sexta-feira, 26 de abril de 2013

a história da bela e o coveiro

 No mundo sujo e perdido vivia o moço órfão de nome Jurandir, que não sabia contar estórias. Em meio à lama suja do cemitério clandestino em um imenso terreno baldio, ele enterrava os cadáveres das vitimas dos malditos. Vitimas de assassinos impiedosos e serial killers, que matavam inocentes e arrastavam os cadáveres para o moço sepultar. Vivia sim na eterna escuridão, sem saber do amor ou das coisas bonitas que cantam por ai. Ele não era feio nem belo, era apenas o moço sujo que enterrava cadáveres e comia com as mãos imundas de sangue morto. 

 Em outro mundo limpo e florido vivia Bela, a moça bonita como o nome. Seus pais eram floristas e ela cultivava as mais belas rosas em um jardim tão grande quanto o cemitério clandestino de Jurandir.
 Mesmo sendo moça bonita, ela nunca teve um grande amor. Passava seus dias a despetalar margaridas em um ritual de “mal me quer, bem me quer” para assim saber se um dia encontraria os olhos de seu amado.

 E enquanto Jurandir abria covas rasas para sepultar cadáveres destrinchados, degolados e baleados, a moça abria buracos na terra fértil para plantar suas rosas que sempre eram apreciadas e premiadas por todos. Dois mundos e duas condições totalmente diferentes. Mas o que é do amor sem a magia? O que é da vida sem dois focos, duas visões e dois pensares? 

 Embora sujo, o mundo sombrio de Jurandir era culto e digno de proezas. Muito aprendia com os assassinos maquiavélicos que lhes traziam cadáveres para sepultar.
 Um serial killer Argentino que matava pessoas que imploravam pela vida, lhe contou entre uma tragada e outra que os mortos um dia voltariam a vida e perseguiriam seus algozes, e ele que um dia os enterrou, poderia ser parte desta vingança suja.
 Jurandir apenas sorriu e sepultou de bom grado o velho baleado que o Argentino trouxe. O enterrou em uma cova muito mais funda que a de costume e disse aos risos:
— Pois este vai ter mais trabalho para sair e buscar por sua vingança!
 Não era soberania, tampouco desrespeito, mas ele bem ouviu os conselhos do Argentino. Desenterrou centenas de cadáveres e cavou covas mais fundas, para assim garantir que não mais conseguiriam sair do descanso eterno.
 Sim, Jurandir era desses que ouvia tudo o que diziam, não era a toa que enterrava os erros dos outros e pouco ganhava para isto. E foi graças a este grave e sagrado defeito, o de ouvir o alheio, que ele conheceu Bela.
 Uma velha maldita denominada Dorotéia assassinava mulheres grávidas, tudo porque nunca pariu uma criança. Um dia, chegou ao cemitério arrastando o corpo de mais uma de suas vitimas. Jurandir a recepcionou com um sorriso e uma cova aberta, a velha atirou a grávida na valeta profunda e ajudou o moço a sepulta-la, enquanto dizia:
— Sabe, seu cemitério é belo e cheio por dentro, assim como a barriga de uma gestante. Eles estão todos aqui debaixo da terra, como fetos podres prontos para eclodirem... Mas por fora... Por fora só vejo a lama e o vazio.
 Jurandir olhou seu cemitério plaino. Nada alem de pequenas cruzes permanecia sobre a terra úmida. Ele sorriu diante da brilhante percepção e perguntou:
— O que achas que falta aqui, velha e sábia Dorotéia?
 Dorotéia que mais parecia uma bruxa colocou a mão no queixo cumprido e falou:
— Faltam flores e velas. Mais flores do que velas. Mortos gostam de receber flores avivadas e perfumadas.
 Jurandir sorriu encantado com a brilhante dica. De imediato, comprou sementes e mudas de flores, plantando as mesmas sobre a terra morta, para assim agradar seus cadáveres.


 Que tristeza... Jurandir não sabia plantar a vida, apenas a morte. As flores eclodiam e logo morriam, e das mudas plantadas despencavam as folhas e elas secavam mortas como todos os pútridos cadáveres.
 E ele sonhou. Sonhou que acordou. Acordou em meio à carne fétida dos cadáveres cobertos de varejeiras e flores mortas. Tentava fugir da desgraça que era a carniça dos podres, mas seu pé enfiava em meio a ossos, carnes e poças de sangue imundo. Ele gritou e de sua boca brotou uma rosa negra como a noite. Tentava arranca-la de sua boca, vendo fartos bigatos se deliciarem com a carne de seus dedos. Apodrecia junto com os mortos, perdendo o ar dos vivos.
 Acordou em desgraça, se afogando com a própria saliva, ciente de que tinha que dar flores aos mortos.
 Foi então que ouviu noticias sobre Bela, a moça que tinha a mão boa para cultivar rosas.

 Bela em seu jardim florido cuidava das tulipas quando ouviu os pais anunciarem a presença de um estranho. A moça caminhou serena até a porteira e o viu. Jurandir coveiro estava lá, com o corpo sujo coberto de barro seco. As unhas grossas e afiadas tinham terra por baixo. Ele de súbito encontrou os olhos de Bela. Tremeu de medo e foi ágil em dizer:
— Vim por conta das flores, das rosas que crescem em abundancia em seu jardim.
 Bela olhou atenta nos olhos do moço sujo. Viu pureza em suas palavras, viu o branco que cercava a bola negra e brilhante. Sim, tinha vida e beleza às palavras e a alma do moço, ela de súbito também se encantou e respondeu:
— Planto rosas desde menina. Elas fazem parte de mim...
 O moço atrevido mesmo sem ser convidado atravessou a porteira de madeira, adentrando nos domínios de Bela. Aproximou-se dela e com o coração disparado e perguntou:
— E em meio de tantas rosas consegues tu se encontrar? Elas não invejam sua beleza? Ou será que se inspiram nela para crescerem prosperas e bonitas?
 Bela ficou tão vermelha quanto suas rosas. Sorriu tímida e perguntou:
— E você vive do que, moço?
 Jurandir tímido arrancou o chapéu e baixou a cabeça. Olhando para a terra fértil que pisava contou:
— Vivo de plantar morte e de seguir conselhos. Um desses conselhos me trouxe até aqui no seu mundo. Vim comprar rosas prontas, para plantar sobre os mortos que enterro em meu mundo.
 Bela que nunca havia perdido ninguém que amava, não sabia o que era a morte. Mesmo assim, lhe sorriu e lhe apresentou seu jardim:
— Na direita ficam as tulipas, as margaridas e algumas outras qualidades diversas. A esquerda tem meu xodó, as rosas, rosas vermelhas, brancas e simplesmente rosas. Meu grande orgulho, pois nada no mundo é mais belo que elas.
 Jurandir olhou ao longe as rosas. Com o coração pulsante tocou com as unhas sujas de terra o rosto de Bela e disse:
— Bela, tu certamente és mais bela que todas elas...
 Bela com as mãos limpas e bem cuidadas levou a mão por sobre a mão que acariciava seu rosto. Fechou os olhos e deixou-se levar por outra coisa que não conhecia: O amor.

 E Jurandir mal viu o tempo passar. Perdeu-se em meio ao jardim florido, esquecendo-se da triste realidade que o aguardava em seu mundo. Passou uma tarde agradável ao lado da moça e de seus pais, bebendo chá e conversando sobre a vida.
 Sim, a vida, não a morte que ele tanto aprendeu a se adaptar, e sim a vida, o cotidiano que encanta os que sabem apreciar o que á de bom.
 Foi para seu mundo com caixas e mais caixas de rosas belas, pronto para planta-las por sobre as covas profundas.
 Lá chegando, deparou-se com uma pilha de cadáveres. Os assassinos cruéis e impiedosos não descansam como os mortos. Enquanto Jurandir contemplava sua amada, eles ceifavam vidas e traziam as carcaças para ele enterrar.
 E no momento que os sepultava, Jurandir chorada, descobrindo que até então nunca viveu, pois sua grande alegria em toda a vida foi a tarde agradável que passou ao lado da moça Bela.
 E em meio à noite chuvosa, enterrou os corpos e plantou as mudas de rosas.
 Há, que tristeza... Todas elas morreram quando as raízes encontravam a terra lamacenta e morta... Jurandir gritou em meio a toda sua desgraça, vivendo em seu mundo o pesadelo sem fim.
 Dormiu na lama dentro de uma cova rasa. Dormiu e acordou triste, testemunhando o terreno coberto por flores secas e murchas.
 Sim! Bela tinha a mão boa! Talvez se ela as plantasse... Talvez se as plantasse com suas próprias mãos, elas prosperariam avivadas, fazendo do lugar feio uma bela paisagem... Elas eclodiriam e encheriam de beleza o cemitério, o deixando tão fértil quanto seu jardim!

 E Bela munida de sementes e mudas, entrou de mãos dadas com o moço Jurandir no cemitério clandestino e lamacento. Ela pela primeira vez sentiu medo, medo do cenário macabro e grotesco, medo da morte, morte esta que ela nunca conheceu de perto, diferente do moço que sepultava cadáveres.
 Bela viu com tristeza as flores murchas e secas plantadas por sobre as inúmeras covas. Em lagrimas, caminhou em meio às covas cobertas de lama, segurando a mais bonita muda de rosa.
 Ajoelhou-se diante de uma cova e com estrema delicadeza, abriu um buraco em meio a lama e colocou com cuidado a muda de rosa.
 De súbito a flor viva vibrou, como que se quisesse se despetalar. O talento e o dom da moça que tinha a mão boa para plantar foram mais fortes que a morte predestinada da terra infértil. A rosa teve forças e desabrochou triunfante na lama, tornando-se ainda mais bonita que antes.
 O solo tremeu e as raiz seca e forte da rosa morta se esticou em baixo da lama, correndo de encontro às outras raízes mortas das flores plantadas por Jurandir. O grande milagre.
 Jurandir sentindo a terra molhada tremer sobre seus pés, temeu que a profecia do Argentino tivesse se cumprido... Sim, ele temeu que os mortos voltassem à vida! 
 Não era isso. As flores mortas que ele plantou de súbito se avivaram. Os talos secos ficaram verdes e novas e vistosas folhas preencheram o vazio das outras. Era mágica! Era milagre! O cemitério morto ficou florido e vivo, coberto de folhas e rosas coloridas!
 Jurandir se encantou e entre sorrisos, abraçou a moça Bela. Bela o apertou forte no abraço e encostou sua testa na dele. Jurandir tremeu de um medo que nunca teve, e ignorando a insegurança, a beijou docemente. Foi correspondido. E em meio ao cemitério florido, amou intensamente sua moça, enquanto uma nova pilha de cadáveres se amontoava no cemitério clandestino.
 E foi assim por dias. Jurandir sepultava os cadáveres em covas profundas enquanto Bela os cobria de rosas e flores férteis. 


 Um dia Jurandir decidiu que não mais queria o pesadelo de seu mundo. Não queria mais sepultar a morte como um coveiro, queria viver de plantar flores no mundo de sua moça, tornando-se assim um jardineiro.
Pediu Bela em casamento e decidiu viver com ela em seu belo jardim. Bela em extremo encanto disse sim, o moço se tornaria limpo e viveria com seu grande amor até o fim de seus dias...

 No entanto, Jurandir sabia que não iria ser fácil. Sabia que a corja de assassinos e psicopatas seguia um líder, um homem com interesse em comum aos deles, o homem que encobria todos os seus crimes e que pagava migalhas para o jovem coveiro enterrar toda a sujeira. Seu nome era Sandoval, o líder de toda a corja de malditos.
 O humilde rapaz foi cabisbaixo até a mansão do magnata informar sobre sua saída, deixando Bela no cemitério, arrumando as malas para a partida.
 Sandoval estava reunido com a corja de assassinos imundos para ouvir o pronunciamento do moço apaixonado, que em mágicas palavras tentava lhes convencer sobre sua saída.
 E o mafioso ouviu com atenção os dizeres do rapaz. Ouviu e riu, riu e gargalhou das bobagens do amor. Todos os assassinos cruéis riram também da condição do garoto. E ele que queria viver as bobices do amor, riu da própria tragédia, na esperança de sentirem piedade e lhe deixarem sair vivo dali.
 Pois não se pode alcançar os céus se você esta com os dois pés no inferno. O moço corajoso apanhou por seu desatino, apanhou da corja que um dia protegeu e ajudou.
 O Argentino impiedoso mirou a arma em seu peito e sorriu. Jurandir olhou fundo nos olhos do homem que esperava que ele implorasse pela vida. Não implorou e mesmo assim recebeu um balaço bem no meio do peito.

 Foi jogado sem vida em meio aos outros cadáveres no cemitério clandestino. Bela tremeu de pânico e medo, vendo seu amado morto e ensanguentado. Chorou em desgraça, sentindo pela primeira vez a dor da perda.
 Ela separou o amado morto em meio aos outros corpos empilhados. O lavou com ternura e o cobriu de flores frescas. Chorou e após vela-lo em tristeza e inconformismo, se preparou para sepulta-lo em uma cova rasa.
 E pela primeira vez Bela plantou a morte, bem no meio do cemitério clandestino e florido. Pela primeira vez enterrou algo que estava morto e que jamais brotaria, por melhor que fossem suas mãos...
 Então, carros estacionaram na frente do cemitério clandestino. Em extrema ousadia, Sandoval desceu de um dos carros pretos, junto de seus assassinos sanguinários. Ele caminhou em desatino com eles até o meio do cemitério. Olhou para a bela moça e disse em sarcasmo:
— Jurandir não mentiu. Não era a toa que queria trocar de coveiro para jardineiro! Você realmente é muito Bela, capaz de virar a cabeça de qualquer homem! Viemos para o funeral, mas vejo que já o sepultou junto de suas outras flores.
 Naquele instante a terra tremeu. Tremeu forte e voraz, enquanto os malditos boquiabertos testemunhavam as covas floridas se abrirem em crateras.
 Para desespero dos assassinos, os mortos errantes enterrados na terra molhada escavavam com suas unhas, querendo sair de suas covas. As flores se despetalaram e a cova recente de Jurandir se abriu também. Sua mão brotou da terra e os assassinos tremeram do mesmo medo que suas vitimas. 
 Jurandir levantou-se de sua cova. Olhou a sua volta, os mortos das covas fundas também despertando de seus túmulos, fazendo valer a profecia do Argentino, seu algoz.
 Os assassinos impiedosos tentaram correr, em vão, as mãos pútridas e ossudas que brotavam da terra seguravam em seus pés, eram os mortos que ressuscitavam serenos e firmes em suas vinganças.
 O sangue quente dos vivos era aparado pelas bocas podres dos cadáveres famintos. Jurandir em ira pulou no pescoço do Argentino e o destroçou entre seus dentes...
 O inferno e a carnificina pairaram sobre o cemitério florido. O magnata Sandoval foi destrinchado por dezenas de cadáveres famintos, fazendo valer o dom da vingança. Gritava em desgraça para ser liberto da dor da morte, morte esta que por décadas ele cultuou. 
 Bela tentava escapar da ira dos cadáveres que tentavam também devora-la, foi ajudada por seu amado, que ainda preservava a consciência dos vivos.
 Poucos assassinos conseguiram escapar da fome dos mortos-vivos, e entre eles, estava Dorotéia, a bruxa sádica que matava mulheres grávidas. 
 Bela beijou seu amado vivo como suas rosas... Sim! Vivo! Jurandir estava vivo, pois sua amada tinha a mão boa para plantar...

 Lhes digo que o amor salvou o moço que sepultava cadáveres. O amor verdadeiro sempre salva, sempre cura, sempre liberta. O amor é mais forte que a própria morte, e foi bem ela, a Morte, que tocou flauta no casamento de Bela e Jurandir.
 O amor germinou forte e triunfante no coração dos dois, assim como a filha semeada pelo casal. Bela trazia a felicidade em seu ventre, e em meio às flores e a harmonia de seu mundo, estava prestes a dar a luz a Rosa, a primeira filha.

 No entanto, um sombrio espírito de vingança adentrou no mundo de Bela e Jurandir. Era ela, Dorotéia, a maldita velha bruxa que tinha gana em assassinar grávidas. Dorotéia corroída pelo ódio, finalmente descobriu o paradeiro do moço que dizimou grande parte da corja de assassinos com seus cadáveres.
 Era noite de lua cheia. Uma faca longa e afiada estava prestes a entrar no útero de Bela quando a bruxa imunda invadiu o quarto do casal. Jurandir que não sabia matar, abriu os olhos para o perigo e despertou, flagrando a silhueta da bruxa armada com a faca. Ele lutou insano contra a velha traiçoeira, que era muito mais forte que ele.
 Dorotéia era monstruosa e estava determinada a semear o mal, entre bem sucedidos golpes, dilacerou varias vezes o braço do moço desarmado. Este, no intuito de proteger sua amada, não teve outra escolha a não ser degolar com as próprias mãos o pescoço seco da velha Dorotéia.
 A bruxa maldita deixou a faca banhada em sangue cair. As unhas que tanto cavaram covas, entraram em sua jugular e a estrangularam. Jurandir deu seu ultimo presente para a Morte, um cadáver que ele jamais iria sepultar, pois foi isto que prometeu.
 
Existe uma gigantesca e rara arvore de ipê com três cores de flores plantado em meio às terras onde vivem Jurandir, Bela e suas filhas Rosa, Violeta e a pequena Margarida.
 O ipê onde esta talhado o nome do casal, foi plantado próximo ao pequeno milharal.
 Jurandir e sua esposa se reúnem todas as tardes de sábado lá com suas meninas, fazendo um alegre piquenique.
 Em meio ao milharal existe não um espantalho, mas sim uma bruxa seca e esturricada, esticada em uma cruz para espantar os corvos. Essa é uma das historias que o moço aprendeu a contar para suas filhas. Conta sobre uma corja infame que tentou lutar contra a liberdade do amor, de um rapaz que sepultava os mortos e de uma princesa que semeava a vida. Esta historia fala de amor e de terror, e ambos misturados, são tão doces como uma musica nostálgica. Há... O amor... Ele sempre prevalece sobre o terror!
 
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário