segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Amaldiçoado


  Chamo-me Robert Silva, tenho vinte e sete anos, tenho esta idade há quase dez anos. Estive vagando pelo vale da morte, um deserto de larvas. Mergulhei em um oásis de sangue podre, o cheiro aqui é horrível, vermes por toda parte, baratas horrendas e nojentas por todo meu corpo, elas andam sobre mim, ratos gordos e pegajosos me perseguem, são centenas deles, cobras de duas cabeças fazem buracos na areia negra sob meus pés descalços afundados nessa lama que fede a animal morto. Urubus e corvos voam por toda parte, em circulos enquanto olhares amaldiçoados são lançados em minha direção.

  Bem, aí talvez você se pergunte então como eu escrevi este texto? Não sou eu, ou melhor não é meu corpo, nem meus dedos e sim os de uma bela menina de doze anos de idade a qual acabo de visitar inesperadamente.  Não me apossei dela por acaso. Ela é de uma família de videntes, um hospedeiro ideal para uma alma como a minha. Já fazia tempo que não sentia o calor de um corpo humano, e essa é a primeira que possuo, não sei bem como aconteceu, mas de repente ela estava ali rezando a algum de seus deuses obscuros, e em outro momento eu me senti atraído, puxado como um metal que encontra um imã e é forçado a se conectar a ele.

A força de atração foi algo inexplicável, e por fim aqui estou. O que vim fazer? Bem é muito simples. Eu vim contar a minha morte. E assim quem sabe alguém que ler essa história encontre uma solução para minha alma e após isso eu possa sair deste lugar mórbido e cruel. Ainda sinto lesmas subindo em minhas pernas, sangue-sugas grudados em meu corpo, mas não sinto dor, é pior que isso, uma sensação que se repete o tempo todo, como se eu estivesse definhando, eu sou um lixo podre vagando pelo inferno, ou por algo próximo a isto. Eu não mereci isto mas eu fui amaldiçoado. Como isto aconteceu? Como eu morri? Bem melhor contar logo antes que eu perca essa conexão. Os pais dela já estão procurando um modo de me tirar desse corpo. Agora estou no quarto dela, trancado, mas eles foram buscar ajuda.

  Pois bem, tudo aconteceu há dez anos. Estava dando uma volta pela rua do bairro, quando passei próximo a um beco e ouvi gritos. Aproximei-me e ouvi um pedido de socorro. Naquele momento pensei em ir embora, mas bem, eu não o fiz.

  Era o grito de uma mulher. Adentrei naquele beco escuro. Ela ainda gritava. Eu ia devagar para tentar surpreender quem quer que fosse. Catei um pedaço de cano de ferro no chão. Mais a frente já podia ver a silhueta dos dois. Ela era uma mulher bonita por sinal. Morena, cerca de 1,75 de altura, corpo sensual, estava com a cara na parede tentando se desvencilhar dele, que rasgava as roupas dela chamando-a de cadela. Dizia que ela iria o pagar, enquanto ela o pedia para soltá-la.

 - Me solte! Me solte seu canalha!

 - Você é minha, sua vadia!

  Me aproximei com o cano de ferro na mão e gritei com o cretino.

 - Largue-a imbecil! Quando ele olhou para mim, vi que ele era gordo e senti o odor. Parecia um gigante, deveria ser um mendigo, tinha os dentes estragados e um dos olhos era furado.

 - O que você faz aqui seu merdinha?

 - Solte ela! Já disse! Ele riu para mim, com aquela boca horrorosa e fétida.

 - Quer me pegar é seu babaca? Então vem me pegar. Ele disse jogando – a contra mim. Eu não tinha outra escolha e parti para cima dele. Mas algo estranho aconteceu. De repente alguém me acertou por trás e caí no chão. Minha cabeça sangrando, mas ainda estava consciente. Tentei me levantar, mas não conseguia. Senti algo sobre meu rosto, era o salto de uma sandália vermelha.

 - Coitadinho! Tão corajoso e tão burro! Ela ria de mim. Aquela maldita prostituta.

 - Vamos levá-lo. Pegue o saco preto. Eu estava meio tonto, sem forças. Eles então me colocaram dentro de um enorme saco de lixo e me jogaram no porta malas de um carro que estava na esquina do beco. Naquela hora senti que me espetaram algo, era uma agulha. Não tive forças para lutar. Ligaram o veículo e eu apenas o senti se movimentando. Por fim desmaiei.

  Acordei ainda dentro do saco preto e me preparava para jogar os pés contra aquele gordo e tentar fugir. Mas eu não estava mais no porta-malas, chutei o ar. O saco se rasgou e eu recuperado saí de dentro dele e assim estava livre ou era o que pensava.

  Quando me levantei ouvi o barulho de cachorros latindo, e pelo barulho deveriam ser muitos cachorros. Olhei ao meu redor e vi que estava numa espécie de arena no meio do nada. Mato por todo o lado, parecia ser uma fazenda.

  Estava dentro de um cercado de tela, uma lona de circo cobria todo o cercado, placas na tela escritas “Cerca eletrificada”, cadeiras esparramadas do lado de fora, pessoas sentadas, em sua maioria vestiam-se de terno e gravata. Eu estava ali, mas não estava sozinho, havia mais um homem, deveria ter 40 anos, era negro e forte, quase dois metros de altura. Estava tão assustado quanto eu.

 - O que é isso? - Ele perguntou.

 - Não sei! - De repente uma voz invadiu aquele lugar.

 - Boa noite Robert e Raul... Sei o quanto estão confusos, mas estão participando de algo inovador, uma competição, vocês devem lutar por suas vidas. Aquele que viver será livre. Sejam bem vindos ao circo “Arena sangrenta”, ninguém ainda saiu vivo daqui e vocês tem a chance de serem os primeiros.

 - Você está louco! - Disse o negro - E como sabe nossos nomes? - indagou.

 - É muito simples, estavam em suas carteiras de identidades.

 - Maldito! - Eu disse - Solte-nos seu cretino!

 - Vou soltar sim. Soltem os cães! - Disse a voz.

  De repente quatro pitbulls entraram na arena. Eles rosnavam feito loucos, Raul olhava assustado para os lados, nunca havia visto um homem daquele tamanho com tanto medo.

 - E agora o que fazemos? - Ele me perguntou.

 - Eu não sei! - Olhava ao meu redor procurando algo para me defender. Os cães avançaram. Vinham devagar rosnando e babando. Do lado de fora os cretinos pareciam torcer para que morrêssemos ali.

 Raul com medo saiu correndo.

 - Não faça isso! - Eu disse, mas era tarde demais. Os cães atacaram. Eles avançaram para cima dele de uma forma insana.Sorte que ele era muito rápido, entretanto logo acabaria o cercado.

  Pensei que estava a salvo por aquele momento, mas não, eu estava na mesma enrascada. Um dos cães veio em minha direção. Eu fui correr e caí. Ele pulou encima de mim. Foi quando por reflexo encontrei uma pedra no chão, grande o suficiente para mata-lo, e também o suficiente para que eu a segurasse em minha mão. Quando ele pulou na minha jugular eu o acertei na cabeça e ouvi um ganido, um ultimo ganido daquele animal feroz que caiu sem vida, sua cabeça ensangüentada. Catei outra pedra e parei mo meio da arena.

  Lá estava Raul, os cães o cercaram, ele só tinha a cerca elétrica ou as presas daqueles cães assassinos. O que ele podia fazer? O que eu podia fazer? Algo estúpido o suficiente é claro. Assobiei bem alto. Os cães se viraram para mim. Catei outra pedra. E assobiei de novo. Os animais foram ainda mais estúpidos que eu e avançaram em minha direção.

 - Droga! - Pensei. "Estou morto".

 Eles vinham tão rápido que a poeira se levantava por suas patas. Joguei uma das pedras tentando acertar algum deles. Mas foi em vão. O cão desviou tão rápido da pedra que meu medo só aumentou. O que fiz? Corri! Agora eu era o alvo.

 Foi quando vi um cão caindo rolando na terra, Raul havia o acertado na pata. Ele gania desesperado. Mas ainda restavam dois. Pensei em atirar minha pedra. Mas preferi não arriscar, ela já havia me salvo uma vez. Continuei a correr. Eles se aproximando. Raul logo atrás. Mas eles me queriam. Suas bocas salivavam por meu sangue. Por fim lá estava eu como Raul, preso entre os cães e aquela maldita cerca. Os cães diminuíram e me cercaram, um a esquerda e o outro a direita. Estavam á um metro de mim, eu a um passo da cerca. Agora eu morro...pensei. Um deles pulou em minha direção. Fechei meus olhos, e de repente aquele barulho, um ganido horrível, Raul havia chegado e enquanto o cachorro pulava ele o pegou pela pata traseira e o jogou contra a tela.

 - Quer cachorro quente? - Ele perguntou, e o outro cachorro avançou faminto em minha direção. Abri meus olhos e o acertei bem no olho. Ele caiu ganindo. Estava louco. Ainda assim queria me pegar. Rosnava feito um demônio. Dei outra pedrada em sua cabeça e seu sangue respingou em meu rosto. Ele estava morto.

 - Cachorro assado, você quer dizer - Disse a Raul.

 - Obrigado Robert! Você me salvou lá atrás.

 - Tudo bem! Estamos kits!

 - Parabéns! Estupendo realmente. Vamos ver como se saem agora.

 - O que poderia ser pior que isso? - Perguntei.

 - Melhor não perguntar! - Disse Raul. E ele tinha razão, lá estava a fera, era algo surreal. Um leão entrava na arena. Um enorme leão seguido de um homem. Um domador.

 - Que continue o show! - Disse a voz. Nunca tive tanto medo em minha vida. Que chance teríamos contra um leão? Pensei.

 - Que droga! - Disse Raul - Estamos mortos.

  Os olhos dos espectadores estavam acesos, loucos para ver sangue. Eles queriam nossa morte.

 - Maldito! O leão atacou. Suas garras ferozes partiram em nossa direção. O domador atrás dele.

 - Corra Raul! - E ele correu.

Mas como competir com um leão. Suas garras penetraram na pele da perna esquerda de Raul, o sangue escorrendo. Ele iria continuar até matá-lo, arrancar seu couro fora. Era minha vez. Joguei a pedra no animal. O domador tentou conte-lo mas agora ele me queria. Era questão de honra. Partiu pra cima de mim. O domador sempre se escondendo atrás dele. Um chicote em sua mão. Foi quando percebi. O leão só atacaria com suas ordens. Tínhamos que pegar o chicote. Gritei para Raul.

 - O domador! Ele obedece ao domador!

Eu estava frente a frente com o animal. Raul se levantou, sua perna sangrando, mas ele era muito forte e por sorte o leão apenas o acertara um vez. O domador, é claro ouviu o meu grito. Mas ele também não era imune ao leão. O leão temia aquele chicote. Quantas vezes ele deve ter apanhado para aprender a teme-lo. O domador virou-se para Raul o chicote em sua mão, Raul olhava para ele.

 - Não tente isso! - Raul ameaçou - Não gosto de me sentir um escravo.

O domador lançou o chicote sobre Raul, que por milagre ou talvez por mera sorte segurou o chicote em suas mãos.

 - Venha cá Indiana Jones! - Disse Raul que deu um puxão no chicote, trazendo consigo o domador. Ele o olhou nos olhos.

 - Eu disse pra que não fizesse isso! - E deu um soco no domador e o mesmo caiu desmaiado, tamanha a força de Raul. Eu nunca havia visto alguém cair daquela maneira somente com um soco.

 O leão agora estava parado a minha frente. Ele parecia um gato atrás de um rato, esperando meu movimento para que me atacasse. Eu estava inerte. Não sei se pelo medo ou por já ter visto diversas reportagens sobre animais selvagens, onde sempre alertavam para que não corresse, pois assim apenas daria o primeiro passo para que eles iniciassem uma caçada.

  Mas o leão não esperou por muito tempo. Mesmo eu quieto, talvez por eu ter o acertado a pedra, ele me atacou. Seus dentes cravaram em meu braço esquerdo. Eu senti uma dor indescritível. Não sei como não desmaiei naquela hora. Foi quando o chicote o acertou. Ele me largou imediatamente e se virou para Raul.  Raul estava com o chicote na mão. Imponente. Mancando. Sangrando. O animal olhou para sua perna. Ele deu outra chicotada. O leão abriu a boca em sua direção. Mas não arriscou. O medo do chicote era algo muito maior que sua sede de sangue.

 - Guie ele até a jaula! - Falei.

 - É claro! - Concordou, Raul.

 - E assim ele usou o chicote o guiando até a jaula. Haviam dois homens com metralhadoras na porta da jaula. Assim que o leão entrou. Os homens fecharam a jaula.

 - Excelente mais uma vez. Incrível mesmo! Agora me pergunto! Quanta força vocês ainda tem? Até quando vão lutar? Hora dos palhaços! - Disse aquela voz.

 - O quê? - Entraram dois palhaços um era baixo, e o outro era enorme, ainda mais alto que Raul, porém gordo. O menor carregava dois facões em sua mão enquanto o outro duas espadas daquelas de mágico.

 - Afinal que circo é este? - Disse Raul.

 - Não sei! Mas estes palhaços não estão aqui pra brincadeira.

  Meu braço ardia em dor. Raul sangrava e manquitolava. Não daria conta daquele gigante que entrara na arena. Eles vinham rindo em nossa direção. Girando espadas e facões, eram o prenuncio de nossa morte. O mais baixo veio em minha direção, Raul é claro ficou com o Gigante.

 - Maldição! Nunca pensei em morrer assim.

 O mais baixo correu até mim e me atacou com o facão. Mesmo sem forças lancei meu braço esquerdo a frente, ele acertou meus punhos e eu soltei um grito. Um enorme grito de dor. O facão estava tão amolado que atravessou minha mão. O sangue jorrava de meu braço. E num surto o ataquei.

  O gigante ia em direção a Raul que se protegia como podia com o chicote. Em um golpe certeiro o gigante partiu o chicote ao meio com uma de suas espadas. Ele avançou contra Raul.

 - Hora de morrer, negro!

  Em meu surto não me pergunte como, derrubei o menor no chão, um de seus facões caiu ao lado de minha mão que havia se separado de meu braço. Com minha mão direita o apertei o pescoço. Ele dando golpes em meu ombro e costas com o facão. De repente ele havia parado de respirar. Eu estava fora de mim. Foi quando o grito de Raul me despertou. Minhas costas cortadas, minha mão decepada, a adrenalina era tanta que naquele momento algo em meu cérebro bloqueou aquela dor. Peguei o facão com minha mão direita e parti pra cima do gigante que havia cravado a espada na barriga de Raul.

 - Maldito! Eu disse o apunhalando pelas costas. O facão atravessou suas costas e o sangue escorreu da boca. Ele ainda deu dois passos em minha direção. Foi aí que o reconheci, era o homem do beco. Por fim caiu de barriga no chão. Raul ainda respirava. Mas não resistiria por muito tempo.

 - Fique calmo amigo - Eu disse -  Mas de que adiantava? Já havíamos sobrevivido tempo demais. Foi quando a voz se manifestou novamente.

 - Parabéns Robert! Espetacular realmente. Ele entrava com uma capa vermelha de mágico. Era a coisa mais horrenda que eu já havia visto. Você venceu! Apenas o último ato e estará livre. Mate o Raul!

 - O que você é? - Eu perguntei.

 - Sou um mágico! Sou mágico... sou sombrio... sou um demônio -  ele gargalhava enquanto falava. Os dentes eram maiores que os do próprio leão, eram pontiagudos. Ele era magro, não havia pele, apenas carne e ossos, os órgãos pulsando em seu corpo, estranhamente. Orelhas estranhas e peludas, olhos vermelhos maquiavélicos, e em suas mãos viscosas haviam dedos compridos e unhas que mais pareciam-se a garras. Quando ele falava a saliva pastosa prendia-se a seus dentes, tinha uma vós rouca e grossa ao mesmo tempo, era assustadoramente nojento.

 - De onde você veio?

 - Eu vim do inferno, é claro. E é pra onde você vai se não mata-lo!

 - Eu? Mas por que?

 - Por que vai matar este homem, ou irá vagar pela eternidade pelo vale da morte. E não pense que isso é melhor que o inferno. Ele ria enquanto falava. Todo meu corpo doía, o sangue fugindo por minhas veias. O que eu fiz para merecer isso?

 - Vai mata-lo ou escolhe o outro caminho? Olhei ao redor e vi todas aquelas criaturas de terno e gravata. Demônios! Era um circo do inferno. Levantei-me. Arranquei o facão do corpo do gigante e olhei para Raul. Desculpe-me amigo. Adeus! E corri em direção ao monstro, ele abriu raivosamente a boca e duas enormes asas de morcego surgiram de trás de seus ombros,ele vinha de encontro a mim.

  Foi quando por um simples segundo pude o ver em sua forma humana, uma mulher, maldita prostituta. Ele cravou seus dentes em meu pescoço e arrancou parte de minha carne. Eu caí de joelhos no chão, sangue escorrendo pelo meu peito, ofegante, minha força se esvaindo. Ainda escutei Raul dizendo.

 - Robert, não!

  Naquele momento era como se uma maldição tomasse conta de mim. E assim estou pagando por ter matado um demônio. Foi a última coisa que vi. Ele soltando meu pescoço já sem forças, suas garras segurando o cabo do facão e puxando-o de sua barriga. O sangue jorrando... sangue podre, o mesmo daquele deserto. De repente toda aquela arena não existia e os demônios sumiram.

 Ele se desintegrou com uma explosão de sangue, as partículas pelo chão, carne podre esparramada. Raul se levantou, estava inexplicavelmente curado. Eu venci, mas ele foi quem viveu. Naquele momento fechei meus olhos e morri, tragado pela ira do demônio. Este é o fim de minha vida e o começo de minha morte.

 Agora tenho que sair deste corpo pois há um homem aqui, está rezando, evocando espíritos que ele desconhece, monstros que podem o perseguir, que podem o matar, demônios começaram a chegar... Meu Deus não consigo sair dela... O que faço? E o pior os demônios agora se apossaram dele e também dos pais dela. Malditos! Eles me querem! São filhos dele! Querem vingança!

 Mas eu os matarei! Os matarei um a um!

Fim!

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