Toni,
o relojoeiro, trabalhava incansavelmente. Seu comercio com centenas de
relógios nas paredes, o lapidava com seus toques dos segundos que
atiçavam seu cérebro, fazendo seus nervos mexerem em sincronia com eles.
Toni era fiel ao tempo, pois era esse seu ganha pão. Passava boa parte
de seus dias concertando relógios e mais relógios, sempre trabalhando
com o tempo dentro de seu próprio tempo, para pessoas que não queriam se
atrasar e nem se adiantar.
Ao final do expediente, pegava a bicicleta nos fundos da relojoaria e pedalava dois quilômetros e meio, até chegar a sua casa.
Em seu lar não era diferente, tinha hora para tudo, até para espirrar!
Sua esposa bonita e desengonçada era uma preguiçosa assim como seu
filho pequeno. Ambos não ligavam para o tempo, totalmente desleixados e
arrogantes, perdidos na falta do que fazer.
Mas graças a ele a casa era cheia de regras para serem cumpridas
dentro de seus prazos. Em cada cômodo tinha dezenas de relógios, todos
certinhos, com ponteiros calibrados e seguros.
Toni queria se sentar a mesa e cear na hora certa, a esposa irritada
tentava obedecê-lo. Preparava a comida ruim, colocava a mesa e ambos
esperavam o ponteiro bater nas 7 horas para jantarem. O garoto olhava
para as batatas frias engorduradas, olhava para a mãe também faminta e
para o pai:
— Faltam quantos minutos ainda, mamãe?
A mãe olhava para o relógio e respondia:
— Doze minutos meu anjo.
O relojoeiro se incomodava, olhava para as panelas grossas de sujeira, para o ponteiro tardio e ouvia a esposa reclamar:
— Costume imbecil este o seu de querer fazer tudo com hora certa!
Qualquer dia eu endoido e quebro todas as porcarias desses relógios!
Ele era fiel a este procedimento, esperava cauteloso às 7 horas, e quando esta vinha, ai sim começavam a comer.
E toda noite, na hora do sexo, ele calculava no relógio de pulso as
preliminares. Era de seu juízo que estas fossem em 8 minutos, depois
então, pulava sobre a esposa e ficava sobre ela por exatos 23 minutos,
pouco mais de meia horinha de relação amorosa para enfeitar sua vidinha
chata. Quando a esposa queria mais ou reclamava por não ter chegado ao
orgasmo no tempo programado, ele dizia que nada podia fazer, e dormia
para não chegar atrasado aos seus sonhos.
Seus sonhos consistiam em um grande relógio de uma torre em meio ao
deserto, um relógio que ele não conseguia concertar. Certa vez sonhou
que o concertou, mas quando foi colocar na hora certa, percebeu que não
tinha com ele nenhum relógio, de modos que não saberia colocar a hora
exata... Este sonho lhe virava um pesadelo e ele acordava suado, diante
de sua total incompetência. Decidiu então que dormiria com um relógio
debaixo do travesseiro, e ao barulho dos segundos, cochilava e voltava à
torre dos sonhos, em meio ao deserto, ao grande relógio quebrado.
O concertou, conseguiu colocar a hora certa, mas quando olhou a sua
volta, viu centenas de outras torres, todas com relógios quebrados,
faltando ponteiros e números... Acordou mais desesperado ainda, gritando
e levando as mãos na cabeça.
Graças a estes sonhos seu trabalho lhe começou a ser um fardo, os
relógios a sua volta lembravam-se das torres do deserto, se via
incomodado e não conseguia entregar mais seus pedidos a tempo. Os
clientes acostumados a terem seus relógios pontuais e na hora combinada,
se atrasavam e reclamavam, dizendo que procurariam outro relojoeiro.
E o pobre homem não imaginava que dentro de sua casa, a esposa insossa
e o pequeno filho tramavam quebrar as regras, deixar de lado este
negócio de tudo certinho... Comeriam o jantar quando bem entendessem e
seriam senhores do próprio tempo!
O relojoeiro Toni em seu trabalho se pondo louco, ouvia os ponteiros e
as badaladas infernais dos relógios atrasados, enquanto tentava
concertar os quebrados. Sabia que a demência estava prestes a corromper
seu cérebro... O trabalho em exaustão, os pesadelos medonhos, a
descrença de sua família e a reclamação dos clientes faziam sua mente
organizada borbulhar em desordem, lhe levando a um caos mental e mortal.
Foi então que um velho estranho entrou em sua loja com um antigo
relógio infantil... Disse que o queria concertado até às seis horas,
para presentear o neto. O relojoeiro olhou com atenção o belo relógio,
que nada mais era que um palhaço que mostrava as horas dentro de sua
boca grande e vermelha. Ele se encantou com a beleza clássica e simples
do relógio do velho, disse que queria comprá-lo e o ouviu dizer:
— Veio este do México a vinte e tantos anos atrás. Não se fabricam
mais deles por lá e nem por aqui. Este dei ao meu filho, mas ele morreu
de derrame... Estou pedindo para você concertá-lo para presentear o
filho dele, meu netinho.
O relojoeiro encantado passou o resto do dia se dedicando ao belo
relógio em forma de palhaço, até concertá-lo. Se apegou a ele, mas sabia
que o velho viria buscá-lo...
Chegando dentro da relojoaria, o velho começou a passar mal... Caiu
tremulo no chão e se entregou a morte repentina. Enfarte fulminante. O
socorro foi chamado, o legista olhou a sua volta, as paredes cheias de
relógio. Perguntou ao relojoeiro que horas percebeu a morte do homem,
para constar nos altos.
Ele, no auge de sua incompetência, com tantos e tantos relógios
atrasados e adiantados, não soube o que responder. Olhou para a boca do
palhaço e temeu em dizer a hora errada, enquanto carregavam o corpo
morto.
E debaixo do seu braço estava o relógio em forma de palhaço, o relógio
que o menino não iria ganhar... Tratou de levá-lo pra casa e colocar no
melhor canto de seu lar, para poder deslumbrar sempre a sua beleza.
Ao chegar em casa, com o embrulho debaixo dos braços, percebeu tudo
diferente. Manteve seu objetivo, colocou o belo relógio em forma de
palhaço na parede do seu quarto, cheia de tantos outros relógios. A
esposa não mais era pontual, assim como o filho. Ambos abusaram em
quebrar as regras e o puseram ainda mais louco. Na hora do jantar, o
menino ansioso por demonstrar sua rebeldia incentivada pela mãe,
perguntou a ela:
— Quantos minutos faltam para há 7 horas, mamãe?
Ela sorrindo respondeu:
— Faltam ainda 15 ou 20... Talvez apenas 10, meu amor... Mas não precisamos esperar. Pode se servir!
Toni indignado olhou a esposa e o filho comerem feito porcos,
desorganizados propositalmente na mesa, enquanto esperava boquiaberto as
7 horas chegar. Quando esta chegou, a comida estava fria, e ele cheio
de ira, se levantou, se escovou e foi dormir, sem os sagrados 30 minutos
de sexo.
Quando acordou pela manhã, notou a ausência do relógio em forma de
palhaço. Olhou para os outros e boquiaberto, percebeu que estavam todos
desajustados, alguns adiantados, outros atrasados...
Se desesperou! Gritou feito louco procurando pelo relógio em forma de
palhaço... O encontrou jogado e todo quebrado, dentro do lixo:
— Eu fui desarrumar a hora e ele caiu no chão – Disse calma a esposa, enquanto bebia o café.
Toni endoidou. Olhou raivoso para a mulher sínica e perguntou em tom de indignação:
— Porque diabos desajustou todos os meus relógios?
Ela sorriu:
— Eu e o menino estávamos entediados. Desajustamos alguns, quebramos outros...
O relojoeiro em ira pura foi em direção a esposa e a enforcou com
todas as suas forças... Ela desesperada perdendo o ar em seus braços
fortes, nada conseguia dizer... De repente ele caiu em si, soltou a
esposa e correu para o quarto, enquanto ela recuperava o ar.
No quarto, olhou para a maquiagem da mulher... Pensou no palhaço do
relógio e se pintou tal qual ele. Deslumbrou-se insano em frente ao
espelho e sorriu neurótico... Já não estava mais em seu juízo, se
julgava o próprio palhaço e buscava vingança por ter sido quebrado.
Sim, essa é a grande desgraça. O relojoeiro organizado pintou-se de
palhaço, passou no rosto o bastão colorido e sorriu maquiavélico, pronto
para ousar, pronto para concertar as coisas.
Caminhou com passos curtos até a cozinha... Pegou o cutelo afiado e
foi até a sala, onde a esposa ligava para a policia, denunciando a
agressão cometida por ele minutos atrás.
O primeiro golpe lhe pegou no ombro... Ela em desespero largou o
telefone e o encarou, enquanto o ombro decepado pendia para o lado. Toni
sorria, como que seus dentes fossem números e sua língua um ponteiro.
Sorria desgraçadamente, pondo mais medo ainda na mulher aflita. Ela
gritava em desgraça, olhando para a cara pintada do marido. Não. Aquele
não era mais ele... Aquele ser asqueroso e errante era Toni, o palhaço
Insano. Sem piedade e motivado pelas próprias gargalhadas, o palhaço
atingiu o crânio da mulher, arrancando um tampão da cabeça. Ela caiu
tremula e agonizante no chão frio, babando sangue e medo, enquanto a
morte a alcançava.
Ele se ajoelhou diante dela e aos risos e gargalhadas a cortou
inúmeras vezes, até ver seus pedaços se espalharem nos ladrilhos da
sala, lambuzando o palhaço em seu horrendo espetáculo.
O menino sujo adentrou na casa... O relojoeiro pintado lhe sorriu
meticuloso e com o cutelo banhado de sangue, lhe perguntou em sarcasmo:
— Sabes que horas é agora, meu filho?
Quando a policia chegou, Toni estava trancado em seu quarto,
concertando o relógio do palhaço quebrado. A esposa e o filho estavam
despedaçados pela casa ensanguentada, com todos os relógios das paredes
ajustados e funcionando em perfeita sincronia.
Dentro da prisão acolchoada o relojoeiro palhaço dormia, olhando do
lado de fora o relógio em forma de palhaço enfeitar o corredor. Sorriu
satisfeito e doentio com sua cara pintada, sorriu meticuloso e bobo,
pois ali, tinha hora certa para comer, beber e dormir, sonhando o sonho
bom com os relógios concertados de todas as torres do abismo de sua
mente.
"E era sempre, Não foi por mal
Eu juro que nunca quis deixar você tão triste
Sempre as mesmas desculpas
E desculpas nem sempre são sinceras
Quase nunca são"
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