terça-feira, 21 de janeiro de 2014

A melodia dos tempos

     A noite estava morna e eu acabava de abalar a corda de minha guitarra, soando uma última nota de uma melodia lenta que eu improvisara. Me veio à mente a lembrança de certa ocasião em que eu, pela primeiríssima vez, beijei uma garota. Eu era bastante novo. Eu e minha estimada amiga fomos embalados por uma súbita curiosidade à cerca de tal representação de amor dos adulto. Em seguida, percebi que pouco tempo depois, me foi solicitado, por outra menina, um beijo meu. Cedi-o sem hesitar. Seguiu-se, ulteriormente, outras solicitações desse tipo. Às quais eu atendia da melhor forma possível. Aprendi que eram cumplicidades deliciosas e busquei-a em diversos lábios femininos ao longo do meu início de juventude. Lá pelos meus quinze anos, tornei-me extremamente envaidecido pelo fato de ser desejado pelas mais desejadas meninas da pequena cidade em que morava. Para alimentar minha auto-estima eu precisava estar sempre pondo em prática minhas habilidades sedutoras. Sem que eu percebesse, havia me tornado um menino muito inseguro. E notavelmente bonito. Aprendi, com o tempo, que não deveria desperdiçar meu belo rosto juvenil. Também percebi que meu poder social consistia em não ter, por menina alguma, um beijo negado. Precisava disso para sentir-me aliviado. Aprendi a beijar sem amar, arrancar o recheio e jogar fora o biscoito. Aprendi a amar para fazer drama. Desejando, sem perceber, que não me amassem de volta. Assim, eu poderia ser o pobre coitado de quem as gurias tinham vontade de cuidar. Pratiquei, por toda a minha juventude, o crime de (através de consolidações físicas de afeto) representar afeto onde não havia sequer um pingo de sentimento. Matei em mim a capacidade de amar e ser amado. Ajudei a disseminar por aí o beijo vazio, a simulação de um namoro que dura algumas horas. Afinal, é tudo o que resta aos pobres coitados abençoados geneticamente com a beleza visível aos olhos. A capacidade de exaurir, aos amassos, a própria beleza e a beleza do próximo, como a produção industrial que mata o charme do trabalho artesanal. Hoje, de tanto beijar por beijar, herdei de minha juventude a habilidade de tratar uma mulher como um instrumento musical. Para exprimir de qualquer uma o prazer, aprendi as técnicas de todos os acordes da anatomia feminina. Mas não sei fazer brilhar em nenhuma a melodia da paixão duradoura. Eu não sabia até então, mas hoje percebo que o recheio sozinho, não preenche nenhum campo vazio da alma. Porém, não sei mais o que fazer com o gosto do biscoito. Isso daria uma história boa, repleta de conflitos e amores conquistados ou perdidos, se eu não houvesse compreendido tudo isso. Toda vez que desligo o telefone, depois de uma conversa com Sandra, digo-me que todas as outras foram mera curtição e posso colocá-las em um canto da minha mente e dizer ao contemplá-las: "é, eu curti a vida, foram válidas, apesar de agora eu curtir tudo isso em uma pessoa só".
       Mas isso não passa de auto-consolo. Eu nunca precisei delas. Fui simplesmente fraco e cedi aos elogios. Fui medíocre ao deixar-me transformar em um fantoche da sociedade, seguindo a moda da mocidade. Quisera eu, agora, ter beijado somente Sandrinha. Quisera agora somente poder retribuir a ela todo o amor que ela tem por mim. Ao me beijar, sei que ela põe no beijo todo o amor dela. Ela parece eletrocutar minha alma ao passar para mim aquela paixão devastadora através de beijos e de caricias espontâneas. Enquanto eu a manejo com mera técnica, uma superficial necessidade de agradá-la fisicamente, sem nada sentir. E muito embora ela ainda não tenha percebido, sem nada fazê-la sentir verdadeiramente. Arrependo-me agora, nessa noite morna, com a juventude morta, de ter transformado meu coração em uma fábrica capitalista de prazer. Quisera tê-lo privado de certas garotas, para saborear completamente essa que eu tenho agora.
       Tenho hoje vinte e tantos anos de vida e me sinto acabado neste quarto de hotel. Poderia estar tocando a macia pele dos dedos de Sandra, mas só tenho estas cordas de minha mais nova guitarra. Ah, é claro: a mão esquerda intercalo entre precisar os acordes na guitarra e trazer à boca o gargalo de uma legítima cachaça mineira de Uberlândia. Se perguntassem-me como é Uberlândia, eu não saberia dizer, estou aqui há dois dias e nem me dei ao trabalho de sequer explorar o hotel no qual estou hospedado. Só percebi um cheiro esquisito que vem das paredes que, apesar de fazerem parecer que é cheiro de tinta (cheio que eu amo de paixão), colocando alguém a todo instante ao corredor, fingindo pintar a parede, dá pra perceber que o odor azedo vem de detrás da tinta, talvez de dentro da parede. Porém, pouco me importa o cheiro de podridão que exala de dentro das paredes. Minha alma me ameaça mais que segredos paranoicos que eu guardaria nas paredes de um hotel mineiro.
       Entre acordes e bebericadas, argumentava em minha mente sobre como consenti-me ao aceitar, desde pequeno, as vicissitudes da minha vida. E como a minha vida e as pessoas que fazem parte dela se recusaram a aceitar-me, muito embora digam que aceitem para, em seguida, argumentem algo e contradizerem-se, sem perceber. Minha vida sempre fora muito simples. Morei em diversos lugares diferentes, estudei em inúmeras escolas e me adaptei ao ambiente e às pessoas que iam e viam em minha vida. Aprendi a beleza da diversidade. Mas de repente, à certo ponto de minha escalada em direção à felicidade, largaram-me na multidão e me vieram com conselhos que leram no espelho e exigências implícitas no fundo dos próprios olhos (onde eu não podia evitar de lê-las, enquanto as pessoas próprias não as viam). Eu já não sabia o que era importante e o que não era, muito embora o importante é aquilo que se considera importante, simplesmente. Sentia-me burro, pois a inteligência era aquele brilho que iluminava, com um pouco mais de alegria, a satisfação, e dava prudência para viver. Ajudava a criar e desenvolver novas ideias, melhorar constantemente o mundo e as pessoas e etc. O mundo me veio com a ideia de que aquele que está a todo instante buscando notícias na mídia e que soubesse reproduzir aos amigos no bar o que estava ocorrendo com algum presidente distante, não era uma pessoa meramente bem informada e sim, alguém muito inteligente. Aquele que se submete a ser moldado por professores, que aprende o que lhe é mandado aprender, que vive ensaiando para a próxima apresentação, no intuito de arrancar sorrisos e aplausos de alguém, achando que é o próprio sorriso que busca, mas não percebendo que vive em prol dos ladrões de sorrisos desavisados, também não são pessoas meramente responsáveis que cumprem com as obrigações impostas por outros. Convenceram-me que esses são os inteligentes. E assim, apagaram em mim, a luz da inteligência que eu achava ter. Talvez eu ainda tenha essa gigantesca lâmpada dentro de mim, ainda agora, que minha alma é um breu total. Mas dispensaram o brilho de meu talento. Sufocaram com mediocridades e conceitos impregnados na sociedade o meu conhecimento analítico. Se eu quiser brilhar, vai ter que ser de fora pra dentro. Talvez essa guitarra seja meu interruptor, ou (como eu quisera certa vez, com mais intensidade), um lápis e um caderno.
       Já havia lido em tantos livros, histórias assombradas que ocorriam em hotéis macabros e já havia assistidos inúmeros filmes de terror onde alguém se matava num quarto escuro e frio de hotel. Larguei a guitarra na cama, no lugar onde deveria estar minha pequena Sandra, e peguei na gaveta da mesa de cabeceira meu caderno e meu lápis. Senti-me compelido a escrever algumas páginas de angústia, tendo como cenário aquele soturno quarto de hotel. Contudo, me pareceu clichê demais e logo abandonei a ideia. Eu já havia escrito várias páginas naquele caderno velho e pus-me a lê-las, somente. Constatei na leitura que eu havia decididamente abandonado qualquer acentuação. Já estava preparado para a próxima reforma ortográfica. Cada vez mais, abandonam-se os acentos. Me pareceu, naquele momento, ao ser ortograficamente incorreto, estar sendo, na verdade, super clarividente. Afinal, escravos da gramática são os alunos de ensino médio que avaliam massantemente as grandes obras de ilustres autores, enquanto os verdadeiros, outrora, gênios literários, brincavam com a ortografia, criando e recriando com as palavras, sem respeitar demasiado as regras, orientando-se nelas apenas. Deixando para os responsáveis e bem informados queridinhos, inteligentemente dissecar poesias em busca de regras gramaticais.
       Decidi abandonar aquela leitura que nada me acrescentava e fui tomar um banho. Enquanto a água do chuveiro derramava-se em mim, minha mente pôs, mais uma vez, a deleitar-se em mórbida nostalgia, só pra me irritar um pouco mais. Meus pensamentos voaram ao meu passado um instante e trouxeram de lá fatos. E mesclaram os novos fatos das antigas, nos pensamentos frescos do meu raciocínio. Isso resultou em certas conclusões e ideias frescas. Apesar de eu ter tido muitas meninas para dançar a melodia do amor, seguindo a apologia: sem música. Eu passava muito tempo sozinho com meus pensamentos. E a solidão me ensinou a cultivar ideias próprias. Coisas das quais o mundo não tinha acesso. Eram pensamentos e conclusões minhas e somente minhas. E quando eu os colocava para fora, modelados com criatividade, pessoas aplaudiam ou balançavam a cabeça sorrindo e dizendo “só você mesmo, hein.” Mas isso não durou muito. Logo minha ideias, outrora admiradas por ter aquela benção de serem virgens, a graça de fazer rir, fazer espantar, agraciar as engrenagens mecânicas e cansadas daqueles que se limitavam a decorar velhas ideias e conceitos, agora não tinham mais brilho. Muito pelo contrario, ultimamente minhas peculiaridades, outrora admiradas, agora fazem de mim, uma pessoa imprópria para viver em sociedade. Minhas ideias são a causa de toda discussão e mal entendido. Tornei-me um veneno para mim mesmo. Aliás, falando em veneno, foi nesta parte da história em que bateram à porta. O som ressonou oco no ambiente. O barulho do baque dos nós dos dedos à placa de madeira que separava o quarto do compridíssimo corredor alvirrubro me fez sobressaltar e errar um acorde. Fui atender e deparei-me com um simpático funcionário do hotel. Trazia-me uma garrafa de Champanhe que dizia ser cortesia por parte do senhor Alvarez, dono do hotel Bona Solistina. Ao menos foi o que entendi. Trouxe para dentro a garrafa, a taça e o abridor. Abri, fingi festejar algo e deixei, sem querer, a garrafa cair ao chão. Praguejei, sabe-se lá por que, mas surpreendi-me quando uma fumaça subia do carpete bege. Demorei a perceber o que estava ocorrendo. Primeiro por que estava bastante bêbado por causa da cachaça, e depois que entendi, avaliei bem se era fruto de minha imaginação embriagada ou era fato verídico. O dono do hotel então teve a gentileza de compreender que eu não me sentia bem neste mundo e decidiu mandar-me para o além, certo? Maldito seja o bendito. Na minha concepção, por mais cruel que possa parecer, somente três pessoas neste mundo tem o direito de tirar minha vida, as duas primeiras são as que “me deram a vida”, e depois, eu. Afinal de contas a vida é minha, então eu faço o que quiser com ela. Estragar, consertar, tecê-la em qualquer direção ou atirá-la no precipício eterno. E meus pais, sendo eu, deles, minha vida também os pertence, até certo ponto. Antes de tentar compreender as razões "assassínias" do estimado senhor Alvarez, arrumei, de pronto, as minhas coisas, afim de partir daquele lugar o quanto antes.
       No dia seguinte eu amanheci naquele quarto. Devo ter desmaiado, provavelmente. Não lembrava de ter ido dormir voluntariamente. Só sei que apaguei na noite anterior, porque despertei na manhã seguinte. A cabeça doía e eu sentia toda aquele mau estar contido na ressaca de meia garrafa de cachaça. Bom, pelo que constei, eu estava vivo. Não sabia, porém, se por isso vibrava ou lamentava. Enquanto Tico e Teco discutiam a respeito, desci, prestando bastante atenção ao redor, para tomar café da manhã. Estava preparado para qualquer coisa, menos para deparar-me com duas belas (e põe belas nisso) jovens garotas no corredor do terceiro andar (um andar abaixo do qual eu estava hospedado). Ambas sorriram e cumprimentaram-me. Eu cumprimentei-as friamente. Não sei demonstrar afeição, assim de pronto, normalmente eu preciso sempre arquitetar minhas atitudes, até para improvisar ao ser pego de surpresa, sabe-se lá como, eu consigo estar previamente preparado. O cheiro ali embaixo, que tenho quase certeza, vinha das paredes, de dentro delas, estava pior. Era um cheiro azedo, de podridão. Chegando lá embaixo (surpreendi-me comigo por ter demorado tanto para decidir tal coisa), optei por tomar café da manhã em uma padaria, não muito longe do hotel. Quando voltei, o recepcionista, sorrindo nervosamente, entregou os pontos com uma inconfundível expressão de “como diabos você ainda está vivo?”. Tendo constatado no rosto do funcionário tal exasperação, desaprovando implicitamente o meu viver, o meu “ainda” viver, senti-me estranhamente inclinado a viver. À alguns degraus de distância do quarto andar, pude ouvir alguma movimentação pouco sutil no corredor. Ao caminhar pelo corredor em direção ao meu quarto, observei que um funcionário do hotel ficou subitamente preocupado com a minha indesejável presença e apanhou desesperadamente um balde de água e esfregou a parede, com força, um produto de limpeza de cheiro muito forte de álcool. Quando me aproximei perguntei:
       – Incomodo?
       – Não, não senhor! – respondeu com tremor na voz.
       Sem que eu planejasse, meu olhar caiu sobre o balde de tinta vermelho-sangue pousado no chão. Entretanto, antes que pudesse ver ou sentir o cheiro da tinta para avaliar melhor, o pintor jogou em cima da lata uma tampa e carregou suas coisas no carrinho. Arrastou-o às pressas corredor afora. Duas portas à frente ficava a suíte em que eu estava hospedado. Abri a porta, entrei, tranquei a porta atrás de mim e atirei-me na cama. Eu tinha sérios problemas de concentração e, portanto, esqueci-me logo que corria risco de vida naquele antro melancólico e cheio de mistérios sombrios. Passei a mão pelo rosto involuntariamente e percebi que precisava fazer-me a barba. Não por vaidade (é claro que não). Mas não me restava disposição para isto. Nunca me resta disposição para tais minúcias. Porém, eu gostava de conservar-me o mais jovem possível, ao menos na aparência. Assim, eu acreditava amenizar as pressões das obrigações que jogavam sobre mim ao me perceberem. A vida cobra a todos de acordo com sua vontade. Igualmente, os homens cobram aos seus semelhantes, também de acordo com sua vontade, e percebi que quanto menos idade possuir o ser humano, menos lhe é cobrado pelos homens. A vida, no entanto, não nos faz distinção alguma. Nem de idade, nem de cor dos olhos, dos cabelos ou tom de pele. Maior sendo sua idade, você, como imã, atrai frases como: “você já tem vinte anos nas costas”. Como se, ao completar dezoito anos, você magicamente se tornasse adulto, capaz de atender à demanda de responsabilidade dirigida, costumeiramente, aos adultos. Como se as fases da vida fossem impostas pela natureza e não fossem conceitos sociais abstratos que não existem efetivamente em campo físico. Como se todos fossem sujeitos a sofrerem místicas mudanças de comportamento para tornarem-se adolescentes, adultos, idosos e etc. Para tentar livrar-me disso, tento manter fresca minha aparência, o rosto mais de menino que puder, para que ao me olharem, mesmo sabendo de pronto que tenho vinte anos de idade, eu possa atrasar um pouco tal conclusão, ao enganar os olhos de quem me vê. Dos que não sabem minha idade, é ainda mais fácil, pois a única certeza que eles têm é a que lhes é concedida pela visão.
       Na hora do jantar, abri cautelosamente a porta da minha humilde suíte e adentrei o corredor. Atento à tudo e à todos. Quando já me aproximava das escadas, ouvi atrás de mim, o início de uma sessão de passos femininos. O sutil estampido oco ecoava corredor adentro. Abstive-me ante o primeiro degrau e olhei para trás. Vi uma menina de roupas casuais, daquelas que se usa para ir até a padaria da esquina e na ausência do pijama que foi posta para lavar, ou na ausência de disposição para trocar pelo uniforme de dormir, se deixa no corpo para deitar-se. Apesar de o som revelar-me que ela calçava um salto fino e firme, daqueles que se usa com vestidos chiques, meus olhos desmereciam a sentença do áudio e me mostravam que a menina calçava um par de sandálias altas. Vendo que eu a olhava, sorriu-me, graciosamente. Tinhas os cabelos claros, mas não muito. Parecia ser do tipo que não tem o hábito de pentear-se nunca. Umas mechas escorridas ocultavam as laterais de seu rosto fino e solene. Sorri de volta, gentilmente, e pus-me a descer lentamente os degraus, permitindo assim, que ela se aproximasse. Esperando que caminhássemos juntos ao corredor do primeiro andar, que levava ao salão de jantar.
       Lá jantamos. Eu em uma mesa e ela em outra. À uma distancia de quatro outras mesas um do outro. Olhávamos de soslaio vez ou outra. Ambos comemos bastante pouco e, primeiro eu, depois ela, voltamos aos nossos respectivos quartos. Sei que ela subiu depois de mim porque ouvi seus passos sincopados ressonando no corredor.
       Mais uma noite morna. Coloquei em um aparelho de som empoeirado, um CD qualquer de Marilyn Manson. Entre a garrafa de cachaça mineira que estava pela metade e a garrafa virgem de vodca, optei por despertar a vodca caloura. Peguei meu caderno e meu lápis e tentei escrever algo, qualquer coisa que fizesse aumentar a angústia da pessoa que encontrasse meus escritos após minha morte prematura. À esta pessoa, meu estreito talento para a escrita lhe pareceria um imenso talento. Curto, pois não teve a chance de ser desenvolvido. O que acrescentaria lamento à fatalidade à mim ocorrida. Mas enfim, acordei no dia seguinte e ainda era noite. A primeira explicação que me veio a mente foi a de que o sol havia esquecido de dar as caras, pela primeira vez na história da humanidade. Ou quem sabe, a escuridão se desse decorrente de um eclipse do qual eu não fora avisado? O que não é muito improvável, uma vez que eu não presto atenção à grande parte dos pormenores que me cerca, não digno atenção à essas minúcias que fazem órbita em torno das pessoas que me orbitam. Desliguei o som onde girava desenfreado um álbum de Marilyn Manson. Mesmo apesar de o som estar desligado, meu amigo Manson não parou de cantar. Na busca da certeza absoluta, mesmo sabendo que o som não vinha das caixas de som de dentro da minha suíte, retirei o aparelho da tomada e constatei que Manson continuava a gritar uma canção animadoramente "assustiva". O telefone tocou, fazendo-me sobressaltar. Atendi.
       - Alô?
       - Boa tarde, senhor Carlos. O perigo está crescendo, estou ligando para pedir-lhe encarecidamente que não deixe o hotel hoje.
       - Porque não? – perguntei.
       - Porque não é seguro. Entendo que não é seguro aqui dentro tampouco. Mas ao menos dentro das paredes desse hotel, teremos alguma diversão.
       Pude sentir um sorriso moldando aquelas frases, o que, é claro, me assustou um pouco. Sorri, sem omitir, por precaução, deixando o perceber minha indiferença. Privando-o do prazer de ver-me assustado ou confuso. Afastei as cortinas após pôr o telefone no gancho para procurar no céu algum vestígio de resposta, ao menos. Não havia céu. Onde deveria estar algumas nuvens, e além delas algum céu, havia um oceano. Ou seja lá que nome tenha uma enorme quantidade de água, em seu mais puro estado líquido, flutuando no lugar das nuvens. Mas acho que ainda não tinha nome um fenômeno desses. Atrás de mim, baterem à porta com tamanha força. Nada ouvi dizer da boca da pessoa que espancava a pobre porta de madeira branca, mas sabia que ao fazer calar aos lábios o desespero, era mais do que gritar. Uma enorme demonstração de desespero, ainda maior que o desespero demonstrado aos berros. Pois ainda trazia ao desesperado a incerteza de estar sendo ouvido. Abri a porta, um pouco emburrado com a falta de educação do indivíduo, e me deparei com um rosto solene que me fez sentir alívio e abandonar o mau humor que eu havia armado contra quem assolava a porta de minha suíte.
       - Oi, deixa eu entrar? – perguntou com a voz doce e sedutora, e foi-se entrando.
       Apesar de manter uma aparente, e até convincente calma, transparecia-lhe, na mesma intensidade, o pavor. Entrou no quarto e, de supetão, virou-se e mandou que eu fechasse a porta e a trancasse. Obedeci. Ao fechar a porta me veio a mente a preocupação com o estado de minha suíte. Na cama, mau havia lugar para sentar-se. Ao virar-me para dentro do quarto, vi-a sentada na cama. Havia encontrado um espaço naquela bagunça. Era a habilidade exclusivamente feminina de lidar com a bagunça de qualquer homem.
       - Desculpe-me invadir dessa forma o seu quarto. – disse gentilmente.
       - Tudo bem, só não repara a bagunça. – pedi, e forcei-me a mexer em alguma coisa aqui e ali, fingindo arrumar, ou fingindo tentar arrumar.
       A menina dos cabelos desgrenhados e oleosos, que lhe caíam nas laterais do rosto, formando um wide-screen no ângulo de noventa graus, olhou ao redor com certo espanto leviano.
       - Impossível não reparar. – e sorriu como quem não da importância.
       - Mas então... Está tendo uma chacina no corredor, ratos no seu quarto, ou o que? Não me entenda mal, é um prazer recebê-la aqui. Só por curiosidade. – perguntei, imediatamente arrependendo-me, ao sentir-me um tanto grosseiro.
       Ela se limitou a pedir algo para beber e eu percebi, inexplicavelmente, que não se tratava de algo que matasse a sede do corpo, mas sim, a desidratação das emoções. Entre vodca e cachaça, ela optou pela vodca. Bebemos juntos, o resto da tarde negra, naquele quarto de hotel. Conhecemo-nos, contradizemos-nos e percebemo-nos muito semelhantes na essência de nosso ser. Muito embora nossas ideias se confrontassem em diversos pontos. Obviamente eu não tentei cortejá-la. Eu tinha o meu orgulho. Sou do tipo que só prepara o terreno, molha a horta, mas deixo que os outros colham e me entreguem nas mãos os frutos. Tentar colher os frutos dela, significaria trair a minha querida Sandrinha. Mas dar umas bagunçadas sinistras com aquela bela menina não me faria amar menos minha adorável Sandra. Eu sei que no fim de minha vida, sempre vai me restar aquela velha opinião acolhedora: “ao menos eu curti a vida”.
       Do corredor soou o berro de uma criatura. Parecia-me o urro arrancado da garganta de um ser alienígena. Impôs medo, instantaneamente, em mim e na menina. Abracei-a, e ela não demonstrou nenhuma objeção. Aguardamos o destino, quem sabe fatal, que nos advinha, encurralados pelo medo (ótimo nome para um filme do qual eu me sentia pertencente, aliás). Entretanto, mais tarde, encorajados pelo álcool, depois que o perigo silenciou por algum tempo, abrimos lentamente a porta, afim de verificar o corredor. A princípio havia silêncio no corredor. Mas enquanto olhávamos para a direita, à esquerda uma porta se fechou, quase que imperceptivelmente. Ouvimos somente o pequeno estalido da lingueta da porta. De supetão, olhamos naquela direção. Dei um passo à frente para ter uma visão melhor do corredor estendido a nossa esquerda e não vi nada demais. Mas então, atrás de mim, ouvi um certo gorgolejar que vestia uma melodia límpida e solene, mas não desprovida do calor do terror e do arrepiante frescor vívido do horror. Antes de verificar a origem do som crescente que se formava atrás de mim, meus olhos demoraram-se, inevitavelmente, em Bárbara. Olhos vidrados em algo, aquela expressão inexplicável por palavras que são ouvidas quando proferidas, mas lia-se nela o alerta desesperado, escrito em braile para que se decifre ao esfregar-lhe um olhar ligeiramente atento. Seus cabelos, agora negros e altamente oleosos, tinham um brilho opaco emprestado pela luz vacilante do corredor. O reflexo das partes inferiores das paredes lhe emprestavam um rubor fúnebre às pupilas. Foi-me tremendamente atormentador ver o que ela via. Ao olhar, vi um pedaço de um braço humano mutilado, tateando a parede. Um cadáver pálido e repleto de cortes profundos tentava escapar de dentro da parede. Na parede oposta, as costas de um homem, com o mesmo aspecto repulsivo do outro, desmanchava a parede deslizando de dentro dela lentamente. E logo, toda a extensão do corredor era invadida por corpos monstruosos que saíam de dentro das paredes. O sangue escorria em pavorosa quantidade de dentro das paredes, misturando-se e camuflando-se na tinta vermelha da parte inferior da parede, que agora eu compreendia, era também sangue.
       Adentramos a suíte correndo e precipitamo-nos à janela. Olhamos para cima e vimos o oceano sobre nós, revolto. Abaixo, as nuvens carregadas, ocupadas a trovoar suas dúvidas. Abri a janela. Procuramos nos olhos um do outro o consentimento, a dúvida, e por fim concordamos. Demo-nos as mãos e pulamos, caindo em direção às nuvens. Tudo pareceu cinza-escuríssimo e lento demais. A umidade me asfixiava e a certeza da solidão me acariciava. Mexendo os pés involuntariamente, logo toquei o chão. Caminhei alguns metros, sentindo-me sufocado e levemente desesperado. Muito embora meu corpo já caminhasse em alguma superfície, minha mente ainda caía em algum abismo. Senti meus braços tocarem uma parede macia, como um colchão, e senti-me, de repente, atraído por aquela superfície confortável. Contudo, não conseguia respirar e minha cabeça rodava. Senti que aquele era algum tipo de fim. O fim de um pesadelo, talvez. Percebi, para logo em seguida desperceber, que minha convicção tinha a mesma forma que a falta de convicção. Involuntariamente, empurrei com força a tal superfície e senti que não consegui empurrar o piso. Entretanto, empurrei a mim mesmo e encontrei-me em posição de fazer flexões, encarando, à alguns centímetros na minha frente, o travesseiro cinzento que me asfixiava. Do meu lado, remexia-se incomodada, como se dançasse com graça, minha formosa Sandra. Cabelos despenteados e graciosamente oleosos, sua respiração tão humana e feminina. Olhando seus olhos selados, encontrei minha redenção, que não existiria sem suas íris azuis mirando-me. Independente da distância física ou abstrata. A espessura de nossas pálpebras era mais do que o suficiente para isolarmo-nos um do outro, pois ao fechar os olhos afundamos cada qual em nossos próprios abismos. E o mais pavoroso de todos os abismos é aquele no qual a gravidade é surpreendentemente mais feroz. Esse é o abismo do passado referente a nós, que reside nas profundezas da mente do outro. Lá, nosso passado já não nos pertence, é território alheio e está sujeito às leis daquelas paragens. Negando minhas pálpebras ao passado, estatelei os olhos para o futuro... e tudo o que vi foi uma garrafa de tequila disposta fortuitamente sobre uma mesinha repleta de cigarros.

Nenhum comentário:

Postar um comentário