sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Morte lenta

"A morte é apenas um caminho"
Esta frase tola e sem sentido pendulou em minha mente por todos os confins de minha existência. Mania besta esta do homem de querer saber e viver além do que lhe foi prometido. A morte é fato, e ela vem. Pelo menos foi isto que minha mãe me ensinou, foi isto que ela aprendeu na igreja antiga a qual frequentava. Igreja esta que fugi, depois de conhecer as outras coisas do mundo. Minha mãe não se conformou, mas foi consolada pelo Pastor que lhe disse:
 — Não tema, Dona Eulália. Embora a mente surda dele não entenda, o desviado se suja com os pecados do mundo, mas pode ser limpo quando compreender a verdade. O mundo ira trai-lo. Nós o aceitaremos de volta e o perdoaremos por ter se desviado. Ele será novamente um de nós.
 Isto acalmou o coração de minha doce mãe, e ela parou de tentar me convencer, esperando o mundo me trair.
 Antes de tudo isto, a morte levou o meu pai, o levou na condição de desviado, e a igreja dizia que por isto Deus não o perdoou. Ele morreu jovem, bem mais jovem que eu, e dentro de mim, ecoava um grito de vitória, por ter vivido há mais tempo que ele. Pois é, a morte... Vem sem a gente chamar, com uma desculpa boba para te levar, te arrastar dos que lhe rodeiam e lhe escrachar a uma nova condição. Que diabos de caminho seria este?

 Em um de meus dias qualquer, acendi um baseado curto no quarto de um motel barato. Prendi e só soltei para beber um bom gole de vinho. A moça deitada na cama me convidou para o segundo ato, e eu, entorpecido de meus pensamentos alimentados pelos meus vícios, sorri e obedeci. Enquanto sua boca me devorava eu pensava em mim, em meu egoísmo hediondo. Pensava na historia boba de minha mãe... Certa vez, ela me contou em lagrimas que fui fruto de um namoro imaturo e rápido, que meu pai morreu com apenas 19 anos e que os outros parentes não acreditaram que o filho era dele.
 Ela me criou sozinha, juntou todas as forças que tinha e seguiu a dura condição de mãe solteira. Em seu próprio caminho, encontrou amigos na igreja, eles ajudaram ela a me criar, mas quando vi que o mundo era ainda melhor que tudo aquilo, fui ingrato e me desviei, sem pesares...
 Achava hilariante pensar que antes de ser religiosa, minha mãe um dia foi tão fácil quanto aquela moça que estava comigo... Parei de pensar e me vi amorteci graças ao orgasmo proporcionado pela boca da moça.
 Ela limpou os lábios e perguntou se eu aguentaria dirigir de volta pra casa. Eu sorri para transmitir confiança e respondi que sim, mas nós dois sabíamos que eu estava enganado.

 A morte é apenas um caminho. O carro deslizando acelerado pela rodovia molhada, o som da chuva forte no para-brisa, o caminhão carregado de refrigerantes... Deus meu...  Acordei por entre ferragens e sangue, quando me vi consciente, enxerguei a minha frente o caminhão tombado, com as rodas traseiras ainda girando... Tossi sangue e meus próprios dentes... Senti minha boca toda arrebentada, olhei para o meu lado... A moça estava morta, com os miolos arrebentados e seu cabelo todo molhado pelo sangue grosso. As ferragens do Passat dentro do corpo frágil dela, dentro do meu...
 Deus... Eu nem sabia o nome dela!
 Quando os bombeiros cortaram o carro de ferro ao meio para me arrancarem lá de dentro, eu rezava para estar morto. Estava lucido e assustado, encarando o corpo já coberto da moça morta. A morte não vinha, eu sentia a minha carne se rasgar, meus ossos saírem de meu corpo, mas a doce morte não vinha...
 A dor foi entorpecida por injeções e eu desmaiei, desmaiei e acordei cinco dias depois, dentro de um quarto branco com lençóis limpos, todo remendado e com ferros nas pernas e nos braços.
 Eu não conseguia falar nem me mover, a enfermeira veio e me injetou mais calmantes. Dormi pelo resto da noite.
 Quando novamente despertei, me vi entorpecido, com a boca toda arrebentada e com a gengiva costurada.
 O Pastor entrou sorrindo junto com minha mãe, querendo ouvir eu dizer que estava arrependido. Eu não conseguia falar, mas eles entenderam que se eu conseguisse, diria que não estava arrependido de nada!
 — Ele esta sujo – disse ele consolando minha mãe – Ele esta sujo e não quer se limpar...

 Muita fisioterapia e outras tantas cirurgias e eu estava ali, em uma cadeira de rodas, me recuperando aos poucos. A recuperação lenta me fazia implorar para ter tido o mesmo destino que ela. Meus amigos me disseram que o nome dela era Isabeli, tinha apenas 26 e fazia Engenharia Civil. O tio de Salvador pagava os estudos, ela sonhava em se formar e ir trabalhar com ele na construtora do avô... Como pude ser tão imprudente ao ponto de calar o sonho de alguém?
 Quando tive autorização médica para sair pelas ruas acompanhado de alguém, minha mãe me levou até o cemitério. Visitamos o tumulo de meu pai, e eu percebi que não conseguia mais chorar. Ela orou desembestada no sepulcro e eu fiquei a sombra de uma arvore, vegetando inerte em meus pensamentos, pensando na sorte que ele teve de não ter ficado como eu.
 Quando minha mãe terminou com suas orações, alisou meus cabelos e arrastou minha cadeira pelo cemitério desertificado. Lá no meio das covas novas, onde o sol era ainda mais escaldante. Pedi para que ela abrisse o guarda sol. Não me obedeceu. Minha testa pingava suor. Dentro de minhas limitações, não tinha força nem para levantar o braço e enxugar o rosto. Sentia as gotas salgadas escorrerem pelos meus olhos e eles arderem. Balbuciava para que minha mãe me tira-se daquela tortura, ela não me ouviu. Não quis me ouvir porque tinha em mente outro plano.

 Paramos de frente com um tumulo modelado com azulejos rosa. Encarei a foto da falecida e constatei; era ela, Isabeli Sousa:
 — Ela era linda. Era filha de alguém e até mesmo mãe de alguém – disse minha mãe, pondo-se a me julgar – Sonhava em ser Engenheira Civil, era a melhor da turma dela. Deixava os familiares orgulhosos, tinha planos de se casar com o pai da menina, mas teve a infelicidade de te conhecer... Você se meteu no caminho dela e a matou com sua indisciplina.
  Me lembrei do dia em que á conheci. Conheci Isabeli em uma festa de formatura de uma amiga que tínhamos em comum. Fomos apresentados e quando demos fé, estávamos nos amassos dentro do meu carro velho. Foi ela quem sugeriu o motel, eu passei no posto de gasolina, abasteci e peguei o vinho na loja de conveniências.
 Antes de entrar no quarto, peguei o baseado no porta luvas e a garrafa no banco de trás. Entramos loucos e aos beijos, nos despindo feito animais famintos, loucos para saciarmos nossos desejos:
— Você corrompeu a vida desta moça, filho. Fique aqui e peça perdão a ela.
 Minha mãe me deixou preso em minha cadeira de rodas, debaixo de um sol escaldante, frente a frente com o tumulo de Isabeli. Eu sentia meus miolos cozinharem, estava babando, ficando louco e inerte... Sentia que a qualquer momento os azulejos poderiam se trincar diante de tamanha temperatura! Tentava movimentar os braços cravejados por ferros que ligavam os ossos quebrados. Meu corpo mal se mexia, minha mente borbulhava insanidades e enfim balbuciei:
— Perdão... Me perdoe Isabeli...
 A foto bonita da moça de cabelos longos me fez brotar do rosto uma única lagrima, por instinto, despenquei de minha cadeira de rodas, minha mãe ao longe ignorou a queda. Os ferros que me protegiam agora entravam em minha carne e me faziam sangrar, ignorei a dor e me arrastei até o tumulo. O sol cada vez mais forte parecia tentar me impedir, mas eu ainda tinha forças e estava decidido. Meu sangue quente molhou os azulejos e eu consegui falar:
— Por Deus, Isabeli... Me perdoe...
 Minha mãe se aproximou de mim, me arrastou de volta para a cadeira de rodas e disse ao meu ouvido, enquanto me levava rumo há uma cova nova:
— Não se preocupe meu querido... A morte é apenas um caminho...
 Parou de frente a uma valeta espaçosa e profunda, o coveiro sorriu e se aproximou de nós, segurando sua pá suja por torrões de terra. Ela lhe correspondeu o sorriso e me empurrou valeta abaixo... Despenquei na terra fofa e tossi com dificuldade, olhei para cima e ouvi o coveiro consola-la:
— Não tema por ele, irmã... Ele vai entender. Vai se arrepender de todos os seus pecados...
 Minha mãe empurrou a cadeira de rodas dentro da valeta, aos poucos os membros de sua igreja chegaram e rodearam minha cova. Oravam alto enquanto jogavam terra sobre meu corpo, enquanto eu implorava sem poder ser ouvido:
— Eu me arrependo... Arrependo-me da vida suja que eu levava... Me limpem desta terra e de meus pecados, deixem-me viver como nova criatura...
 Para meu arrependimento, eles apenas repetiam:
— A morte é apenas um caminho... A morte é apenas um caminho...
 A terra fofa enfim me cobriu, eu morria devagar, lentamente... Em meu ultimo respirar fraco, meu cérebro quase sem oxigênio fez transparecer sobre meu corpo soterrado um forte raio de luz. Aos poucos fui me acostumando com a absurda claridade, enxergando enfim um novo caminho...

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Apenas mais um conto de amor

Eu levava minha vida simples, sem preocupações, tinha meu grau de honrarias, tinha algumas paqueras, mas nada era sério, era como se não tivesse alguma pressa em namorar sério com alguém, e levava esta vida fazendo o meu trabalho, conversando com os amigos de vez em quando, e ficando muito mais no trabalho do que em casa... morava sozinho, e não me sentia solitário, isso por que nem dava tempo quase de ficar a só em casa, pois sempre aparecia alguém para conversar, pessoas de todas as idades, amigos homens e mulheres, então nem tinha por que me sentir só...
Antes destes tempos eu fui um patinho feio, muito magrinho, tentei fazer musculação, mas mesmo assim não conseguia aumentar a massa muscular, no entanto, neste tempo eu engordei mais, mudei o corte de cabelos, estava com roupas melhores, e já não era mais o patinho feio... comprei uma moto grande, que mais vivia no mecânico do que comigo... mas de vez em quando eu estava indo lá no bairro de minha mãe com ela, visitá-la, e almoçar num fim de semana, e encontrar os amigos daquela região...
Apareceu uma moça de outra cidade que chamou a atenção de todos os moços que eu conhecia, ela iria morar ali naquele bairro agora, estudaria nesta cidade, e ficaria fazendo parte daquele grupo daquele bairro, e pelo menos três dos que eu conhecia que eram grandes conquistadores, que toda moça amava só de olhar, se encantaram pela beleza e novidade que havia naquela moça... então eu me lembro que os três juntos ficavam conversando com ela, sendo que sei que um deles vivia convidando-a para sair, tomar cerveja ou algum suco natural, e ela ia, era tudo diversão, mas nada de se encantar por alguém... Havia um, que vou chamar de Leonardo de Caprio, quase todas as mulheres só de olharem para ele já queriam namorar com o tal, que é boa gente, talvez na época não, ele vendo a frieza da moça apesar de alguma insistência... foi o primeiro a desistir, mas dois outros permaneceram, e havia um que em cinco minutos de conversa era capaz de convencer qualquer mulher que ele era o homem dos seus sonhos... tantas moças se apaixonaram por ele e talvez até hoje se lembram dele como um grande amor frustrado, porque ele dava bastante atenção, ou dava esperanças, mas sempre dava a entender que não gostou da pessoa, contudo por esta moça ele não faria isso...
esta era especial, e ele também não saía de sua casa, paparicando até mesmo seus familiares, até o dia de eu ouvir um comentário dele que a moça só gosta de aproveitar passear com ele, mas não quer nada, muito fria com ele, e que tinha depreciado-o... Agora, outro, não tão conquistador assim, mas querido por algumas, contudo de altas honrarias, pois os dois outros não tiveram estas honrarias, parece-me que até enviou flores para ela, e tentou ganhá-la do seu jeito e sua boa conversa... sua boa influência, e tudo que tinha... até mesmo sua boa popularidade... mas nenhum deles foi bem sucedido... a moça parecia realmente uma muralha, dizia que queria só estudar e não ter ninguém, mas talvez ela tivesse no coração alguém de sua cidade anterior, talvez tenha fugido de lá, para o esquecer, isso eu não sei, mas ela não queria ninguém...
No ínterim, eu vi a moça e consequentemente a achei linda também, e vi os três de boa conversa irem no seu encalço, e usarem tudo que tinham, todos seus talentos e tudo mais, e pensei: eu não sou Leonardo de Caprio, nem conquisto moça em cinco minutos e dura para sempre, nem tenho tantas honras assim, tinha sim meu valor, porque quando era para falar em público eu falava de um jeito todo meu, muitas vezes admirado, mas quando era para falar a nível pessoal eu era um desastre... especialmente no que se refere a investir numa conquista complicada... Então, antes de tudo, eu já dei por perdido a moça, e desisti sem começar nada...
O tempo passou um pouco, e ainda assim aparecia o Leonardo de Caprio dando seu charme, e outros perto e rodeando a moça, somente eu não dava atenção alguma, mal cumprimentava, mal olhava, porque eu me sentia o último dos homens... Mas a moça já me tinha visto muitas vezes, falar em público, ou conversar com alguém, nem sei direito...
Mas um dia aconteceu uma coisa diferente. Houve uma excursão para uma cidade turística linda, e pelo menos dois dos conquistadores foram, e estavam sempre do lado dela... Num dado momento, eu me recordo que ao vê-los conversando, eu parei para rir um pouco, conversar bem pouco, sorrir, e perguntar alguma coisa boba... com certeza cumprimentei-a também, mas estava falando com meus amigos, e ela de repente pediu uma coisa para mim. Para eu tirar uma foto com ela. Eu disse sim, tudo bem. Era uma casa simulação de casa mal assombrada o fundo, e eu estava com rosto de quem estava sorrindo de brincadeira... ela estava toda linda, e parecia séria...
Bem, eu fiquei pouco ali, e saí, fui para outras partes da cidade, conversando com outras pessoas, e simplesmente passeando...
A outra vez que a vi, foi só dentro do ônibus da excursão. Bem lá eu, para mim mesmo estava um verdadeiro desastre, porque todos brincavam e eu estava fútil, e como havia uns conhecidos brincando de falar outros idiomas, eu comecei brincar de falar espanhol (pois eu me correspondia com pessoas que falavam este idioma, mas para ser sincero eu nem queria e nem sabia falar nada)... Brinquei de maneira tão tola, que qualquer moça comum veria que eu estava totalmente desinteressado em impressionar alguém... eram só sorrisos e risos... e despretensão total... A moça tentou puxar conversa comigo, ela estava logo atrás, mas eu desviava, e não levava nada a sério... e nem ficava hipnotizado como os outros... Assim foi a viagem de volta, e eu simplesmente a bem dizer não conversei com ela... Quando ela foi descer do ônibus, ela me olhou seriamente, lembro-me disso porque a seriedade me foi profunda e eu nem estava sorrindo, e ela me disse uma palavra: ADIOS! Só para mim, e saiu de mau humor...
Na verdade, eu não entendi nada. Quer dizer, o que eu tinha feito afinal? Não a ofendi em nada, nem ninguém, só estava rindo bastante, e conversando, porque nestas horas de recreação eu não era tão terrível assim para conversar... ou talvez fosse, mas pelo menos eu ficava bem extrovertido, e o rosto de timidez, sumia, e era outro...
Depois de alguns dias, ela me convidou para almoçar na casa dela, mencionou o meu nome a outro amigo que também foi convidado (que ela pediu para me chamar), que tinha as mais altas honrarias, mais do que um daqueles três, mas o costume era que pelas mulheres ele também não era muito correspondido, (contudo, assim mesmo, ele tinha uma namorada naquele momento, tanto que casou no mesmo ano)... o único que estava livre era eu, e almoçamos uma comida bem deliciosa que ela fez, e lembro-me de um detalhe... na hora de beber algo, ela queria servir algum tipo de bebida alcoólica, cerveja ou vinho, nada demais, mas eu dei uma opinião, que naquele dia justamente não se devia beber nada, e eles respeitaram minha opinião... sei que não tinha problema assim beber um pouco...
As conversas foram de coisas cotidianas, nada de alguém flertar, lançar algum charme qualquer, ou dizer algum galanteio, mas eu estava mais sério, conversando talvez pouco, e ela também nem era de conversar, falava bem pouco, e eu mesmo nunca a vi convidar ninguém para almoçar em sua casa... Mas não me impressionei, nem tirei nenhuma conclusão de nada, simplesmente fui embora, e continuar minhas atividades costumeiras...
Mesmo depois de alguns meses, eu percebia, ao olhar, que ela estava me olhando, e às vezes eu ficava encabulado... Uma única vez pelo menos ao passar perto de mim, ela ficou me olhando tanto, que mesmo passando ela ficava olhando para trás para me ver... e eu até fiquei assustado... O tempo passou, eu nem comentava sobre isso com ninguém, e até comecei a namorar outra moça... e eu vi ela me olhando do mesmo jeito... Ela também passou a namorar alguém, não algum daqueles super conquistadores, mas outra pessoa, de outro bairro, e ela ainda me olhava com carinho... ela falava tão pouco, talvez só o olhar é que dizia muito, e eu percebia isso e ficava quieto... O meu namoro não deu certo, porque como eu disse, eu não tinha tantas altas honrarias, nem era o melhor interlocutor, mas era romântico, dava perfumes de presente, comprava várias coisas para agradar, passeava muito agora com minha nova moto, enfim, fiz o possível para agradar... não traía, e fazia muitas coisas boas para a namorada, mas ela também tinha sua fama de ser difícil, e eu fui a bem dizer seu primeiro namorado, pelo menos de certo modo, e eu me alegrava com ela... (ah! muitos tentaram namorar com esta também, sem êxito, pelo menos eu namorei alguns meses com ela)...
Mas o ponto é a outra moça... a moça bonita de outra cidade, e refletindo em tudo, eu me questionei por que fui tão frio com ela, será que eu não acreditava em mim mesmo? Ou eu estava encantado por outra pessoa? Quem sabe se eu tivesse correspondido, e acreditado em mim mesmo, eu estaria com ela até hoje, teria filhos, e as altas honrarias nunca se afastariam de mim, quem sabe!

Ela

Quando a vi pela primeira vez estava encostada em um banco no corredor da escola, tentei procurar os olhos, mas eles estavam tão distantes que nem correndo conseguiria alcançar. Ela enrolava os cabelos nos dedos e quando soltava formavam-se cachos. Senti vontade de chegar mais perto.
Na segunda vez ela estava de pé e conversava com os amigos, notei como as mãos eram ligeiras e como ela sorria mais forte do que podia suportar, o que eu via eram bochechas pressionando grande parte do rosto, trazendo o riso maior do mundo para fora. Se sorrisse o resto do dia, se durante todo ele apenas o fizesse eu entenderia cada palavra sem que ela precisasse pronunciar uma sequer. Dentro das gavetas tenho uma pilha de folhas, são diários sobre ela, o tom deles varia conforme meu humor, por vezes são agressivos outrora entusiasmados, alguns são desesperados, e nunca desapaixonados. Todos eles. Cada linha, ponta a ponta da folha que escrevo frente e verso sempre que me deparo com aquela que pobremente sei descrever.
Eu queria colocar no papel o brilho que irradia quando no escuro, toca. Quando entra em contato com a solidão negra que é a minha vida e dois terços do meu coração. Vagamente sei falar sobre o amor que sinto, a vida toda foi assim, tropecei nas palavras, padeci num buraco de silabas, frases e versos, me perdi num labirinto de rimas e textos, muitos textos quando conheci a menina e hoje não quero mais sair. Mentiria se dissesse que quero e não posso, ela me mostra um leque de opções cada vez que passa por mim com o olhar correndo e custa a me perceber. Sei lá. Ás vezes sinto que posso correr na mesma velocidade que os olhos dela, correr não sei para aonde, para qualquer lugar que seja longe do amor que sinto por ela. Mas o que eu sinto me persegue, ando sentindo dores e posso jurar que o amor me bate, os hematomas são terrivelmente de um roxo azulado que se assemelham com o céu da madrugada nos dias de inverno, não há de ser outra coisa. Meu peito pulsa ardido e barulhento, creio eu que sejam gritos de desespero por assistir a menina passar as mãos pelos cabelos e calar o resto do mundo com uma risada.
Cada parágrafo dramático faz com que eu tenha vontade de me desmembrar, eu sinto constante vontade de me deixar. Queria que meus membros se soltassem e despencassem, melhor que fosse do céu, mais parecido com chuva. Eu queria ser chuva e chuviscar o amor que sinto em cima dela.

Um rascunho encontrado nas gavetas da vida ( Uma história de Elen House)

"Nas mãos o amor, não o destino"




Meu querido, será que deveria te chamar de querido? meu amigo? Como chamar alguém que está apenas aqui dentro, misturado comigo?
Não consigo dormir, talvez se soltar todas essas palavras eu me livre de tudo, tenha um pouco de descanso.

Faz tantos anos. Acho que foi uma vida e um pouco mais.
Quando foi a última vez que nos vimos?
Na cozinha, casa da tua mãe... Do teu sorriso aberto, entusiasmado, descrevendo como havia comprado aquela passagem de navio. Meu coração te ouvia alegre e triste, nunca imaginei que seria a última vez.

Hoje foi o casamento da minha neta.
Sabe, eu tenho três filhas maravilhosas. Dizem que se parecem comigo. Mas são altas como o pai. Ele é um homem muito bom, você iria gostar dele...
Minha neta estava linda, felicíssima. Via o amor nos olhos. Hoje em dia, todas tão independentes, por que se casariam se não amassem os companheiros, certo?
Conversei com a tua irmã, fiquei muito feliz por ela ter aceito o convite e mesmo morando longe, ter dado um jeito de comparecer à cerimônia. Foi uma conversa rápida, não te mencionei, eu nunca menciono você.
Mesmo assim, ela comentou por alto que você pretendia me visitar na última vez que voltou, mas que houve algum imprevisto - não entendi direito... Apenas em pensar, tremi.
Sabe, acho que nunca estarei pronta para te rever.
O que faríamos? Te dar um abraço como velhos amigos?
Eu com certeza estaria constrangida em mostrar o tempo no meu rosto, no meu corpo. Meu Deus...acho que seria desesperador...
Seríamos educados, diríamos palavras felizes, cheios de contentamentos,  o que eu sentia,  sinto...a verdade é que nada o que disséssemos  mudaria a realidade de nós dois. Trocaríamos os telefones e endereços, e daí???
Você foi embora. Fazer a vida. Sei que as coisas estavam ruins por aqui. As raras cartas...passei anos vivendo pelas cartas, centrei minha vida esperando uma folha de papel!
Ficava contente apenas por ouvir alguma coisa sobre os teus feitos... Lia tudo sobre essa terra nova, com tantas esperanças...
Até me sentir  patética, estúpida...deixando a minha vida escorrer.
Eu amo meu marido de verdade, minhas filhas, meus netos. Amo a minha vida sim. Me esqueço de você por anos a fio, mas quando volta...
Não consigo te bloquear!
A recepção de hoje estava fantástica, mas após o diálogo com a tua irmã, todos os meus movimentos, todos os meus sorrisos estavam acompanhados...
Se alguém lesse essas palavras me julgaria, com certeza todos me julgariam. E sabe o que mais, nem me importo mais com o que pensam.
Só eu sei...
Longos foram os meus dias, infinitas as minhas noites, mas como se controla os próprios pensamentos?

Estou cansada.


(O que poderia ser uma resposta para o conto "Uma história de amor").

A misteriosa enfermeira do plantão noturno

Existem coisas que nunca saberemos se é real ou ficção.
Em uma determinada ocasião viajando a trabalho pelo interior do estado, acabei precisando ser internado ás pressas em um hospital de uma pequena cidade.
Eu estava bem longe de casa, e a situação toda foi bem complicada. Eu não queria ligar para não preocupar minha família.
Aparentemente era uma coisa simples, um cálculo renal. Mas as dores se tornaram insuportáveis e como resultado passei dois ou três dia fechado no hospital e me vi obrigado a ligar para casa e avisar sobre o ocorrido.
Mas acalmei-os dizendo que já estava tudo bem.

No meu primeiro dia de internação, durante a madrugada, não estava resistindo às dores e apertei a campainha que se encontrava acima da cabeceira.
Não demorou quase nada e uma enfermeira muito bonita e aparentando ser bem jovem adentrou ao quarto já me trazendo um remédio, me entregou junto com um copo com água.
Ela era bem branca, e trazia no olhar uma calma, uma paz de espírito, mas também pude notar algo mais em seu olhar, ela era triste. E notei também que não usava maquiagem e seu uniforme era de uma brancura ímpar, mas era diferente da s demais, parecia com aqueles uniformes antigos.
Ela me disse que eu ficaria bem. Me deu um sorriso e saiu fechando a porta atrás de si.

O medicamento fez efeito rápido, pois as dores amenizaram e acabei dormindo.
Acordei com o barulho da porta se abrindo e um enfermeiro se desculpando por não ter vindo antes pois o plantão estava corrido.
Eu disse a ele que estava tudo bem e que já havia sido medicado pela sua companheira de plantão.
Ele se mostrou espantado e ao mesmo tempo como se soubesse de algo.
Ele me disse que estava sozinho aquela noite e pediu para descrever a enfermeira que havia me visitado.

Após a descrição ele sorriu meio sem graça, como quem não quer sorrir, e me disse que ela era um fantasma.
Confesso que senti um certo medo mas que logo passou quando me lembrei da moça.

Ele então me contou sobre uma lenda da cidade, bem antiga, contada desde antes do hospital ser construído.

"Dizem que uma menininha contraiu uma doença e que o médico do povoado não consegui diagnosticar.
Sua família assim como todos no povoado eram pobres e não dispunham de meios de levá-la para outra cidade e a tal menina foi piorando apesar dos cuidados que o médico podia prestar.
Em seus delírios de febre a menina contava que seu sonho era ser enfermeira ou médica para curar as pessoas. Mas ela tinha apenas 10 aninhos e sabia que tinha pouco tempo de vida.
Isso deixava sua família muito triste e angustiados por não poderem fazer nada.
Seu pai nunca chorava na frente dela para animá-la e com ela no colo ele sempre dizia que ela ia ser uma enfermeira um dia. Que no final tudo ia acabar bem.
E foi assim, nos braços de seu pai que ela acabou falecendo em uma madrugada fria.

Após muitos anos, a cidade cresceu um pouco e esse pequeno hospital foi construído e um dia seu pai acabou internado vítima de um infarto. Segundo os médicos o caso era grave,
Após vários dia na UTI, ele foi para o quarto e quando sua família veio visitá-lo  ele relatou que uma enfermeira do plantão noturno que havia cuidado dele, havia dito que tudo iria acabar bem.
Ele a descreveu para que a família pudesse agradecer e para o espanto de todos, a pessoa descrita não existia. Nenhuma enfermeira tinha aquelas características.

Ele não entendia como poderia ser isso. Mas a fisionomia daquela moça tão nova e bonita não lhe saia da mente. Ele sentia que a conhecia.
Em um sonho, ela apareceu a ele e o chamou de pai, explicou que era enfermeira e que na madrugada ela sempre estava de plantão. Ela o abraçou e disse que tinha outros pacientes para cuidar e que o amava muito.
Ele acordou chorando e sentia até o doce cheiro de sua filha; agora já era uma moça crescida e muito bonita.
Ele teve alta naquela manhã e retornou para casa."

Desde então não é incomum pessoas serem atendidos pela enfermeira bonita e de uniforme antigo de uma brancura rara.

Não sei se acreditei ou não na história.
Logo tive alta e voltei para meus afazeres, deixando a cidade.
Não sei se por influência da história contada pelo enfermeiro, mas dias após o ocorrido sonhei que estava saindo do hospital e na recepção eu via uma jovem toda de branco e ao me cumprimentar ela sempre dizia:
-Toda lenda tem um pouco de verdade.  E me dava um sorriso sereno.

Tire suas conclusões...

Amaldiçoado


  Chamo-me Robert Silva, tenho vinte e sete anos, tenho esta idade há quase dez anos. Estive vagando pelo vale da morte, um deserto de larvas. Mergulhei em um oásis de sangue podre, o cheiro aqui é horrível, vermes por toda parte, baratas horrendas e nojentas por todo meu corpo, elas andam sobre mim, ratos gordos e pegajosos me perseguem, são centenas deles, cobras de duas cabeças fazem buracos na areia negra sob meus pés descalços afundados nessa lama que fede a animal morto. Urubus e corvos voam por toda parte, em circulos enquanto olhares amaldiçoados são lançados em minha direção.

  Bem, aí talvez você se pergunte então como eu escrevi este texto? Não sou eu, ou melhor não é meu corpo, nem meus dedos e sim os de uma bela menina de doze anos de idade a qual acabo de visitar inesperadamente.  Não me apossei dela por acaso. Ela é de uma família de videntes, um hospedeiro ideal para uma alma como a minha. Já fazia tempo que não sentia o calor de um corpo humano, e essa é a primeira que possuo, não sei bem como aconteceu, mas de repente ela estava ali rezando a algum de seus deuses obscuros, e em outro momento eu me senti atraído, puxado como um metal que encontra um imã e é forçado a se conectar a ele.

A força de atração foi algo inexplicável, e por fim aqui estou. O que vim fazer? Bem é muito simples. Eu vim contar a minha morte. E assim quem sabe alguém que ler essa história encontre uma solução para minha alma e após isso eu possa sair deste lugar mórbido e cruel. Ainda sinto lesmas subindo em minhas pernas, sangue-sugas grudados em meu corpo, mas não sinto dor, é pior que isso, uma sensação que se repete o tempo todo, como se eu estivesse definhando, eu sou um lixo podre vagando pelo inferno, ou por algo próximo a isto. Eu não mereci isto mas eu fui amaldiçoado. Como isto aconteceu? Como eu morri? Bem melhor contar logo antes que eu perca essa conexão. Os pais dela já estão procurando um modo de me tirar desse corpo. Agora estou no quarto dela, trancado, mas eles foram buscar ajuda.

  Pois bem, tudo aconteceu há dez anos. Estava dando uma volta pela rua do bairro, quando passei próximo a um beco e ouvi gritos. Aproximei-me e ouvi um pedido de socorro. Naquele momento pensei em ir embora, mas bem, eu não o fiz.

  Era o grito de uma mulher. Adentrei naquele beco escuro. Ela ainda gritava. Eu ia devagar para tentar surpreender quem quer que fosse. Catei um pedaço de cano de ferro no chão. Mais a frente já podia ver a silhueta dos dois. Ela era uma mulher bonita por sinal. Morena, cerca de 1,75 de altura, corpo sensual, estava com a cara na parede tentando se desvencilhar dele, que rasgava as roupas dela chamando-a de cadela. Dizia que ela iria o pagar, enquanto ela o pedia para soltá-la.

 - Me solte! Me solte seu canalha!

 - Você é minha, sua vadia!

  Me aproximei com o cano de ferro na mão e gritei com o cretino.

 - Largue-a imbecil! Quando ele olhou para mim, vi que ele era gordo e senti o odor. Parecia um gigante, deveria ser um mendigo, tinha os dentes estragados e um dos olhos era furado.

 - O que você faz aqui seu merdinha?

 - Solte ela! Já disse! Ele riu para mim, com aquela boca horrorosa e fétida.

 - Quer me pegar é seu babaca? Então vem me pegar. Ele disse jogando – a contra mim. Eu não tinha outra escolha e parti para cima dele. Mas algo estranho aconteceu. De repente alguém me acertou por trás e caí no chão. Minha cabeça sangrando, mas ainda estava consciente. Tentei me levantar, mas não conseguia. Senti algo sobre meu rosto, era o salto de uma sandália vermelha.

 - Coitadinho! Tão corajoso e tão burro! Ela ria de mim. Aquela maldita prostituta.

 - Vamos levá-lo. Pegue o saco preto. Eu estava meio tonto, sem forças. Eles então me colocaram dentro de um enorme saco de lixo e me jogaram no porta malas de um carro que estava na esquina do beco. Naquela hora senti que me espetaram algo, era uma agulha. Não tive forças para lutar. Ligaram o veículo e eu apenas o senti se movimentando. Por fim desmaiei.

  Acordei ainda dentro do saco preto e me preparava para jogar os pés contra aquele gordo e tentar fugir. Mas eu não estava mais no porta-malas, chutei o ar. O saco se rasgou e eu recuperado saí de dentro dele e assim estava livre ou era o que pensava.

  Quando me levantei ouvi o barulho de cachorros latindo, e pelo barulho deveriam ser muitos cachorros. Olhei ao meu redor e vi que estava numa espécie de arena no meio do nada. Mato por todo o lado, parecia ser uma fazenda.

  Estava dentro de um cercado de tela, uma lona de circo cobria todo o cercado, placas na tela escritas “Cerca eletrificada”, cadeiras esparramadas do lado de fora, pessoas sentadas, em sua maioria vestiam-se de terno e gravata. Eu estava ali, mas não estava sozinho, havia mais um homem, deveria ter 40 anos, era negro e forte, quase dois metros de altura. Estava tão assustado quanto eu.

 - O que é isso? - Ele perguntou.

 - Não sei! - De repente uma voz invadiu aquele lugar.

 - Boa noite Robert e Raul... Sei o quanto estão confusos, mas estão participando de algo inovador, uma competição, vocês devem lutar por suas vidas. Aquele que viver será livre. Sejam bem vindos ao circo “Arena sangrenta”, ninguém ainda saiu vivo daqui e vocês tem a chance de serem os primeiros.

 - Você está louco! - Disse o negro - E como sabe nossos nomes? - indagou.

 - É muito simples, estavam em suas carteiras de identidades.

 - Maldito! - Eu disse - Solte-nos seu cretino!

 - Vou soltar sim. Soltem os cães! - Disse a voz.

  De repente quatro pitbulls entraram na arena. Eles rosnavam feito loucos, Raul olhava assustado para os lados, nunca havia visto um homem daquele tamanho com tanto medo.

 - E agora o que fazemos? - Ele me perguntou.

 - Eu não sei! - Olhava ao meu redor procurando algo para me defender. Os cães avançaram. Vinham devagar rosnando e babando. Do lado de fora os cretinos pareciam torcer para que morrêssemos ali.

 Raul com medo saiu correndo.

 - Não faça isso! - Eu disse, mas era tarde demais. Os cães atacaram. Eles avançaram para cima dele de uma forma insana.Sorte que ele era muito rápido, entretanto logo acabaria o cercado.

  Pensei que estava a salvo por aquele momento, mas não, eu estava na mesma enrascada. Um dos cães veio em minha direção. Eu fui correr e caí. Ele pulou encima de mim. Foi quando por reflexo encontrei uma pedra no chão, grande o suficiente para mata-lo, e também o suficiente para que eu a segurasse em minha mão. Quando ele pulou na minha jugular eu o acertei na cabeça e ouvi um ganido, um ultimo ganido daquele animal feroz que caiu sem vida, sua cabeça ensangüentada. Catei outra pedra e parei mo meio da arena.

  Lá estava Raul, os cães o cercaram, ele só tinha a cerca elétrica ou as presas daqueles cães assassinos. O que ele podia fazer? O que eu podia fazer? Algo estúpido o suficiente é claro. Assobiei bem alto. Os cães se viraram para mim. Catei outra pedra. E assobiei de novo. Os animais foram ainda mais estúpidos que eu e avançaram em minha direção.

 - Droga! - Pensei. "Estou morto".

 Eles vinham tão rápido que a poeira se levantava por suas patas. Joguei uma das pedras tentando acertar algum deles. Mas foi em vão. O cão desviou tão rápido da pedra que meu medo só aumentou. O que fiz? Corri! Agora eu era o alvo.

 Foi quando vi um cão caindo rolando na terra, Raul havia o acertado na pata. Ele gania desesperado. Mas ainda restavam dois. Pensei em atirar minha pedra. Mas preferi não arriscar, ela já havia me salvo uma vez. Continuei a correr. Eles se aproximando. Raul logo atrás. Mas eles me queriam. Suas bocas salivavam por meu sangue. Por fim lá estava eu como Raul, preso entre os cães e aquela maldita cerca. Os cães diminuíram e me cercaram, um a esquerda e o outro a direita. Estavam á um metro de mim, eu a um passo da cerca. Agora eu morro...pensei. Um deles pulou em minha direção. Fechei meus olhos, e de repente aquele barulho, um ganido horrível, Raul havia chegado e enquanto o cachorro pulava ele o pegou pela pata traseira e o jogou contra a tela.

 - Quer cachorro quente? - Ele perguntou, e o outro cachorro avançou faminto em minha direção. Abri meus olhos e o acertei bem no olho. Ele caiu ganindo. Estava louco. Ainda assim queria me pegar. Rosnava feito um demônio. Dei outra pedrada em sua cabeça e seu sangue respingou em meu rosto. Ele estava morto.

 - Cachorro assado, você quer dizer - Disse a Raul.

 - Obrigado Robert! Você me salvou lá atrás.

 - Tudo bem! Estamos kits!

 - Parabéns! Estupendo realmente. Vamos ver como se saem agora.

 - O que poderia ser pior que isso? - Perguntei.

 - Melhor não perguntar! - Disse Raul. E ele tinha razão, lá estava a fera, era algo surreal. Um leão entrava na arena. Um enorme leão seguido de um homem. Um domador.

 - Que continue o show! - Disse a voz. Nunca tive tanto medo em minha vida. Que chance teríamos contra um leão? Pensei.

 - Que droga! - Disse Raul - Estamos mortos.

  Os olhos dos espectadores estavam acesos, loucos para ver sangue. Eles queriam nossa morte.

 - Maldito! O leão atacou. Suas garras ferozes partiram em nossa direção. O domador atrás dele.

 - Corra Raul! - E ele correu.

Mas como competir com um leão. Suas garras penetraram na pele da perna esquerda de Raul, o sangue escorrendo. Ele iria continuar até matá-lo, arrancar seu couro fora. Era minha vez. Joguei a pedra no animal. O domador tentou conte-lo mas agora ele me queria. Era questão de honra. Partiu pra cima de mim. O domador sempre se escondendo atrás dele. Um chicote em sua mão. Foi quando percebi. O leão só atacaria com suas ordens. Tínhamos que pegar o chicote. Gritei para Raul.

 - O domador! Ele obedece ao domador!

Eu estava frente a frente com o animal. Raul se levantou, sua perna sangrando, mas ele era muito forte e por sorte o leão apenas o acertara um vez. O domador, é claro ouviu o meu grito. Mas ele também não era imune ao leão. O leão temia aquele chicote. Quantas vezes ele deve ter apanhado para aprender a teme-lo. O domador virou-se para Raul o chicote em sua mão, Raul olhava para ele.

 - Não tente isso! - Raul ameaçou - Não gosto de me sentir um escravo.

O domador lançou o chicote sobre Raul, que por milagre ou talvez por mera sorte segurou o chicote em suas mãos.

 - Venha cá Indiana Jones! - Disse Raul que deu um puxão no chicote, trazendo consigo o domador. Ele o olhou nos olhos.

 - Eu disse pra que não fizesse isso! - E deu um soco no domador e o mesmo caiu desmaiado, tamanha a força de Raul. Eu nunca havia visto alguém cair daquela maneira somente com um soco.

 O leão agora estava parado a minha frente. Ele parecia um gato atrás de um rato, esperando meu movimento para que me atacasse. Eu estava inerte. Não sei se pelo medo ou por já ter visto diversas reportagens sobre animais selvagens, onde sempre alertavam para que não corresse, pois assim apenas daria o primeiro passo para que eles iniciassem uma caçada.

  Mas o leão não esperou por muito tempo. Mesmo eu quieto, talvez por eu ter o acertado a pedra, ele me atacou. Seus dentes cravaram em meu braço esquerdo. Eu senti uma dor indescritível. Não sei como não desmaiei naquela hora. Foi quando o chicote o acertou. Ele me largou imediatamente e se virou para Raul.  Raul estava com o chicote na mão. Imponente. Mancando. Sangrando. O animal olhou para sua perna. Ele deu outra chicotada. O leão abriu a boca em sua direção. Mas não arriscou. O medo do chicote era algo muito maior que sua sede de sangue.

 - Guie ele até a jaula! - Falei.

 - É claro! - Concordou, Raul.

 - E assim ele usou o chicote o guiando até a jaula. Haviam dois homens com metralhadoras na porta da jaula. Assim que o leão entrou. Os homens fecharam a jaula.

 - Excelente mais uma vez. Incrível mesmo! Agora me pergunto! Quanta força vocês ainda tem? Até quando vão lutar? Hora dos palhaços! - Disse aquela voz.

 - O quê? - Entraram dois palhaços um era baixo, e o outro era enorme, ainda mais alto que Raul, porém gordo. O menor carregava dois facões em sua mão enquanto o outro duas espadas daquelas de mágico.

 - Afinal que circo é este? - Disse Raul.

 - Não sei! Mas estes palhaços não estão aqui pra brincadeira.

  Meu braço ardia em dor. Raul sangrava e manquitolava. Não daria conta daquele gigante que entrara na arena. Eles vinham rindo em nossa direção. Girando espadas e facões, eram o prenuncio de nossa morte. O mais baixo veio em minha direção, Raul é claro ficou com o Gigante.

 - Maldição! Nunca pensei em morrer assim.

 O mais baixo correu até mim e me atacou com o facão. Mesmo sem forças lancei meu braço esquerdo a frente, ele acertou meus punhos e eu soltei um grito. Um enorme grito de dor. O facão estava tão amolado que atravessou minha mão. O sangue jorrava de meu braço. E num surto o ataquei.

  O gigante ia em direção a Raul que se protegia como podia com o chicote. Em um golpe certeiro o gigante partiu o chicote ao meio com uma de suas espadas. Ele avançou contra Raul.

 - Hora de morrer, negro!

  Em meu surto não me pergunte como, derrubei o menor no chão, um de seus facões caiu ao lado de minha mão que havia se separado de meu braço. Com minha mão direita o apertei o pescoço. Ele dando golpes em meu ombro e costas com o facão. De repente ele havia parado de respirar. Eu estava fora de mim. Foi quando o grito de Raul me despertou. Minhas costas cortadas, minha mão decepada, a adrenalina era tanta que naquele momento algo em meu cérebro bloqueou aquela dor. Peguei o facão com minha mão direita e parti pra cima do gigante que havia cravado a espada na barriga de Raul.

 - Maldito! Eu disse o apunhalando pelas costas. O facão atravessou suas costas e o sangue escorreu da boca. Ele ainda deu dois passos em minha direção. Foi aí que o reconheci, era o homem do beco. Por fim caiu de barriga no chão. Raul ainda respirava. Mas não resistiria por muito tempo.

 - Fique calmo amigo - Eu disse -  Mas de que adiantava? Já havíamos sobrevivido tempo demais. Foi quando a voz se manifestou novamente.

 - Parabéns Robert! Espetacular realmente. Ele entrava com uma capa vermelha de mágico. Era a coisa mais horrenda que eu já havia visto. Você venceu! Apenas o último ato e estará livre. Mate o Raul!

 - O que você é? - Eu perguntei.

 - Sou um mágico! Sou mágico... sou sombrio... sou um demônio -  ele gargalhava enquanto falava. Os dentes eram maiores que os do próprio leão, eram pontiagudos. Ele era magro, não havia pele, apenas carne e ossos, os órgãos pulsando em seu corpo, estranhamente. Orelhas estranhas e peludas, olhos vermelhos maquiavélicos, e em suas mãos viscosas haviam dedos compridos e unhas que mais pareciam-se a garras. Quando ele falava a saliva pastosa prendia-se a seus dentes, tinha uma vós rouca e grossa ao mesmo tempo, era assustadoramente nojento.

 - De onde você veio?

 - Eu vim do inferno, é claro. E é pra onde você vai se não mata-lo!

 - Eu? Mas por que?

 - Por que vai matar este homem, ou irá vagar pela eternidade pelo vale da morte. E não pense que isso é melhor que o inferno. Ele ria enquanto falava. Todo meu corpo doía, o sangue fugindo por minhas veias. O que eu fiz para merecer isso?

 - Vai mata-lo ou escolhe o outro caminho? Olhei ao redor e vi todas aquelas criaturas de terno e gravata. Demônios! Era um circo do inferno. Levantei-me. Arranquei o facão do corpo do gigante e olhei para Raul. Desculpe-me amigo. Adeus! E corri em direção ao monstro, ele abriu raivosamente a boca e duas enormes asas de morcego surgiram de trás de seus ombros,ele vinha de encontro a mim.

  Foi quando por um simples segundo pude o ver em sua forma humana, uma mulher, maldita prostituta. Ele cravou seus dentes em meu pescoço e arrancou parte de minha carne. Eu caí de joelhos no chão, sangue escorrendo pelo meu peito, ofegante, minha força se esvaindo. Ainda escutei Raul dizendo.

 - Robert, não!

  Naquele momento era como se uma maldição tomasse conta de mim. E assim estou pagando por ter matado um demônio. Foi a última coisa que vi. Ele soltando meu pescoço já sem forças, suas garras segurando o cabo do facão e puxando-o de sua barriga. O sangue jorrando... sangue podre, o mesmo daquele deserto. De repente toda aquela arena não existia e os demônios sumiram.

 Ele se desintegrou com uma explosão de sangue, as partículas pelo chão, carne podre esparramada. Raul se levantou, estava inexplicavelmente curado. Eu venci, mas ele foi quem viveu. Naquele momento fechei meus olhos e morri, tragado pela ira do demônio. Este é o fim de minha vida e o começo de minha morte.

 Agora tenho que sair deste corpo pois há um homem aqui, está rezando, evocando espíritos que ele desconhece, monstros que podem o perseguir, que podem o matar, demônios começaram a chegar... Meu Deus não consigo sair dela... O que faço? E o pior os demônios agora se apossaram dele e também dos pais dela. Malditos! Eles me querem! São filhos dele! Querem vingança!

 Mas eu os matarei! Os matarei um a um!

Fim!

Treze minutos de sangue


Treze Minutos De Sangue
                    
Para sermos felizes até certo ponto é preciso que tenhamos sofrido até o mesmo ponto. [1]

— Não é engraçado, o Daniel Day-Lewis ganhou três vezes o Oscar e o Joaquin Phoenix não ganhou nenhum? Isso não parece algum tipo de heresia cinematográfica? — perguntou Sandro, enquanto tirava a mochila da camionete.
            — Eu não sei para mim os dois são parecidos — disse Fábio, o tipo de resposta que Sandro considera idiota.
            O mundo dos jovens é feito de coisas estranhas, Sandro descobriu um concurso de cinema na internet e chamou os amigos.
            Os três se conheceram têm seis meses, juntos entrariam em um concurso de cinema na internet onde enfrentariam o horror e o medo.
            Sandro, não era bonito, mas tinha charme e comportamento peculiar, uma figura atraente, gostava de música, cinema e principalmente de filme de terror, tinha várias tatuagens, mas a que mais gostava era feita em homenagem ao filme V de Vingança, uma frase que Sandro falava sempre:
            — Políticos corruptos servem para inspirar a arte — falava do texto de Moore, modernizado pelos irmãos Wachowski, no brutal filme V de Vingança.
            Fábio gostava de cinema por outro motivo: ver filmes acalmava a sua cabeça, suas vozes internas.
            — As regras simples e claras, estavam em um manual em PDF, que posso resumir assim: os candidatos teriam que achar um lugar desconhecido, com uma boa história de horror, o roteiro do curta-metragem, que por regra duraria treze minutos, deveria conter fatos da história que motivou a escolha do local, tudo ao vivo — disse Sandro, depois jogou a folha toda amassada que estava em seu bolso no lixo, onde rabiscara aquele relato.
            — Ao vivo, isso vai ser bacana! — disse Mariana, depois de beijar Fábio. Mariana, com dezoito anos, mais nova dos três, bonita, com cabelos curtos e ruivos, dentes perfeitos, sorria sempre, ninguém poderia parar aquele sorriso. No seu corpo, duas singelas tatuagens, no seu ombro uma estrela, e na sua nuca três borboletas azuis.
            — Você estudou cinema em São Paulo? — perguntou Sandro. — E veio parar nesse canto de mundo? — Sandro falava com a certeza de que deixar a faculdade de Cinema em São Paulo poderia ser considerado um pecado mortal.
            Fábio não queria responder por que mudou de São Paulo, pois não confiava em Sandro e por isso, mentiu:
            — Meu pai ficou doente — disse, tinha que esconder sua doença, ali ninguém saberia.
            Motivada para o concurso, Mariana foi a primeira a procurar o lugar ideal, descobriu um casarão colonial perto da casa da sua avó. Até aquele momento, não ligava para o que a sua avó contava sobre a fazenda vizinha, pesquisou na internet, achou uma narrativa bizarra sobre a fazenda dos escoceses e resolveu encontrar todo mundo na biblioteca da faculdade.
            Mariana contou sobre a fazenda do casal de escoceses que viveram por quinze anos como vizinhos da sua avó e depois desapareceram; os esqueletos de duas crianças foram encontrados na fazenda, estavam acorrentados no porão, todos de mulheres ou meninas; durante vinte anos havia uma lenda de espíritos vagando pela fazenda que foi abandonada e ninguém jamais voltou a morar no casarão.
            Viajaram durante todo o dia, e no carro conversavam pouco, Fábio estava calado, preocupado com as vozes na sua cabeça, elas estavam aumentando gradativamente, Mariana perdida em devaneios românticos e com certa excitação pela aventura, Sandro olhava fixamente para o caminho, tentava manter a mente vazia, tinha muito trabalho a fazer.
            Estava frio e havia um nevoeiro, que cobria tudo, menos a casa, Mariana achou aquilo lindo, como se a casa colonial fosse protegida por uma cúpula de vidro.
            O fedor era desagradável, não forte, mas um fedor permanente, desses que se sente em necrotério, Fábio ficou incomodado com esse fedor, mas parecia ser ele o único a notar.
            Fábio havia mentido para Mariana, passou a sua vida toda tomando medicamentos controlados para tratamento de uma suposta esquizofrenia, por isso saiu de São Paulo e foi morar na cidade universitária.
            Mariana foi a primeira a entrar na casa. O interior da casa estava preservado de forma quase sobrenatural, no centro da sala havia um magnífico piano, lençóis cobriam os móveis. Um quadro com um casal e uma menina deitada no colo do pai, ao mesmo tempo envolvida pelos braços da mãe.
            “Os donos anteriores” pensou Mariana, o pai era um homem magro, de bigode aparado e bonito, lembrava Charles Chaplin e tinha os olhos azuis, a mãe tinha um rosto terno e belo, com olhos grandes, lábios finos e cabelos castanhos, mas Mariana se encantou mesmo fora com a menina, pequena, de longos cabelos ruivos e um sorriso angelical, deitada no colo do pai simbolizava algum tipo de harmonia familiar que Mariana jamais viu e que de alguma forma ela passou a admirar.
            Uma mão tocou o ombro de Mariana quando ela passava suavemente a mão no rosto da menina, assustada virou bruscamente, mas não havia ninguém lá, ao mesmo tempo, com um movimento quase involuntário do seu braço, empurrou o quadro. A primeira impressão é que o quadro cairia, ele nem se moveu, mas achou um diário de páginas quase em branco, cada página tinha uma frase, estava atrás do quadro, começou a ler o diário e adormeceu.
            Acordou assustada, tinha um ferimento na boca, sentiu um gosto de sangue, uma tontura e uma dor de cabeça, percebeu que estava no porão, presa por uma corrente no braço esquerdo, o fedor era maior que no lado de fora, não conseguia respirar, diante da escuridão, do medo e do horror, começou a gritar, quando seus olhos acostumaram com a escuridão, o que viu foi terrível: dezenas de esqueletos acorrentados, todos eles pareciam de mulheres ou meninas e usavam vestidos ou camisolas, as ossadas estavam agrilhoadas somente por um dos braços, sempre o esquerdo, um dos arcabouços parecia ser de uma criança, seria o de Mirna? Aquela ideia sufocou Mariana e ela vomitou.
            Uma luz ofuscou o seu olhar, era a luz da câmera de Sandro.
            — Para com essa merda, Sandro — disse Mariana — que brincadeira sem graça — ela escutou um barulho do lado esquerdo, bem junto ao solo, alguém se arrastava, a luz da câmera mudou para lá, era Fábio, suas pernas e braços tinham sido cortados, ele chorava, sangrava pelos cortes e seu rosto estava pálido.
            Mariana não conseguia olhar, o rosto do namorado estava junto ao solo, pela sua boca saía uma linha de sangue preto, seus olhos estavam abertos, parecia ter parado de respirar.
            A luz da câmera voltou para Mariana, Sandro jogou para perto dela um machado. Como apenas o braço esquerdo estava acorrentado, então ela pegou o machado com o direito.
            — Faça a sua escolha, dizem que a vida é feita de escolhas, mas um homem verdadeiramente livre é aquele que não precisa escolher nada — disse apontando para o machado. Por um instante houve silencio, interrompido pela respiração de Sandro e os soluços de Mariana, sarcástico com uma voz fina e diabólica, Sandro acrescentou: — Vou te contar um segredinho, para escapar basta cortar o antebraço que ficará livre.
            — Por que está fazendo isso? — perguntou Mariana com lágrimas nos olhos. —Por quê? O que eu te fiz? — gritou tão alto quanto pôde.
            — Diversão, fama, arte — disse Sandro. — Um dia eu terei o meu próprio site.
            — A polícia vai te pegar — disse Mariana, nos seus olhos tinham lágrimas.
            — Deve pesquisar seus amigos — disse a voz atrás da luz. — Como disse, o verdadeiro homem livre é aquele que não tem identidade.
            Ela jogou o machado para perto de onde achou que Sandro estava, pois a luz ofuscava a sua visão.
            — Que se dane — disse Mariana cuspindo o sangue que escorria pela sua boca. — Vou estragar essa porcaria de filme.
            — Uma pena, sinceramente, torcia por você — disse Sandro desligando a câmera. — Então temos que aceitar o outro final — apontou para uma câmera no teto. — Eu vou deixar vocês com meu amigo aqui, meus queridos.
            Mariana olhou para a câmera, ficou gritando e puxando a corrente, não havia nada que pudesse fazer.
            A luz vermelha deixava ver poucos detalhes do lugar, Sandro tinha saído do porão, subido as escadas, Mariana estava sozinha, poucas vezes sentiu tanto desespero, forçou a corrente presa na altura do antebraço, certamente não conseguiria escapar, pensou na sua mãe, nas brigas, na forma arrogante de lidar com a mãe, já que seu pai nunca esteve presente, uma família de três mulheres, o tio policial aparecia algumas vezes. A maioria do tempo as três ficavam sozinhas.
            Mariana não sabia qual o motivo do pai ter abandonado a família, pelo que se lembrava da sua infância a mãe era uma pessoa dedicada, agora estava ali para morrer de uma forma horrível e não tinha uma lembrança boa do seu pai. Chorou, forçou mais uma vez a mão contra a argola, examinou o cadeado, meu Deus! Teria escolhido certo? Olhou para o machado que estava agora fora do seu alcance.
            Uma vez na infância, Mariana roubou a avó, ela tinha doze anos e queria muito uma blusa, pegou o dinheiro na caixinha onde a avó guardava suas economias, todos sabiam que o dinheiro ficava ali, uma coisa infantil, a mãe descobriu, a sua reação foi tão exagerada que quase teve um colapso, naquele momento Mariana ficou órfão de mãe viva e pai vivo, a única pessoa com quem ainda podia conversar era sua avó, quando Mariana completou dezesseis anos, sua avó morreu vítima de AVC, então ela ficou completamente só, e passou a se agarrar a qualquer coisa, talvez por isso estivesse ali.
          Ouviu um barulho, depois teve certeza de escutar um grito, um grito pavoroso foi sucedido por um silêncio total, alguma coisa veio rolando a escada e parou próximo ao pé de Mariana, logo depois ouviu dois estalos, alguma coisa destruiu a câmera no teto, com o pé Mariana puxou o objeto.
            Meu Deus! A cabeça de Sandro, Mariana, mesmo horrorizada, percebeu que havia algo dentro da boca, escondida entre os dentes, havia uma chave.
            Abriu o cadeado das correntes, antes de sair passou a mão na face de Fábio e chorou, Fábio morreu de forma medonha, havia sangrado muito.
            Ao correr o caderno caiu no chão e uma luz estranha iluminou essas palavras, na última página da pequena caderneta.
            “You belong to us”.
            Mariana tinha certeza, aquelas palavras não estavam lá, antes.

O feio e a bela


Agora o excêntrico Dr. Carlos Veiga era um cirurgião plástico renomado. E embora muito se esforçasse para esquecer-se do outrora, seu passado complicado ecoava em sua mente. Lembranças de sua juventude, do tempo em que a exclusão o levou a estudar e se elevar na medicina.

 Mesmo quando ainda fazia o colegial, era ridicularizado e considerado o nerd da sala. E embora feio e de incomoda aparência, sua inteligência era apreciada pelos professores e colegas, não foi diferente quando ingressou na faculdade de medicina.
 Se mantinha sim isolado dos demais, sabia que sua aparência não atraia as colegas. Baixinho, careca e manco de uma perna, era excluído, encaravam-no com nojo e asco. E enquanto os encantos da juventude dominavam as badalações dos de sua idade, ele se mantinha reservado, estudando mais e mais para enfim dar razão a sua vaga existência.

 O tempo passou tão depressa que nem deu tempo de se preocupar com tais adversidades. Estava já com 52 anos quando conheceu Eve. Eve tinha apenas 28 anos e era tudo que um homem queria ter. Alta, magra, pernas torneadas e com um rosto de fazer inveja. Eve se candidatou ao cargo de secretaria e ao vê-la, o doutor não teve duvidas em contrata-la.
 Não foram dois meses e estavam saindo para jantares em restaurantes caros e passeios em seu barco, mais seis meses e ele a pediu em casamento. Sabia que estava fazendo uma loucura, mas não resistiu e resolveu que viveria o momento, sabia que um dia a mulher Eve no auge de seus 28 anos o deixaria, mas não queria pensar nisso naquele momento.
 Já no primeiro ano ele percebeu que Eve gastava mais que uma mulher normal. Muitas vezes chegava em casa e ela não estava, nessas ocasiões, seu celular nunca estava ligado. Até que um dia Eve chegou de mais uma noitada e o surpreendeu com um pedido. Um pedido que ele bem sabia que um dia ouviria:
  Carlos eu quero o divorcio.
 Aquele súbito pedido soou como uma ordem, uma frase rápida e rasteira, um jogo de palavras que fez o cirurgião feio se perguntar e perguntar, em busca de uma resposta que ele já sabia:
  Mas por que?                                         
  Ora, Carlos... Não pode ter pensado que eu continuaria casada com você!
Eve estava bêbada. Suas palavras ríspidas cuspiam arrogância e sarcasmo. Carlos ponderou para não reagir violentamente. Se conteve e calmo, tentou conversar em indagações:
  Claro que pensei Eve! Te escolhi para ser minha mulher!
  O que estar querendo? Mostrar aos seus colegas que conseguiu casar com uma bela mulher? Foi para isto que lhe servi? Um troféu caro para provar aos outros que até mesmo uma aberração como você consegue uma mulher como eu?
 Ele que sempre fora humilhado, soube administrar toda aquela agressão verbal. Respirou fundo e perguntou sereno:
  O que mais você quer Eve? Posso lhe dar tudo que o que quiser...
  Já lhe disse o que quero: O divorcio!
  Infelizmente não posso concordar...
  Então peço eu o maldito divorcio!
 A persuasão ecoou firme na cabeça do cirurgião. Decidiu ele usar seus próprios recursos. Junto deles, sentiu que era hora também de ser sarcástico e ríspido com a vadia suja:
  Na verdade, não creio que seria aconselhável, Eve... A não ser que você queria voltar a sua vidinha mais ou menos de secretaria, talvez você não tenha lido devidamente as clausulas do contrato do nosso casamento...
  Como assim?
  Caso peça o divórcio, você sai do casamento assim como entrou, exatamente sem nada! Planejei isto caso aja uma inconveniência, assim como esta!
  Seu desgraçado! Como pode fazer uma coisa dessas comigo?
  É muito simples: Fiz porque a amo.
  Pois eu o odeio! Sabia disso? Eu o desprezo!
 Carlos sorriu sinicamente. Sinicamente, pois também, de certa forma, se odiava:
  E eu a amo muito.

 Eve sabia que não conseguiria mais viver sem os luxos que o casamento lhe proporcionava. Tinha seu amante Ray, com quem já vivia muito antes do casamento. Sabia que ele não ficaria com ela se o luxo que ela lhe dava acabasse, tinha que arranjar uma maneira de se livrar de Carlos e ficar com o seu dinheiro, não voltaria a viver a vida de antes quando precisava contar cada centavo para sobreviver e ainda bancar Ray.

 Eve estava na cama do amante observando ele sair do banho inteiramente nu. Ele tinha um corpo bonito, esguio e forte. Eve adorava a maneira como ele fazia amor. Desconfiava que Ray tinha outras mulheres, mais nenhuma podia dar o que ela dava. O DINHEIRO DO MARIDO.
 Enquanto pensava, Ray se aproximou da cama, correu os dedos ligeiros em sua pele e lhe disse.
  Esta ficando com algumas rugas, meu bem... Mas até que são atraentes.
 E como toda mulher, Eve não gostava de se sentir velha...
 Era quase nove horas quando Eve voltou para casa. Carlos estava fazendo uma carne assada no forno. Beijo-a no rosto.
  Olá querida, fiz um dos seus pratos prediletos. Teremos...
  Carlos, quero que você tire essas rugas do meu rosto.
 Ele piscou os olhos aturdido.
  Que rugas?
 Eve aproximou-se do marido apontou para a área em torno dos olhos e respondeu:
  Estas rugas!
  São as linhas do riso, querida. Extremamente comuns. Eu as adoro.
  Mas eu não! Detesto-as! Quero que as tire de meu rosto!
  Meu amor... É um procedimento totalmente desnecessário...
  Pelo amor de Deus tire essas malditas rugas! Não é isso que você faz para ganhar a vida?
  Sim. Mas... Está bem, querida, se isso a faz feliz, eu as tiro!
  Quando? – Perguntou ela eufórica.
  Dentro de seis semanas. Estou com uma programação cheia e...
  Não sou uma de suas malditas pacientes! Sou sua mulher e quero que faça a operação agora! Amanhã!
  A clinica estar fechada aos sábados.
  Pois então abra!
 Eve estava ansiosa para livra-se das rugas, logo em seguida se livraria dele, isso era fato.
  Vamos para o quarto por um momento. – pediu Carlos.
 Diante de uma forte luz no quarto, Carlos examinou-lhe o rosto meticulosamente. Num instante passou de um homenzinho insignificante para um brilhante cirurgião. Eve pode sentir a transformação.
  Não há problemas. Farei a operação pela manhã.

 Os dois foram a clinica na manhã seguinte.
  Geralmente conto com a ajuda de uma enfermeira. Mas isso não será necessário com uma intervenção tão pequena.
  Já que vai me operar, bem pode aproveitar e fazer algumas coisas com isso – disse Eve puxando a pele do pescoço.
  Se você assim quiser querida, esta certo. Vou lhe dar uma coisa para dormir, a fim de não sentir dor e desconforto. Não quero que o meu amor sinta qualquer inconveniência.
 Eve observou encher uma seringa e habilmente aplica-lhe a injeção Não se importaria de sentir dor, estava fazendo aquilo por Ray.
 Na manhã seguinte, despertou numa cama, no quarto dos fundos da clinica. Carlos estava sentado numa cadeira ao lado da cama.
  Como foi? – perguntou com o rosto enfaixado.
 A voz de Eve estava enrolada de tanto sono.
  Correu tudo bem. – respondeu ele, sorrindo – Ao meu modo.
 Eve acenou com a cabeça e tornou a mergulhar no sono.
 Carlos estava presente quando ela acordou de novo, muito mais tarde.
  Vamos ter que deixar as ataduras por mais alguns dias.
 A mulher não aguentava mais de ansiedade, já estava no hospital a oito dias e o único meio de comunicação com Ray, era por telefone. Apesar da resistência de Carlos ela tinha conseguido com que ele instalasse um telefone em sua mesa de cabeceira.
 Acordou cedo na manhã de sexta- feira e ficou esperando por Carlos impacientemente, era o dia de tirar as ataduras do rosto.
  Já são quase meio dia – queixou-se ela – onde diabos você se meteu?
  Desculpe, querida. Passei a manhã inteira numa operação e...
  Não estou interessada nessas coisas! Tire logo essas malditas ataduras! Quero ver como fiquei!
  Esta bem. – concordou o feio com um leve sorriso.
 Eve sentou-se na cama e ficou imóvel, enquanto o esposo removia habilmente as ataduras de seu rosto. Carlos recuou para estuda-la e ela viu a satisfação nos olhos dele.
 — Você esta perfeita!
  Dê-me um espelho! Quero prestigiar!
 Ele saiu do quarto apressadamente e voltou um momento depois com um espelho na mão.
 Eve levantou o espelho lentamente e contemplou seu reflexo.
 O grito que soltou, foi ouvido por todo hospital.
   
A infiel tentou cometer suicídio no dia em que vira seu rosto no espelho. Engoliu todo um vidro de pílulas para dormir. Mas Carlos lhe bombeara o estomago e a levara para casa, vigiando-a atentamente.
 Quando ele ia para o hospital, havia enfermeiras para vigia-la, dia e noite.
  Por favor! Deixe-me morrer! – suplicava Eve ao marido - Por Deus, Carlos, não quero viver assim, você me transformou em um monstro!
  Você esta mais bela agora, meu amor... E eu sempre a amarei.
  A imagem do seu rosto estava gravado no cérebro de Eve. Depois de alguns dias ela convenceu Carlos a dispensar as enfermeiras, ficando somente uma velha chinesa que não falava sua língua. Não queria que ninguém a visse assim
 Carlos era seu único vinculo com o mundo. Eve sentia pavor que ele a deixasse. Todas as manhãs o cirurgião feio se levantava as cinco horas para ir ao hospital, ela sempre levantava antes para lhe preparar o café. Preparava o jantar todas as noites. Quando ele se atrasava, Eve ficava apreensiva.
  E se ele não voltar mais?
 Quando ouvia a chave na porta, ela corria para abri-la, jogando-se nos braços dele e apertando-o com força. Jamais sugeria que fizessem amor, pois tinha medo que ele pudesse recusar.
 Houve uma ocasião em que ela perguntou timidamente.
  Já não me puniu o bastante, querido? Não vai endireitar o meu rosto?
 Carlos contemplou-a e disse orgulhoso.
  Fiz o melhor trabalho de minha vida, querida! Nunca mais poderá ser reparado!
 A medida que o tempo foi passando, Carlos tornou-se mais exigente, mais autoritário, até que Eve acabou transformando-se numa escrava atendendo-lhe a todos os caprichos. A feiura a prendia a ele mais que grilhões de ferro, e ele bem sabia sobre o que era ser escravo e prisioneiro da própria aparência.
 
 

 O que e qual é o padrão de beleza imposto pela sociedade? Precisamos realmente estar belas e “recauchutadas”, reformadas e lapidadas com bisturi para a satisfação dos homens abutres?
 Eve era bela, mas ousou ir mais além... Ousou agradar o amante bonitão e se arriscou no afiado bisturi do marido feio... Vale a pena se reconstruir? Acho que não...

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Noite sem fim

Inquieto em minha concepção
Sentimentos cortantes e desumanos
Ecos que me cercam nos quatros cantos
Incomodando meu martírio
Até quando estarei imerso
Em decadência, perdido na escuridão?
Estou sem sentir os meus pés no solo
E, minhas mãos que buscam apoio;
Sinto o meu coração bradar em silêncio!
Mas “ninguém” percebe o meu sofrimento
E os minutos seguem em ritmos melancólicos
E a noite chega à madrugada se vai
A angustia é minha companheira
A minha boca saboreando o amargo das lágrimas
E ao meu redor ouço passos e ecos estridentes.
Almejo o dia em que tudo cessará
Minha alma anseia novamente arder
Sentir prazer em sorrir.
Nada é eterno, nem mesmo a dor.
Sinto em meu ser a aflição se dissipar
O desespero eu vou superar!
Chorando sem um ombro para me ajudar
O meu coração que ferido estava
Uma luz novamente brilhou
Secando minhas lágrimas
Como passe de mágica
Sempre que me lembro de você!