quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Prostituto das letras


 
 Defini-lo em linhas rápidas?
 Puto e esganado, escrevia e vivia só pra ganhar pouco dinheiro. Palavras esdrúxulas na ponta de um cigarro barato, tragando frases intragáveis, arriscando-se em se perder em linhas imaginarias. Este é o excêntrico Prostituto das Letras, e embora muito se especulasse, quase nada demais se sabia sobre ele.


 Dizem os tortos que ele é um homem comum, que usa chapéu largo e carrega uma maleta vermelha. Nesta maleta tem exatamente uma centena de folhas de sulfite, com letras Times New Roman 12. Letras que formam um livro esquisito, que conta sobre um homem que queria tomar café com o Diabo.
 Ouvia-se uma historia não confirmada sobre Lindalva, uma moça da cidade pequena ao sul, que se matou após se iludir com suas promessas vagas. Contam que ele arrancou tudo o que ela tinha, até mesmo a esperança, a levando ao ato extremo. Enforcou-se em uma arvore. Era um pé de ipê roxo.
  Lhes digo que embora estes fatos ecoem contra a moral deste rapaz, nada pode ser afirmado contra ele. Não existem provas, apenas circunstancias e fatos, os fatos apontam para todos os lados, e em nenhum destes lados sua reputação pode ser afetada.  Mas embora seja necessário, o moço escritor não tem um nome “publicável”, nem mesmo um nome na autoria de seu livro... Acho que é o jeito tímido dele dizer que esta e não esta ligado com pessoas e coisas.
 E o Prostituto rasgou o mundo com sua maleta vermelha que guardava seu maior tesouro, seu maior legado,com o titulo provisório: “Tomando Café Com o Diabo”.
 E o Diabo é lá criatura de tomar café? Mas o Prostituto das Letras não se importava com esta indagação, pois era cego para o que os outros diziam ou pensavam, ele só acreditava naquilo que escrevia, naquilo que criava.
 Em vários e vários momentos da vida o escritor amador se vendeu por um tanto de dinheiro. Se vendeu pra levar adiante sua odisseia, seu sonho perigoso de contar ao mundo sobre um homem que queria tomar café com o Diabo. E em cada cama que acordava, sentia-se o próprio Diabo, só que sem o gosto forte de café na boca.
 Era belo, tímido e voraz. Uma maquina afiada de fazer sexo, algo bom que sabia tirar proveito. Língua e toques afiados, tudo para fazer valer o alto preço que cobrava. Elas se satisfaziam plenamente e retribuíam, certas de que valia muito apena. E valia.
 O escritor soube que na Noruega existia uma Bailarina aleijada que dançou com o próprio Diabo em um teatro em ruínas. Tratou de voar para lá, no interesse de conversar com a mulher...
 E em um jardim cheio de rosas vermelhas e quase despetaladas, o Prostituto encontrou-se com a Bailarina. Ela era velha e os poucos dentes que tinha na boca, eram podres. Mesmo assim ele a beijou ardentemente, pois era de seu costume pagar por aquilo que queria ouvir.
 A Bailarina sentada em sua cadeira de rodas, arrancou o cobertor que cobria seu colo. O Prostituto das Letras viu então suas duas pernas esmagadas, ainda banhadas em sangue, mostrando fraturas expostas e carne dilacerada. Horrível de se ver!
Ele arrepiou-se todo, ela calma, bebeu um gole de chá e lhe contou:

— Dancei com o Diabo sim. Ele de fato é um sujeito formidável e me foi muito gentil. Deixou que eu conduzisse os passos, mas no meio da musica, o teatro em ruínas acabou por desabar de vez. Um caibro caiu sobre minhas pernas. Mesmo ferida, eu queria continuar a dançar. É tão generoso o Diabo! Ele me tirou dos escombros e continuamos a valsa... Me apertou contra seu peito, enquanto meu sangue lambuzava suas calças. Ele não se importou, me beijou a boca e disse que a dança lhe foi um grande prazer.
 Uma mosca caiu dentro do chá do Prostituto das Letras. Mesmo assim ele bebeu, esmagando o inseto entre os dentes, encantado com o testemunho da Bailarina aleijada:
— E onde posso encontra-lo?
 A mulher inerte nas doces lembranças sorriu. Sorriu sim, boba de si mesma, boba e realizada, dizendo em encanto:
— Ele esta sempre aqui e ali... Vez ou outra vem, mas não quer mais dançar. Diz que esta ficando velho e cansado. Mas se quer mesmo encontra-lo, recomendo que faça como eu fiz.
 O homem não entendeu. Ela então continuou a dizer:
— Eu quis tanto dançar com ele que escolhi minha musica preferida e o esperei. Eu limpei o velho teatro, coloquei o disco na vitrola e o aguardei. Ele enfim veio! Dançamos e me encantei... Valeu apena!
 O Prostituto sorriu satisfeito. Levantou-se da cadeira e beijou novamente a Bailarina velha, prometendo em um momento propicio retornar para lhe conceder uma dança.
 Retornou ao seu país de origem, disposto a tomar café com o nobre Diabo.
 A mesa farta montada às três horas da tarde se destacava na casa grande e velha. O aroma do café borbulhando na cafeteira infestava o ambiente que outrora trazia um cheiro almiscarado. Era podridão disfarçada.
O Prostituto das Letras sorriu com a maleta vermelha no colo e esperou pelo seu convidado.

 As moscas esvoaçaram pela cozinha semi-limpa, pousando por sobre as frutas, pães, bolos e bolachas. O escritor tentou espanta-las, pois não queria fazer feio ao Diabo. Não conseguiu. Elas eram atordoantes e atrevidas. Vieram para ficar.
 Eis que a campainha tocou. Ansioso, o Prostituto deixou a maleta de lado e foi abrir a porta. Era o Diabo, com suas calças manchadas com o sangue limpo da Bailarina velha.
 O cheiro de café queimado impregnava a sala. O Diabo entrou e o escritor empolgado o convidou á se sentar.
 Não queria mesmo fazer feio, espantou as moscas e encheu a xícara de café do Diabo. O tinhoso bebeu um gole curto, o Prostituto bebeu também e lhe contou:
 — Escrevi um livro. Conta sobre um caixeiro viajante que se hospeda na casa do Diabo. Os dois tomam café juntos e...
— Pois deixe-me ler. – pediu o Diabo, esticando a mão, esperando pelos escritos do homem.
 Acontece que o Prostituto das Letras era cheio de toques, e embora apreciasse a companhia de seu ilustre convidado, hesitou em dar-lhe de ler.
— Deixe me ler! – insistiu o coisa ruim, quase que sem paciência.
— É que está pronto para publicação... Creio no azar, ninguém pode ler antes da publicação...
 O Diabo riu maroto e disse que aquilo era bobagem. Insistiu pela terceira vez. O escritor que não queria ser rude, abriu a maleta vermelha e passou as folhas ao Diabo.
 E ele leu a primeira pagina. Leu devagar, vez ou outra sorria leve e discordava, mas na maioria das vezes, concordava e apreciava.
Quando terminou de ler à primeira, a colocou no colo sujo de sangue, fazendo o Prostituto das Letras se incomodar. Seu trabalho primoroso estava encharcado de sangue limpo.
 E cada folha que terminava de ler, o maldito colocava sobre o colo com o sangue da Bailarina velha. Na ultima folha, a de numero 100, riu escancarado, aplaudindo o belo final:
— Bravo, bravo, bravo! És um belo final! Digno de ser publicado, lido e relido. Confesso que não esperava grandes coisas de você depois de ter tomado tão ruim café, mas a historia... A historia valeu a visita!
 Entregou as folhas ensanguentadas ao escritor. Tão logo ele notou que o sangue fedia, sentiu incomodo em guarda-las novamente na maleta limpa:
— Pois fique com elas e releia, se assim quiser. Tenho uma copia a sete chaves. Mesmo porque, estas estão sujas e de nada me servirão.
 O Diabo feliz abraçou os papéis lambuzados e disse em tom de profecia:
— Pois farão grande sucesso! De fato temos em mãos um Best Seller, digno de aplausos e prêmios... Alias, falando em premio, consegues sentir o cheiro?
 O Prostituto encarou o Diabo e perguntou:
— Cheiro do que?
 O Diabo meticuloso inclinou o queijo e começou a fungar alto, procurando pelo cheiro no ar:
— É cheiro de premio... Sinta!
 Tão logo respirou fundo, sentiu ele o cheiro pútrido de carniça. Ouviu as moscas zunirem e olhou pelas costas do Diabo. Viu então Lindalva, enforcada e podre, rodeada por moscas, pendurada pelo pescoço no pé de ipê roxo. O Prostituto levantou-se de sua cadeira e caminhou até ela, pisando por sobre as flores meio que azuladas do ipê. Tirou seu chapéu em tom de luto, ouvindo o Diabo lhe dizer:
— De certa forma eu lhe devo, caro amigo. Este de fato foi um grande premio que me destes. Não vejo outra escolha a não ser ajuda-lo em sua odisseia, lhe instruindo para enfim alcançar seu objetivo. Como tem que ser.
 O escritor levou a mão até o rosto deformado da moça suicida. Colocou o polegar no canto de sua boca e falou ao convidado:
— Ela era tão bela e cheia de vida... Tinha tanto a oferecer e eu aceitei... Entrei devagar em sua vida e levei tudo comigo... Tudo!
 O Diabo enfim se levantou, colocando as folhas amassadas e ensanguentadas debaixo do braço. Pôs a mão no ombro de seu anfitrião e disse, sem delongas:
— Ela pagou e achou justo. Você lhe apresentou uma vida alem de suas perspectivas. A balança foi equilibrada e de certa forma justa, pois ela viveu intensamente e quis mais, não encontrou e viu que não faria sentido seguir. Se tornou meu premio. Eu e ela agora somos gratos a você. Ela já lhe pagou, eu estou lhe pagando.
 O Diabo lhe estendeu um cartão dourado, sorriu e contou:
 — Este cartão é de uma vaca feia e encantadora que lhe concederá a chance de ouro! Trata-se de Margot Ferrell, uma agente literária muito conceituada e exigente. Ela certamente se encantará com você e suas linhas. Poderia lhe desejar boa sorte, mas creio que não ira mais precisar disto. Precisa é de um pseudônimo. Creio que posso te dar um.
 O Diabo assim fez. Antes de ir, beijou o rosto do Prostituto das Letras e partiu, levando consigo o escrito ensanguentado e seu premio.
Honrado pela visita e pela graça, o escritor com novo nome deu um largo sorriso, firme em dar o próximo passo.
 Acordou duas noites depois na cama da imunda agente literária, Margot Ferrell. A luz forte do sol bateu em sua retina quando a persiana do luxuoso apartamento foi aberta pela grotesca. A feia mulher nua acendeu um cigarro longo, tragou e falou:
— Hora de acordar, escritor. Tens uma coletiva de imprensa daqui a menos de duas horas. Os repórteres querem saber sobre Dalton Sorvino, o jovem e belo escritor que se destacou em uma obra fascinante, curta e direta.
 Apagou o cigarro no cinzeiro e cobriu o corpo feio com uma camisola grossa. O Prostituto das Letras se levantou da cama grande e respirou fundo, pronto para colher os frutos podres que plantou.
Dois Meses Depois...
 O jardim da velha Bailarina Norueguesa estava seco. Mesmo assim ela tomou seu chá, recebendo o ilustre convidado:

— Não pensei que retornaria. – disse ela, sorrindo tímida com os dentes sujos e podres.
— Como não voltaria? – perguntou Dalton Sorvino, o Prostituto das Letras – Lhe devo uma dança, não?
 Ela ficou encabulada quando ele lhe estendeu a mão, lhe convidando para dançar.
A vitrola velha girava o disco grosso, enquanto a Bailarina feliz levantou-se com dificuldade de sua cadeira de rodas. O escritor de terno branco ignorou o sangue que escorria em abundancia das pernas macetadas da mulher. A tomou em seus braços e dançou calmamente, arrancando dor e alegria de mais alguém...

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