segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Perdas



Fiquei magoado, não por me teres mentido, mas por não poder voltar a acreditar-te.
Friedrich Nietzsche
              Acho que nascemos com algumas certezas, uma delas é que um dia de sol anima a alma, principalmente se for um domingo, por esses e outros motivos, depois de decretar a paz no domingo, porque a semana foi manchada por brigas, eu e Helena resolvemos fazer um passeio de mãos dadas, fingíamos ser um casal feliz, como os outros, lembrando do tempo em que o amor ainda era a realidade primeira.
                A sua mão úmida na minha, o cotidiano mudou tudo, brigas constantes, confesso que eu andava muito nervoso, brigando por motivos banais: da pasta de dentes a forma como Helena estacionava o carro. Fingíamos na frente dos filhos, Helena detestava briga na frente dos filhos, por isso, quando eu queria brigar para valer brigava na frente dos filhos.
                 Há dois anos Helena passou a sentir dor na hora em que fazíamos amor, em várias vezes percebi que ela agia suportando a dor, como uma mártir em sacrifício, então eu parava e deitava nu do lado dela. Suspirando aborrecido, tentava me conter, porém sempre deixava transparecer que a culpa era dela.
 Ela assumia a culpa e começava a chorar, pedia desculpas mil vezes até dormimos brigando por outro motivo qualquer como a escola dos meninos, essa era a rotina do sexo, ou eu acelerava e tinha um orgasmo tosco, feito beijo com gosto de cebola.
                A minha conexão oral se ligou e passei a fumar escondido, é duro você ser apaixonado por uma única mulher, até tentei sair com outras, uma delas fedia a peixe podre e a outra tinha um metal na mama, com a ultima eu brochei e quando me viu naquela situação ela disse: “ não se preocupa também sou casada, no começo é assim mesmo, meu marido tem a desgraçada da doença de perony, quem tem essa doença fica com o pinto fica torto, sua mulher é frigida?”
                Quase dei uma porrada nela, nunca mais procurei outra mulher, passei  a segunda opção: a de curar Helena a qualquer custo, será que não era possível, afinal a medicina  não estava muito avançada.
                Helena sentia dor sem parar, mas na relação à dor era uma coisa terrível, deformava a face dela. Resolvemos consultar um médico, perambulamos por uma centena deles, passamos por vários médicos, que cobravam dinheiro para não dar nenhuma resposta e dizer que era preciso um tratamento psicológico, nada estava funcionando, as nossas economias estavam acabando, até que um deles falou que doença chamava-se Endometriose, a explicação do Google para essa coisa terrível: tecido do útero cresce em outro lugar, causando distensão e dor.
                 A vida de um casal sem sexo é desprovida de sabor, com todas as soluções esgotadas, ela tomava um remédio para dor e se animava para termos uma relação por mês e eu fechava os olhos para aquilo, para o sacrifício, deixando que a mulher que eu amava sofresse para me dar prazer por míseros sete minutos, egoísta, não pensava em mais nada, só aquele dia, às vezes pensava que ela estava fingindo a dor e fugindo do sexo comigo, nenhum tratamento dava certo, perguntava se a dor napoleônica ainda estava lá, ela simplesmente balançava a cabeça afirmativamente.
                 -Puta merda, não é possível, nunca vi uma dor assim! – dizia insolente, preocupado comigo. Meus prazeres.
                 -Sabe Ricardo, Nem eu senti uma dor assim, o problema é que a dor é no meu corpo - ela respondia algumas vezes.
                 Algumas vezes queria que atingisse o meu corpo, assim entenderia a dor melhor.
                  Eu trabalhava em um escritório de uma empresa estatal. Ela vendia doces na feira da praça e nas horas vagas ajudava. Trabalhávamos muito, com dois filhos na escola, Maxwell o nosso filho estudava medicina, nossa filha Amanda  estudava direito, ambos em faculdades particulares ,o gasto com escola era gigantesco, não tínhamos dinheiro sobrando para nossa diversão. Tenho certeza que aquela correria consumia a vitalidade das nossas vidas, Helena elegeu como objetivo de vida ser uma excelente mãe. O problema é que não sobrou nada do personagem mãe.
                  Foi fundo no personagem: dedicada, preocupada com as contas, o estudo dos filhos e a prestação do apartamento, por isso o trabalho era de sol a sol, o domingo era o único dia que tinha folga, os filhos nunca estavam em casa, apesar de todo o sacrifício que fazíamos por eles, sempre tinham alguma coisa mais importante para fazer que ficar com os pais.
                 Quando andávamos apertou a minha mão forte e disse.
                 -Ricardo eu vou morrer logo.
                 -O que? - fui surpreendido, o chão tremeu aos meus pés como se um terremoto fizesse prédios da orla cair a minha frente, desequilibrei.
                  -Quero morrer, não agüento mais essa vida, de dor, não passo um instante aliviada, quero a morte, termina de criar os nossos filhos sozinho?Faça o melhor, confio em você.
                   -Que idéia é essa? É a sua doença? A gente vai achar uma cura – implorei querendo acordar de um pesadelo, meus joelhos fraquejaram, só então percebi toda a estupidez do meu comportamento até aquele momento.
                     Ela ficou muda.
                     -Fala comigo, vou levar você em um médico, qualquer um, psiquiatra, neurologista, hoje depressão tem cura – puxei a mão dela com força, no meio do calçadão, ela me olhou, olhos vazios, como se ela não estivesse mais ali, a mulher pratica, descolada e que conseguia resolver tudo, quantas vezes eu gritei “Helena” ou “Amor”, me ajuda aqui, quantas vezes eu abri a porta da minha casa e vi aquele rosto ao chegar do meu trabalho? Mil vezes, e nenhuma vez valia tanto quanto a próxima. Tão importante, tão fundamental, só agora  eu percebo.
                  Lembrei do tempo em que aquela face meiga foi meu amparo. Existiu um tempo que me importava com aquele sorriso, imediatamente entrei em desespero porque naquele momento reconheci que minha esposa estava doente, muito doente. Fiquei desesperado e impotente, ali mesmo, como um covarde, comecei a chorar.
                    -Me perdoa... - disse Helena.
                    - Pare de falar em morte, estou com você, enfrentaremos tudo juntos.
                    Ela passou a mão na minha face e beijou meus lábios, ficamos parados, com as pessoas desviando do nosso caminho, andando no calçadão em direção ao seu infinito, preocupados com os próprios problemas, enquanto eu e Helena ficamos congelados como estatuas de pedras, isolados de um mundo que continuava.
                    -Cuida deles, diz que nem foi culpa sua, nem deles, acho que sempre fui assim... - disse apertando a minha mão.
                     Voltamos para nossa casa correndo, queria pegar o meu comprimido de Sertralina, naquele momento seria a salvação de tudo. Ela tomou e mudou de fisionomia, parecia entender a minha burrice e a minha fraqueza, eu achei que ela estava curada com um comprimido e a convidei para  almoçar  em um restaurante. Ela aceitou ir a um restaurante de frutos do mar, muito caro, tomou um banho demorado desse que se toma em hotel, saiu vestindo uma roupa intima nova.
                     -Faz amor comigo.
                     -E a sua dor?
                    Ela me beijou a minha boca, foi um beijo quente, de quem ama. Um beijo que não consigo me esquecer, todos falam do primeiro beijo, desse nem consigo me lembrar. Depois que fizemos amor ela disse que me amava, acreditei, quase nunca acreditamos quando alguém fala, e às vezes não acreditamos quando nós mesmos falamos.
                    -Esquece aquilo – pedi abraçando o seu corpo apertado contra o meu- estamos felizes agora, temos uma casal de filhos e uma velhice juntos.
                   Ela balançou a cabeça de forma afirmativa.
                   No dia seguinte fui trabalhar, estava no meio de um trabalho quando o supervisor me chamou ao telefone fixo, pois havia esquecido o celular.Atendi.
                  -Pai – era Maxwell – a mãe está grave no hospital – sua voz era chorosa.
                   Quando cheguei ao hospital ,Helena estava morta.
                   Abracei meus filhos, Maxwell falou.
                  -Ela se matou pai, que coisa horrível?
                  -Não é culpa de vocês.
                  -Por que ela fez isso pai? – chorava Amanda.
                   Não tinha palavras para responder aquelas perguntas, nunca teria.
                  Amanda chorava, Maxwell estava devastado, não pude segurar a as lagrimas, quando vivemos para o mundo esquecemos realmente  o amor,  se falhamos nos detalhes falhamos em tudo. Começamos a vida diante da alegria de viver de constituir uma família, esquecemos que perfeição não existe e que laços afetivos têm grande importância e devem ser cuidados como porcelana. Eu e meus filhos perdemos tudo, tudo.

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