sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Arterror episódio 4- Livro das trevas

 A tarde fria me congelou no jardim florido de minha casa confortável. Entrei, acendi a lareira e me sentei na velha cadeira, herança de meu finado pai, assim como tudo que eu possuía até ali.
 Balancei uma, duas, três vezes... A tontura me pegou e decidi parar, nunca havia conseguido mais que aquilo, me incomodava pensar que meu velho pai passava toda a tarde balançando e lendo um velho livro ao mesmo tempo, sem mostrar enjôo ou tontura. Era um dom tolo que eu queria possuir.
 Levantei-me ainda sobre o efeito do frio, fui até a estante antiga e me estiquei até o velho livro que ele lia em vida:
 

“LIVRO NEGRO”

 Desde pequeno, aquele livro grande e grosso me dava medo. Eu via meu pai sentado aos pés da cadeira de balanço, lendo encorajado, os lábios grossos transparecendo seu fino bigode.
 Eu o olhava como um aluno enxerga seu mestre, e a idéia de ler aquele livro imenso, me causava náusea e um espanto avassalador. Algo que eu nunca pude entender...
 Ele devorava o livro enquanto eu tentava ler ele o lendo... Foi aí que meu pai levantou os óculos e disse algo que me perseguiria para todo o sempre:
 ― Algum dia, quando deixar de ser um menino tolo e vagar pelo mundo com a cabeça cheia de problemas de homem, lerá este livro e ficará tão aliviado quanto eu.
 Esta frase me cobriu de menino tolo a adulto com problemas de homem. Os problemas de homem, fatalmente se converteram em desespero, e após enterrar o corpo de meu velho, me pus a ler o livro.
 Na vigésima terceira pagina, vi uma foto fina de um homem que eu tão bem conhecia. Era meu finado avô, pai de meu pai. Olhei curioso a feição da fotografia... Era como se estivesse me vendo em um espelho que refletia em preto e branco. Foi então que reparei nas letras grossas, escritas atrás da fotografia:

“Algum dia, quando deixar de ser um menino tolo e vagar pelo mundo com a cabeça cheia de problemas de homem, lerá este livro e ficara tão aliviado quanto eu.”

 Tremi de dar pena. Encarei a foto estarrecido e li aquela frase mais vezes que ao próprio livro. Era exatamente a frase que meu pai me dissera... Custou para eu deixar a foto de lado e continuar com minha leitura, nada ali me seduzia nada ali me entrava na cabeça e me convencia do prometido, do alivio anunciado.
 Foi então que vi aquela significativa passagem, as letras feitas a punho, bem colocadas em ritmo alucinante, que fizeram meus olhos viciados se deliciaram com cada palavra administrada e assimilada em meu cérebro borbulhante em êxtase e emoção... Era um relato de meu bisavô:

“Cruzei a fronteira do medo, alado em meu cavalo selvagem que só respondia a mim. Outrora, este mesmo cavalo negro de cristas ríspidas e olhar insano matou a coices e em quedas bruscas seus últimos seis cavaleiros. De fato, era uma criatura amaldiçoada.
 Apeei do animal e caminhei ainda sobre o efeito do medo em direção ao quarto, onde minha esposa paria nosso quinto filho. O menino saiu forte e saudável, lhe banhei com água morna e o entreguei ao padre, que o batizou e o tornou um anjo. Minha esposa sorriu e faleceu, dando a mim a criança e a viúves prematura.
Chorei pai de cinco filhos e só... A sepultei no fundo de meu quintal, em um caixão envernizado, debaixo do grande pé de figueira, trajando seu mais belo vestido, o que lhe dei no nosso aniversario de casamento. Enterrei com ela minha vida de homem puro e comum, galopando sombrio pelo sertão a fora, apeado em meu cavalo selvagem, única testemunha do meu pacto com o medo, da minha vontade de violar a morte na pele de homem vivente. Para minha desgraça eterna, não me conformei em perder o grande amor da minha vida.
 Alado em meu animal impuro, praguejei contra o tempo e a vida, ele me entendeu, galopou por entre caminhos que eu nem conhecia em minha vida térrea... Eram corredores frios e estreitos, em meio a um mar de lama e espinhos selvagens, que lhe rasgavam a carne e atravessavam seus ossos.
 Ele era fiel. Ignorou a dor, estava disposto a me levar aonde eu queria ir; o vale da sombra da morte.
 Eu a vi em meio ao monte de corpos, agonizando em chamas e desespero... Mas a saudade era ainda maior que meu medo... Gritei pelo seu nome:
  ― Madalene!
 Ela em meio ao mar de corpos revirou os olhos e me encarou, com a cesárea da barriga aberta, onde um verme com ferrões na ponta da calda tentava entrar, á cutucando com suas patas pontiagudas e finas. Ela o jogou de lado e veio até mim, nua, chorando em desespero no mar de seu inferno. 
 Montou atrás de mim e o cavalo saiu veloz, em busca da saída... Foi aí que o vi, o livro...
 Puxei as rédeas e meu animal obediente parou. Desci e o alcancei, com as mãos tremulas. O Diabo surgiu em meio às labaredas que estalavam no ar e me sorriu, indagando:
 ― Não pode levar os dois!
 Olhei para minha esposa na sela de meu cavalo, encarei o Diabo e bradei:
 ― Deixo minha alma.
 Ele sorriu, como se já fosse dono dela, o encarei com os olhos avermelhados, lhe entreguei o livro e montei no cavalo, de volta pra casa junto de minha amada.
 Chegamos a nosso lar... As crianças nos aguardavam no terreiro. Abraçaram chorosas a mãe dada como morta. 
 Meu filho do meio me esticou um embrulho, sorriu e disse:
 ― Papai, um homem de chifre curto levou o pequeno, disse que em troca dele lhe daria isto.
 Corri para dentro da casa e não vi meu menino, o que causou a morte prematura de minha esposa. De certa forma me senti aliviado, e ela também... É uma vergonha aceitar, mas eu o odiava por arrancar dela a vida... Abri o embrulho e me deparei com ele, o Livro Negro.
 Embora respirando o ar dos vivos, minha esposa era vazia e de aparência fúnebre. Nunca mais ousei desenterrar o caixão aos pés da figueira, no fundo de meu quintal, embora sempre estivesse com certa curiosidade: Se eu á tinha recolhido do inferno, o que teria acontecido ao seu cadáver sepultado na terra?
 Era este, um mistério que jamais ousei desvendar. Eu tinha Madalene, e nada mais me importava...
 Iniciei a leitura do livro, nada de especial, apenas palavras descompassadas, coisas que nunca saberei o verdadeiro sentido ou vontade de expressão do autor... Até encontrar as paginas em branco, paginas estas, preenchidas por mim, aqui e agora, contando como o encontrei e o tornei parte de minha linhagem. Hoje eu escrevo, quando meu corpo deixar esta terra, certamente meus filhos herdaram este livro, presente do Diabo, e assim como eu, escreveram nele suas místicas e carnais memórias. ”

 Estava encantado com o testemunho de meu bisavô.
Madalene. Este era o nome dela, de minha finada bisavó. Ousei voltar os olhos para o fundo de meu quintal, a figueira ainda estava lá... Minha bisavó Madalene viveu suficiente para eu conhecê-la. Viveu muito mais que meu bisavô, o qual não conheci. 
 Lembro-me que fui ao seu segundo funeral, no velho cemitério da capital. Vi seu corpo ser sepultado e coberto por grossas pedras de mármore... Mas e quanto ao caixão envernizado aos pés da figueira? O que teria sido do caixão que meu bisavô e possivelmente meu avô e meu pai não ousaram desenterrar?
 Continuei minha leitura instigante, aonde lia cada passagem destinada à vida dos filhos de meu bisavô, como se aquele livro fosse uma bíblia de minha família. De fato, nada de especial, senão por um ou outro detalhe... Até chegar à vida de meu avô Thomas, o menino do meio, o que aceitou o embrulho que continha o livro das mãos do próprio Diabo, entregando em troca seu irmão recém nascido. O que li me chocou ainda mais:

“Quando ele entrou sem ser convidado em uma casa com três crianças e um bebê, me sorrindo escabroso e peçonhento, não ousei enfrentá-lo. Na ausência de meu pai, o próprio Diabo entrou em meu lar e me deu um embrulho. Olhou para o berço de bambu, alisou meu rosto e pegou meu irmão recém-nascido, incomodamente, a causa da morte de minha mãezinha, Madalene:
 ― Seu pai não se importará – Me disse sorrindo. Não se importou.
 Uma coisa que nunca contei ao meu pai: O Diabo devorou ali, naquele instante, o meu irmão. 
 Acho que não sabia que o bebê era batizado... Ele engoliu em uma única bocada aquele recém-nascido... Vi seus olhos arderem e fui testemunha de todo seu sofrimento... O vi vomitar meu irmão moído por seus dentes... Ele recuperou o fôlego, olhou a cena de seu grande pecado e como castigo divino, antes de sumir de minha vista, o vi limpar o chão de minha casa, enquanto praguejava insano, pois sabia que seria punido por ter devorado um anjo.
 Depois de meu irmão, nenhum membro de minha família havia sido batizado.
 Meu pai se encantou pelo livro de tal forma que ignorou até mesmo o amor que sentia por minha mãe e pelo seu cavalo, que ainda ferido e desprezado pela ingratidão do dono, fugiu de nossas vidas, tal qual o Diabo.
 Minha mãe se dedicou a outras coisas, a escrita e a costura. Encontrava tempo para escrever suas memórias em um caderno. Era um caderno enorme, com capa rosa, feita de pano grosso, bordado seu nome em vermelho rubro:
 
MADALENE

 Eu um dia ousei ler, memórias tristes de uma mulher solitária, abandonada pelo marido que a buscou no vale da sombra da morte... Mas o que mais me chamou a atenção em seu caderno de recordações e tristezas foi ela ter escrito que o corte da cesárea nunca havia cicatrizado. Eu a observava em seus banhos, tentativa de ver o tal corte, e um dia o vi, sangrando. Em momento algum tive piedade dela, ao contrario disto, mostrei curiosidade. Curiosidade esta que ao longo de minha vida, me alimentou a ser cirurgião.
 Como profissional, consegui reconhecimentos e méritos, no entanto, jamais consegui fechar aquele corte de minha mãe.
Quando meu pai se foi, tentei enterrar com ele aquele livro que ele tanto lia. Desisti, e em um dado momento, comecei a ler também... Só então tive profundo conhecimento com relação ao seu fascínio pela obra.
 Casei-me com uma professora, tive um único filho e lhe ensinei sobre a importância do livro em nossa linhagem. Teodoro, como qualquer menino era desatento e não dava atenção alguma ao livro. Tirei uma foto de mim e escrevi a mensagem a qual queria que ecoasse por sua mente vazia, no dado momento em que eu não mais fizesse presente:

“Algum dia, quando deixar de ser um menino tolo e vagar pelo mundo com a cabeça cheia de problemas de homem, leras este livro e ficaras tão aliviado quanto eu.”

 Teodoro cresceu, a foto se empoeirou junto com este velho livro. Ele se formou cedo e teve também um filho cedo.
Minha santa mãe, Madalene, morreu de velhice. Olhei a face de meu neto menino, olhando choroso a face morta da avó.
Deliciei-me com seu sofrimento, mas também me entristeci por minha mãe, que carregou por décadas a fio, uma cirurgia que jamais cicatrizava. Olhei meu filho já homem feito pegar o livro com curiosidade e iniciar sua leitura.
Fiquei feliz, mas eu ainda precisava fazer uma coisa. Fui com a pá até o pé da figueira e desenterrei o caixão envernizado, a qual meu pai havia enterrado pela primeira vez o corpo de minha mãe. O que vi lá fez meu coração bater mais forte... Mas continuei com meu plano, enterrei-o de volta, antes disto, coloquei junto daquele segredo a única coisa a qual ela havia se dedicado de verdade.”

 Meu Avô Thomas morreu com meia idade. Jovial e belo, deixando a casa que herdou a seu filho Teodoro, meu pai.
 Ele veio a óbito três meses depois que enterrou novamente o caixão envernizado de minha bisavó. Seus amigos médicos disseram que seu coração explodiu misteriosamente. Meu pai o honrou como grande homem era professor do estado e sempre fazia questão de contar as historias de nossos antepassados a seus alunos adolescentes. Obviamente eles não acreditaram, então, certa vez ele levou o livro e o leu em voz alta. Os outros professores se encantaram com as sabias palavras do livro.
 Perguntaram aonde poderiam conseguir uma copia, ele sorriu, dizendo ser uma tiragem única, destinada apenas para o deleite de sua linhagem. Li então, o depoimento de meu pai:

“Eu sempre lia o livro as escondidas. Não queria que meu pai soubesse de minha dedicação por aquele livro velho e grotesco, queria provocá-lo e incomodá-lo com meu desinteresse. Ele se incomodava. Tinha pressa pelo meu interesse, alias, tinha pressa em tudo, até em morrer. Eu o vi morrer, este é meu segredo sujo... Vi quando o próprio Diabo veio montado no cavalo selvagem que pertencia a meu velho avô. Ele desceu daquele animal cheio de cicatrizes e novos cortes, feitos certamente ao atravessar novamente o monte de espinhos que ficava no meio do caminho do Vale da Sombra da Morte. Meu pai não mostrou desespero, o Diabo o encarou serio e perguntou insano:
 ― Maldito homem de uma descendência imunda! Porque desenterrou o caixão?
 Meu pai sorriu e cuspiu em sua face. O Diabo fez cara de espanto, se limpou e o ouviu dizer:
 ― Verme! Achou que seu deslize ficaria longe das vistas do homem para sempre?
 O Diabo deu as costas, montou em seu cavalo. Os olhos de meu pai brilharam e ele feliz por ter confrontado o próprio Diabo... Segurou nas rédeas do animal:
 ― Este cavalo é de propriedade de meu avô!
 Subitamente, o animal o repudiou e deu-lhe um coice fatal no peito. O Diabo sorriu e saiu a galopes, mostrando eterna satisfação.
 Socorri meu pai, mas este já estava sem vida. Seu coração fatalmente explodiu, devido às patas mortais do animal, que enfim, matou seu sétimo homem.
 Tentei entender o porquê de tudo aquilo, das respostas que eu nunca encontraria, da coragem absurda de meu pai... Então me dediquei ainda mais ao livro.
 Percebi, olhando meu pequeno filho que o meu vicio, assim como o de meu avô e de meu pai, não era apenas em ler o livro, e sim querer o interesse de nossas crianças. Interesse que tardava a vir às vezes... Olhei para a foto do meu pai, olhei para meu filho que me encarava e disse-lhe serio o mesmo recado que meu pai me deixou atrás daquela foto:
 ― Algum dia, quando deixar de ser um menino tolo e vagar pelo mundo com a cabeça cheia de problemas de homem, lera este livro e ficaras tão aliviado quanto eu.
 Percebi então que plantei ali um incomodo, prometi algo que jamais poderia ser cumprido, pois a angustia perseguia a todos que liam o maldito... Eu certamente o condenei a fatalmente ler o livro em algum dia de sua vida, lhe apresentando um conforto que não poderia curar seu coração de homem com problemas. Acho que este foi meu maior pecado, seduzi-lo a uma leitura inapropriada, a mesma leitura que condenou meus antepassados.”

 Quando meu pai morreu, minha mãe se casou de novo e foi morar na capital, junto de seu novo marido. Eu fiquei só, naquela casa que pertenceu a toda minha linhagem...    
 Jamais pensei em me casar, sou ainda muito jovem e embora cobice mulheres, não tenho nem o dom e nem a paciência para conquistá-las. Mas agora, lendo tal livro que condenou homens que viveram naquela casa antes de mim, decidi que faria ao meu modo... Sem filhos para enfrentarem tal maldição.
 Quando o frio bateu impiedoso, trouxe com ele a solidão, foi neste momento que decidi ler o livro. Parei estarrecido, após o depoimento de meu pai. Ainda restavam duas páginas para seu final, estas estavam em branco... Eu percebi ali que eu teria que concluí-lo. Mas o que teria eu a dizer? O que poderia eu por em linhas, se nada tinha de interessante? Então em meu instinto de justiça e verdade, ousei decifrar os enigmas de toda aquela situação sombria... No limite da decadência e da desobediência... No interesse justo de finalizar tal obra com desfecho plausível, enxerguei o pé da figueira, e para desespero do Diabo, decidi desenterrar o caixão da minha bisavó, Madalene. O que aconteceu então passo a narrar neste final de livro, que agora vocês lêem junto a mim:

 “Arranquei a velha pá da parede, lugar aonde ela nunca deveria ter saído... Fui ao quintal. Debaixo do pé de figueira, cavei como homem sábio e decidido. Acho que meu pai sentiria orgulho de mim... Um vento frio bateu a ponto de congelar minha espinha.
Não parei, continuei a arrancar a terra... Uma revoada de insetos me cercou por ar e terra. Ignorei seus ferrões, e mesmo com o corpo com partículas de seus incomodo veneno, prezei em ir até o fim. Eu fui. A pá finalmente encostou-se à madeira dura e seca do caixão envernizado.
 Eu com estrema dificuldade, o arrastei para a superfície e o limpei. Sorri insano e o abri... 
 Um pano cobria seu conteúdo... Estaria abaixo dele o cadáver de minha bisa Madalene, em seu mais bonito vestido. Por cima do pano, estava o que meu avô considerou ser o que minha velha bisavó Madalene havia se dedicado depois que meu bisavô passou a ignorá-la com olhos de marido: seu velho diário com capa de pano rosa.
 O deixei de lado e continuei com minha descoberta, pensando que embaixo daquele pano, jazia misteriosamente o corpo da primeira morte de Madalene. Logicamente, estava errado... Era o pequeno bebê. O bebê que o Diabo havia devorado e vomitado, ao descobrir que era batizado. O recém-nascido ainda estava coberto com a baba do traiçoeiro, tinha partes do corpo dilaceradas e ainda sangrava...
Desesperei-me, toquei nele e no cúmulo do absurdo, senti que ele ainda respirava!
 Como poderia aquilo estar acontecendo? Como um bebê conseguiu sobreviver sepultado por décadas?
 Eu só conseguia perceber que aquele era um segredo que o Diabo queria manter enterrado, bem escondido em um caixão apropriado, dedicado a alguém a qual a vida foi arrancada, dedicada ao próprio, pequeno e inocente algoz...
 Eu não quis entender tudo aquilo... Corri para dentro de minha casa, em busca de uma toalha para enrolar meu pequeno tio-avô. 
 Quando me voltei ao terreiro com a toalha eu o vi, montado em seu cavalo dilacerado... Fungava e me encarava raivoso cheio de ódio. Era o próprio Diabo, que me apontou o dedo e praguejou insano:
 ― Maldito homem de uma descendência imunda! – O mesmo que disse a meu pai – Sabes que nunca deveria ter desenterrado isto!
 Eu, mesmo conhecendo todas as consequências, agi tal qual meu avô faria e fez! Não mostrei medo. Nada tinha a perder... Fui em direção ao caixão, aonde o Diabo velava o caminho. O ignorei e avancei, cheguei até a cova, arranquei o bebê e o beijei, ignorando seus ferimentos sujos e mal cheirosos. O levantei ao alto e o Diabo recuou. Uma luz esplendorosa bateu sobre a criança, o Diabo começou a derreter, junto com seu cavalo. O vi gritar em desespero e condenar a si mesmo, até virar sangue pútrido e ser sugado pela terra.
Limpei aquele bebê e zelei dele, tratando-o como meu filho.”

 Depois que cuidei do pequeno bebê, de seus escabrosos cortes e cicatrizes, me voltei ao caixão. Encarei o “LIVRO NEGRO” já pronto e o joguei dentro do caixão, junto do diário de minha bisavó. O enterrei... Finalmente aquela maldição estava selada para todo o sempre, pois revelei o segredo de minha geração e os devolvi ao sepulcro.
Sentei-me na velha cadeira de meu pai. Balancei uma, duas, três vezes... A tontura me pegou, como sempre. Tentei me levantar da cadeira, mas me vi preso... Ela sozinha, balançou pela quarta vez, e a tontura me apertou. A cadeira agora balançava rapidamente e vomitei em minha roupas. Olhei estarrecido, o Diabo sair de dentro de minha casa, totalmente descarnado, com o bebê em seus braços:
 ― Ele é meu! – Me indagou em tom feroz.
 Eu não pude me defender, estava enjoado e tonto. Finalmente a cadeira se quebrou. Arrastei-me pelo chão, tentando me recuperar daquele pesadelo sujo. Vi o diabo montar em seu cavalo também descarnado e mandá-lo seguir. O cavalo me olhou e não obedeceu. O Diabo se sentiu incomodado, e com o bebê nos braços, praguejou contra o animal, que não estava disposto a obedecê-lo.
 Ele desceu com o bebê. Vi que se sentia pesado e suava sangue pelo rosto descarnado. Olhou-me aflito. Usava uma força descomunal para se movimentar. Não resistiu e se ajoelhou, implorando que eu tirasse a criança de seus braços.
 Eu já um pouco recuperado, me aproximei dele e tirei o menino limpo de suas mãos imundas. O traiçoeiro ainda ajoelhado aos meus pés e livre do incômodo, tocou em minhas pernas e sorriu desgraçadamente, como que se ousasse de um feito glorioso. Enfim, levantou-se recuperando o fôlego. Com dificuldade montou no cavalo, este desta vez o obedeceu e os dois sumiram de nossas vistas por todo o sempre.


 O menino cresceu saudável junto a mim. Percebi sua curiosidade com relação ao pé de figueira, mas a ignorei. Não achei estranho, pois ele havia permanecido embaixo dele por décadas.
 Uma doença dominou minhas pernas, aonde o Diabo havia tocado com as mãos. Só então entendi toda sua satisfação - ele me condenou. O Maldito astuto ousou e me condenou.
Era gangrena. Elas foram amputadas, e aquele menino de doze anos cuidava de mim, como eu um dia cuidei dele.
 Certa vez, se aproximou de mim com as mãos cheias de terra e com as unhas sangrando.
 Quando perguntei o porquê daquilo, ele escondeu as mãos atrás das costas e me disse de cabeça baixa:
 ― Me desculpe papai.
 Olhei com dificuldade a janela, e vi debaixo da figueira o caixão desenterrado. Suei em desespero, ele saiu e voltou minutos depois, com as mãos limpas e com o livro debaixo dos braços. Aproximou-se de mim, e leu as palavras descompassadas em voz baixa. Eu suei insano, pedia baixo para ele parar, mas ele não obedecia. A voz sumiu de mim, senti feridas cobrirem minha língua e me calei dentro de minha insignificância. Aleijado e acamado fiquei condenado a ouvi-lo ler ao meu lado, todos os dias, um grande pedaço do livro, até concluí-lo, no ultimo suspiro de meu tormento.

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