Manson não parou de cantar. Na busca da certeza absoluta, mesmo sabendo que o som não vinha das caixas de som de dentro da minha suíte, retirei o aparelho da tomada e constatei que Manson continuava a gritar uma canção animadoramente "assustiva". O telefone tocou, fazendo-me sobressaltar. Atendi.
       - Alô?
       - Boa tarde, senhor Carlos. O perigo está crescendo, estou ligando para pedir-lhe encarecidamente que não deixe o hotel hoje.
       - Porque não? – perguntei.
       - Porque não é seguro. Entendo que não é seguro aqui dentro tampouco. Mas ao menos dentro das paredes desse hotel, teremos alguma diversão.
       Pude sentir um sorriso moldando aquelas frases, o que, é claro, me assustou um pouco. Sorri, sem omitir, por precaução, deixando o perceber minha indiferença. Privando-o do prazer de ver-me assustado ou confuso. Afastei as cortinas após pôr o telefone no gancho para procurar no céu algum vestígio de resposta, ao menos. Não havia céu. Onde deveria estar algumas nuvens, e além delas algum céu, havia um oceano. Ou seja lá que nome tenha uma enorme quantidade de água, em seu mais puro estado líquido, flutuando no lugar das nuvens. Mas acho que ainda não tinha nome um fenômeno desses. Atrás de mim, baterem à porta com tamanha força. Nada ouvi dizer da boca da pessoa que espancava a pobre porta de madeira branca, mas sabia que ao fazer calar aos lábios o desespero, era mais do que gritar. Uma enorme demonstração de desespero, ainda maior que o desespero demonstrado aos berros. Pois ainda trazia ao desesperado a incerteza de estar sendo ouvido. Abri a porta, um pouco emburrado com a falta de educação do indivíduo, e me deparei com um rosto solene que me fez sentir alívio e abandonar o mau humor que eu havia armado contra quem assolava a porta de minha suíte.
       - Oi, deixa eu entrar? – perguntou com a voz doce e sedutora, e foi-se entrando.
       Apesar de manter uma aparente, e até convincente calma, transparecia-lhe, na mesma intensidade, o pavor. Entrou no quarto e, de supetão, virou-se e mandou que eu fechasse a porta e a trancasse. Obedeci. Ao fechar a porta me veio a mente a preocupação com o estado de minha suíte. Na cama, mau havia lugar para sentar-se. Ao virar-me para dentro do quarto, vi-a sentada na cama. Havia encontrado um espaço naquela bagunça. Era a habilidade exclusivamente feminina de lidar com a bagunça de qualquer homem.
       - Desculpe-me invadir dessa forma o seu quarto. – disse gentilmente.
       - Tudo bem, só não repara a bagunça. – pedi, e forcei-me a mexer em alguma coisa aqui e ali, fingindo arrumar, ou fingindo tentar arrumar.
       A menina dos cabelos desgrenhados e oleosos, que lhe caíam nas laterais do rosto, formando um wide-screen no ângulo de noventa graus, olhou ao redor com certo espanto leviano.
       - Impossível não reparar. – e sorriu como quem não da importância.
       - Mas então... Está tendo uma chacina no corredor, ratos no seu quarto, ou o que? Não me entenda mal, é um prazer recebê-la aqui. Só por curiosidade. – perguntei, imediatamente arrependendo-me, ao sentir-me um tanto grosseiro.
       Ela se limitou a pedir algo para beber e eu percebi, inexplicavelmente, que não se tratava de algo que matasse a sede do corpo, mas sim, a desidratação das emoções. Entre vodca e cachaça, ela optou pela vodca. Bebemos juntos, o resto da tarde negra, naquele quarto de hotel. Conhecemo-nos, contradizemos-nos e percebemo-nos muito semelhantes na essência de nosso ser. Muito embora nossas ideias se confrontassem em diversos pontos. Obviamente eu não tentei cortejá-la. Eu tinha o meu orgulho. Sou do tipo que só prepara o terreno, molha a horta, mas deixo que os outros colham e me entreguem nas mãos os frutos. Tentar colher os frutos dela, significaria trair a minha querida Sandrinha. Mas dar umas bagunçadas sinistras com aquela bela menina não me faria amar menos minha adorável Sandra. Eu sei que no fim de minha vida, sempre vai me restar aquela velha opinião acolhedora: “ao menos eu curti a vida”.
       Do corredor soou o berro de uma criatura. Parecia-me o urro arrancado da garganta de um ser alienígena. Impôs medo, instantaneamente, em mim e na menina. Abracei-a, e ela não demonstrou nenhuma objeção. Aguardamos o destino, quem sabe fatal, que nos advinha, encurralados pelo medo (ótimo nome para um filme do qual eu me sentia pertencente, aliás). Entretanto, mais tarde, encorajados pelo álcool, depois que o perigo silenciou por algum tempo, abrimos lentamente a porta, afim de verificar o corredor. A princípio havia silêncio no corredor. Mas enquanto olhávamos para a direita, à esquerda uma porta se fechou, quase que imperceptivelmente. Ouvimos somente o pequeno estalido da lingueta da porta. De supetão, olhamos naquela direção. Dei um passo à frente para ter uma visão melhor do corredor estendido a nossa esquerda e não vi nada demais. Mas então, atrás de mim, ouvi um certo gorgolejar que vestia uma melodia límpida e solene, mas não desprovida do calor do terror e do arrepiante frescor vívido do horror. Antes de verificar a origem do som crescente que se formava atrás de mim, meus olhos demoraram-se, inevitavelmente, em Bárbara. Olhos vidrados em algo, aquela expressão inexplicável por palavras que são ouvidas quando proferidas, mas lia-se nela o alerta desesperado, escrito em braile para que se decifre ao esfregar-lhe um olhar ligeiramente atento. Seus cabelos, agora negros e altamente oleosos, tinham um brilho opaco emprestado pela luz vacilante do corredor. O reflexo das partes inferiores das paredes lhe emprestavam um rubor fúnebre às pupilas. Foi-me tremendamente atormentador ver o que ela via. Ao olhar, vi um pedaço de um braço humano mutilado, tateando a parede. Um cadáver pálido e repleto de cortes profundos tentava escapar de dentro da parede. Na parede oposta, as costas de um homem, com o mesmo aspecto repulsivo do outro, desmanchava a parede deslizando de dentro dela lentamente. E logo, toda a extensão do corredor era invadida por corpos monstruosos que saíam de dentro das paredes. O sangue escorria em pavorosa quantidade de dentro das paredes, misturando-se e camuflando-se na tinta vermelha da parte inferior da parede, que agora eu compreendia, era também sangue.
       Adentramos a suíte correndo e precipitamo-nos à janela. Olhamos para cima e vimos o oceano sobre nós, revolto. Abaixo, as nuvens carregadas, ocupadas a trovoar suas dúvidas. Abri a janela. Procuramos nos olhos um do outro o consentimento, a dúvida, e por fim concordamos. Demo-nos as mãos e pulamos, caindo em direção às nuvens. Tudo pareceu cinza-escuríssimo e lento demais. A umidade me asfixiava e a certeza da solidão me acariciava. Mexendo os pés involuntariamente, logo toquei o chão. Caminhei alguns metros, sentindo-me sufocado e levemente desesperado. Muito embora meu corpo já caminhasse em alguma superfície, minha mente ainda caía em algum abismo. Senti meus braços tocarem uma parede macia, como um colchão, e senti-me, de repente, atraído por aquela superfície confortável. Contudo, não conseguia respirar e minha cabeça rodava. Senti que aquele era algum tipo de fim. O fim de um pesadelo, talvez. Percebi, para logo em seguida desperceber, que minha convicção tinha a mesma forma que a falta de convicção. Involuntariamente, empurrei com força a tal superfície e senti que não consegui empurrar o piso. Entretanto, empurrei a mim mesmo e encontrei-me em posição de fazer flexões, encarando, à alguns centímetros na minha frente, o travesseiro cinzento que me asfixiava. Do meu lado, remexia-se incomodada, como se dançasse com graça, minha formosa Sandra. Cabelos despenteados e graciosamente oleosos, sua respiração tão humana e feminina. Olhando seus olhos selados, encontrei minha redenção, que não existiria sem suas íris azuis mirando-me. Independente da distância física ou abstrata. A espessura de nossas pálpebras era mais do que o suficiente para isolarmo-nos um do outro, pois ao fechar os olhos afundamos cada qual em nossos próprios abismos. E o mais pavoroso de todos os abismos é aquele no qual a gravidade é surpreendentemente mais feroz. Esse é o abismo do passado referente a nós, que reside nas profundezas da mente do outro. Lá, nosso passado já não nos pertence, é território alheio e está sujeito às leis daquelas paragens. Negando minhas pálpebras ao passado, estatelei os olhos para o futuro... e tudo o que vi foi uma garrafa de tequila disposta fortuitamente sobre uma mesinha repleta de cigarros.

O último posto de gasolina

Era fim de tarde de uma sexta-feira. Cleber apressou-se para sair cedo do trabalho. Não estava ansioso para rever a esposa, muito pelo contrário, estava excitado com mais um encontro com sua amante. Pegou um atalho para chegar mais rápido ao apartamento dela, uma estrada estreita onde poucos carros trafegavam. Ao longe avistou um caminhão que havia tombado. Tinha ficado atravessado diagonalmente impedindo qualquer carro de seguir viagem. Como conhecia muito bem aquela área, rapidamente manobrou o carro e pegou um desvio, à esquerda. Sabia que o caminho era mais longo, porém era melhor do que voltar e pegar um engarrafamento.

Olhou para o marcador de combustível. O tanque estava um pouco abaixo de ¼. Era suficiente para chegar ao apartamento, mas dificilmente permitiria voltar para casa pegando a avenida principal no retorno. Estava preocupado, pois não havia postos de gasolina naquela região. Tentou não acelerar muito o carro e seguiu com extrema cautela. Nas ladeiras, desligava o motor e seguia na banguela para economizar. Rapidamente a noite caiu. Na metade do caminho, para sua surpresa, avistou um posto de gasolina na margem direita da estrada.

Estava confuso. Tinha certeza de que não havia postos por ali. Por certo era novo. Além disso, era bem improvisado, tinha apenas uma bomba e uma pequena cabine de madeira onde ficava o frentista. Exultante, estacionou o carro e retirou a carteira do bolso.
- Complete, por favor.

O frentista repousava numa velha poltrona dentro da cabine. Sequer ergueu a cabeça, limitando-se apenas em abrir um dos olhos para identificar o seu freguês. Fechou-o, deu um longo suspiro, e com muito esforço ergueu seu esquelético corpo, segurando-se no balcão.
- Aonde vai, patrão?

Cleber não entendeu muito bem a pergunta, pois estava examinando a água do radiador. Voltou-se para o frentista, limpando suas mãos com uma flanela.
- Desculpe, o que foi que perguntou?
- Para onde está indo a essa hora?
- Tenho um compromisso, mas acredito que não seja do seu interesse. – respondeu ele, sentindo-se insultado.

O frentista balançou a cabeça negativamente. Terminou de abastecer o tanque e recolocou a mangueira no seu lugar. Olhou mais uma vez para Cleber e deixou escapar um sorriso irônico.
- Quanto deu?
- Por conta da casa – respondeu o frentista, voltando para a cabine.
- Deixe de conversa, meu senhor. A gasolina é caríssima nesse país. Você colocou praticamente um tanque inteiro. Vou deixar o dinheiro no balcão. Se não quiser pegar, é problema seu.

Voltou para o carro e arrancou em primeira marcha. Alguns metros à frente olhou pelo retrovisor, e estranhamente não viu o posto de gasolina. Ficou indignado ao perceber que o marcador de combustível ainda indicava ¼ de tanque. Sabia que iria ficar pelo caminho a qualquer momento.

Acelerou o carro o máximo que podia. Já havia cruzado dez quilômetros de estrada, e o ponteiro não havia se mexido um mililitro sequer. “Deve estar com defeito”, pensou ele. Fez uma curva em altíssima velocidade. O carro quase derrapou, mas manteve a aderência. Se continuasse naquele ritmo, chegaria no apartamento da amante em vinte minutos.

Para o seu azar, o carro começou a dar uns trancos e a perder velocidade. O marcador havia se mexido e estava no ponto vermelho. Estava sem gasolina. Pensou em encostar o carro, mas viu na margem direita outro posto de gasolina, igual ao que abasteceu seu carro anteriormente.

Lá estava, a mesma cabine feita de madeira, e ao lado, a única bomba de combustível. Chegou ao balcão e viu o mesmo frentista repousando na poltrona. Ele repetiu o mesmo gesto, abriu um dos olhos para identificar o seu freguês, e com muita preguiça ergueu-se da poltrona se segurando no balcão.  Mas desta vez não disse nada. Apenas abasteceu o carro e limpou o pára-brisa.  Cleber não acreditava no que estava acontecendo. Pensou que talvez estivesse errado o caminho e voltado para a mesma estrada.

- Ficou calado agora... O que houve, meu senhor? Não quer mais puxar conversa?
- Não preciso puxar conversa. Eu apenas pergunto aonde o freguês quer ir. Minha gasolina não é comum, pelo contrário, é especial. Mesmo se você quiser cruzar o país, poderá fazê-lo com um único tanque. Só que no seu caso tem um sério problema.
- Qual seria o problema? A minha mulher mora alguns quilômetros adiante, por que a gasolina acabou tão rápido?
- Você não disse para onde ia... Deu uma resposta vaga, e até foi grosseiro. Sinto muito por você.
- Como assim? O que vai acontecer comigo?
- Jamais vai chegar ao seu destino. A gasolina vai acabar e sempre vai acabar retornando ao meu posto.
- Você deve estar maluco. Pegue a grana! Preciso sair logo desse lugar.

O frentista voltou para a sua cabine e deixou seu corpo desabar na velha poltrona. Incrédulo, Cleber seguiu viagem. Sequer completou dez quilômetros de viagem e logo sua gasolina acabou. Mas para seu terror, logo à frente estava o velho posto de gasolina