sexta-feira, 19 de julho de 2013

O Espírito de Leda

 


  É tão obvio o medo que me governa. Ele rege meu corpo como uma orquestra diabólica, um ritmo nostálgico que me faz temer tudo a minha volta.
 Dia desses fui ao cemitério por pura necessidade. Não gosto de cemitérios, mas o desespero me forçou.
 Não andava “bem das pernas”, como dizem dos que estão quebrados financeiramente... Perdi meu emprego e atrasei prestações do carro, o banco me tomou e eu fiquei cada vez mais ferrado.
 A desgraça parecia não ter fim, fui me perdendo cada vez mais, endividando e trabalhando em um emprego de merda que não pagava nem a metade que o anterior.
 Pirei, pois o desespero tem quase o mesmo efeito que o medo. Mal sabia eu que em um curto espaço de tempo, teria que lidar com os dois...

 Uma vez minha tia-avó me contou que a maneira mais fácil de conseguir o que quer é pedindo aos espíritos. Sempre zombei das simpatias daquela velha, mas eu estava tão ferrado e fodido que me agarraria a qualquer coisa para me reerguer.
 Pois bem, fui ter com a mulher um dedo de prosa. Ela riu do meu desespero, mas eu estava sendo tão humilhado pela vida que um toquezinho a mais de deboche nada seria.
 A olhei com seriedade. Ela entendeu que minha angustia falava mais alto que minha falta de fé em suas crenças. Arrancou da gaveta uma vela virgem e me disse o que fazer:
— Pegue esta vela e vá  ao cemitério pequeno. Escolha a foto de um tumulo cujo morto lhe soe “amigável”. Seu santo tem que bater com o dele logo de cara, pois vocês dois selaram um pacto, uma troca de favores que beneficiará os dois.
— Pacto? – perguntei espantado, pois a palavra “pacto” me soava a coisa muito seria.
— Sim, pacto. – respondeu ela calma – Saiba que os mortos vagam errantes na escuridão e assim será até o dia em que o céu se abrir e trazer a luz no dia do juízo final. Os mortos em fé tem tanto anseio por uma chama que se você fizer o que eu lhe disser, será beneficiado por este anseio.
 Eu estava ouvindo com muita atenção. Peguei a vela virgem enquanto ela contava:
— Depois de escolher a cova, ajoelhe-se diante dela e acenda a vela, a ofertando ao morto. Ainda ajoelhado, diga a ele o que deseja, o que realmente almeja. Em seguida, apague a vela e a arranque do tumulo. A coloque no bolso e diga ao morto que só vai voltar a acendê-la, depois que seu pedido for alcançado. Vire as costas e vá embora sem olhar pra atrás. Espere a graça ser alcançada e quando ela for, volte ao cemitério, ajoelhe-se diante da mesma cova, acenda a vela, agradeça e vá embora como da primeira vez, sem olhar para trás.
 Parecia tudo muito fácil. Me levantei, dei um beijo na testa de minha velha tia-avó e segui, rumo ao cemitério.
 Deus... Como pude chegar a este ponto? Os vivos não mais me traziam conforto e pediria a um dos mortos! Eu me vi obrigado a fazer o que a velha me propôs.

 Logo que cheguei aos portões vi um cortejo fúnebre. Me agarrei a imaginar que comigo um dia será a mesma coisa, pois de modos que criei raiz nessa cidade pequena, fatalmente serei enterrado neste cemitério de merda.
 Vaguei de tumulo em tumulo a procura de um morto que me chama-se atenção... Entendi que os dizeres de minha tia-avó faziam sentido, pois já em vida tem pessoas que não vamos com a cara logo que a vemos pela primeira vez.
 Parei diante de um tumulo abandonado. O que me chamou atenção foi a foto. Uma bela e jovem moça. Bonita, muito bonita, do tipo que se estivesse viva, eu certamente pediria em namoro. Claro que se estivesse viva seria bem mais velha que eu, pois o tumulo datava que a coitada foi-se há mais de trinta anos atrás...
 Leda Oliveira Prado. Este era o nome da morta que me afeiçoei. Não seria nada mal formar acordo com aquela formosura...
 Me ajoelhei diante do tumulo. Acendi a vela e fiz tal qual aprendi:
— Leda, quero que me ajude. Quero que me ajude a arrumar um emprego digno, de modos que assim consiga eu ajustar minha vida!
 Mais que depressa arranquei a vela do tumulo e assoprei. Guardei novamente no bolso e terminei dizendo:
— Se minha graça for alcançada, volto aqui e deixo a vela acesa pra você. Prometo!

Fui para casa e tive uma surpresa. É tão estranho como em um único gesto a mágica acontece... Já do portão ouvi o telefone tocar. Corri para atender.
Era o meu antigo chefe, desesperado, chorando em arrependimento, me pedindo para voltar. Se as coisas estavam ruins para mim, para ele então nem se fala... Sem minha mão de obra, o negócio começou a travar, e ele, orgulhoso que era, se viu obrigado a ceder e me chamar de volta:
— Não gosto de ter que te dizer isto mais eu preciso de você. – me disse quase implorando – Preciso que volte de imediato ao seu setor. Lhe proponho que seja supervisor, te darei um salário melhor e mais benefícios.
 Eu sorri. Não pela façanha de Leda, pois na hora, entendi que aquele telefonema e aquela coisa fantástica, haviam sido frutos de um bom histórico que deixei naquela empresa. Não dei os créditos a morta e achei mais do que justo. Mal sabia eu que ela ainda assim me cobraria...
 Era tão simples... Eu só teria que voltar ao cemitério e reacender a maldita vela! Iria embora sem olhar para trás, poderia até assoviar no meio do caminho, tudo para agradecer mais uma graça alcançada... Maldita tolice que me governa acompanhada do medo! Eu não fui, Leda ficou sem sua vela e eu desfrutei do bom e do melhor, vivendo numa vida perfeita e doce...
Chefe do setor, ótimo salário, carro novo e quitado... Os negócios nunca estiveram tão bem, a gratidão do meu chefe o conduzia a me cobrir de mimos e prosperidade.

 Uma noite a febre me atacou. Tomei remédios fortes e o sono ainda assim não veio. Um mal estar apedrejava meu estomago e me peguei a pensar em Leda. Leda era bela e merecia sua vela, porem, não iria eu até o cemitério para acendê-la.
 Divida. Era este sentimento que infestava minha cabeça. Embora não atribuísse os créditos do retorno ao antigo emprego á Leda, me sentia drasticamente endividando.
Mijando no centro da privada, decidi que iria sim acender a vela para Leda.
 Abri a gaveta e tirei de lá a vela. Caminhei até um canto surdo da casa e a acendi  em intenção a alma da morta. A vela se apagou como se alguém tivesse assoprado.
 Pronto, caguei. Caguei de medo quando no lugar abafado a vela se apagou num sopro! Para me provar que não estava louco, acendi a vela novamente e ouvi em alto e bom som outro sopro apagar a chama.
 A febre passou. O coração disparou em ritmo de ataque cardíaco e o medo me cobriu de um absurdo desespero!
 Eu gritei feito uma mulherzinha quando Leda soprou também meu ouvido... Isso mesmo, a desgraçada soprou meu ouvido! O sopro frio congelou minha alma e sai catando cavaca, gritando em minha casa vazia, clamando por misericórdia!
 Que misericórdia que nada... Leda estava decidida a me infernizar!
 As panelas da cozinha começaram a bater e quando tomei coragem para ir até lá, testemunhei os cristais e porcelanas se quebrarem, enquanto as portas dos armários abriam e se fechavam, como que se a ira de Leda cravasse em minha alma. Levei as mãos à cabeça e clamei a Deus para tudo aquilo se calar. Não se calaria, Leda estava determinada a se vingar, e eu era apenas um ratinho acuado, a mercê de toda sua raiva.

 Quando o dia finalmente surgiu eu estava estagnado, com os olhos esbugalhados, totalmente tremulo e em choque.
 Decidido, coloquei a vela no bolso e fui até o cemitério, pagar a maldita divida.
 Me ajoelhei diante do tumulo de Leda, arranquei a vela do bolso, ofertei a ela e acendi.
 O sopro. O maldito sopro apagou mais uma vez a vela. Era fato que Leda tomou por pessoal, e eu acuado, chorei feito uma criança desmamada... Perguntei a ela o que diabos queria de mim.
 Senti um estalo no rosto e minha face ardeu. Um tapa bem no meio da minha cara... O extraordinário agora era parte de minha vida, submisso a maldade de Leda, me levantei e acendi novamente a bendita vela, implorando para não se apagar de novo:
— Pelo amor de Deus Leda! Aceite!
 Virei às costas e dei dois paços pra frente. O desespero me governou, e embora minha tia-avó me advertisse a não olhar para traz, olhei.
 Eu a vi, esquelética e seca. Estava com as costas em chamas, como se o inferno fizesse parte dela. Diabólica, me deu um leve sorriso e apagou a vela com um sopro, me condenando, me amaldiçoando...
 Há, esse desespero que me governa... Corri para a casa da minha tia-avó, tentando achar uma solução para meu caos particular.
 A velha infeliz riu novamente de minha particular tragédia. Pitando o cachimbo de cedro, debochou de minha condição e assim falou:
— Não existe apenas um jeito de se resolver isto, mas sim dois. Escolha o que mais lhe convier. Nos dois, você simplesmente terá que desenterrar o corpo da moça.
 Eu tentando me acalmar, ouvi a velha dizer:
— Bem, em um deles, você terá que desterra-la e polir seus ossos um a um. Terá que limpar seu caixão e montar-lhe um novo funeral. Terá que convidar sete presentes e um padre. E diante do novo funeral, rezarão uma missa em memória a ela. Carregara sozinho o caixão nas costas de volta até a cova e o enterrará. Ela descansará em paz e terá a alma liberta.
 Não era nada simples. A velha bem sabia disso e riu, quando perguntei:
— E qual o outro jeito?
 Pitou o cachimbo e me contou o outro jeito. Jeito este bem mais fácil que o primeiro...

 Minha tia-avó me disse que se eu não fosse abençoar o espírito de Leda, teria que amaldiçoa-lo. Sim, teria que fazer Leda ter medo de mim, muito mais do que eu tinha dela:
— Ela esta sendo cruel com você, convém que a cale de vez em sua ira! – Foi o que minha tia-avó me instruiu a fazer.
 E lá estava eu novamente, mas desta vez, na boca da noite no cemitério pequeno. Nada mais me assustava. Determinado, quebrei o tumulo de Leda e arranquei a terra que cobria seu caixão. Por Deus, eu a ouvi gritar em agonia. Gritava desesperada, clamando em susurros para eu não invadir seu descanso.
 Já estive fodido. Quem me disser que estar falido financeiramente não é meio paço para o inferno, não sabe o que é desgraça! E se dizem também que quem ta fodido, fodido e meio fica, faria eu valer esta frase! Dane-se o medo que me governa! Dane-se a maldita e bela Leda! Dane-se tudo! Se ela queria a  vela, a teria, em um lugar que certamente não conseguiria assoprar!
 Desenterrei a desgraçada e abri a tampa podre do caixão. Contemplei a ossada da infeliz. Em ira, segui os conselhos da velha. A risca desta vez.
 Dei uma martelada bem no centro do crânio do esqueleto de Leda. O martelo afundou e eu sorrindo, o puxei de volta.  Cravei a vela neste buraco, a acendi e assim falei:
— Eu lhe ofereço esta vela, Leda. Que ela queime junto com você na maldição do inferno!
 É fácil assoprar acima da própria testa, mas ela não fez. Sentei-me diante do caixão e contemplei a vela queimar até se apagar, vendo minha divida enfim paga.
 E quando a vela finalmente se acabou, enterrei os restos mortais de Leda. Vi a terra cobrir o caixão podre e me senti aliviado. Fui embora, e antes de sair do cemitério pequeno, ousei olhar para trás.
 Eu vi o espírito de Leda arder sobre os destroços de seu tumulo. Vi também a escuridão lhe cobrir e sorri contente.
 Hoje vivo a vida que pedi a Leda. Vez ou outra, quando o tédio bate, vou ao cemitério e acendo uma vela em intenção a sua alma. Se quer mesmo saber, acho que Leda me perdoou. Sou o único que clama em intenção de sua alma suja. Ounico que de vez em quando lhe tira da dor das trevas...

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