domingo, 26 de janeiro de 2014

Horror na estrada



                - Quando ela sumiu? – Perguntou o policial civil Afonso, responsável  interinamente pela delegacia de Vargem Verde, cidade que fica a trezentos quilômetros da capital.
                - Há uns dois anos. Já estava desistindo de tudo, então enviaram para a minha mãe, Lucia Alves, o senhor deve conhecê-la... Acho que todo mundo conhece minha mãe nessa cidade – disse Marcos ajeitando os óculos, com as mãos trêmulas e com gotas de suor escorrendo pelo lado da face.
                Um homem com boa aparência aquele Dr. Marcos, pensou o policial. Olhos pequenos, rosto firme, lembrava o ator  Sean Penn  usando óculos.  Ele continuava a falar e a cabeça de Afonso  balançava afirmativamente, sem nenhum interesse no assunto.
               -Sabe, não tive muito contato com a minha mãe. Ela é uma pessoa difícil, devo tudo a ela, mas nunca entendeu as minhas escolhas;  por isso não venho visitá-la, mas agora ela está com câncer...
               -Não se explique! -  Disse Afonso -  Não sou daqui; venho apenas trabalhar nesta cidade, cumpro meu dever de policial e vou embora. As lendas desse lugar não me interessam, pois sei que em  cidades do interior cuida-se bem da vida dos outros. Já me contaram poucas e boas do senhor e sua mãe; fofocas, coisa bestas carregadas de muita bobagem sobrenatural.
Afonso chegou perto da janela e ascendeu um cigarro, a chuva caia lá fora e anunciava alagamentos e sofrimentos.  “Que droga de lugar amaldiçoado por Deus”.
                Pensou nas coisas que Jairo disse sobre a família de Marcos. Afonso não acreditava em nada daquilo: bruxas e feitiçaria. A velha era odiada por toda cidade, mas recebia muitas pessoas de fora para “tratamento espiritual”.  Aquilo causava transtorno para o prefeito e para a polícia, até que ela adoeceu;  teve câncer  e virou uma inválida numa cadeira de rodas que nem ao menos falava.  Os vizinhos tinham medo dela. Apenas um homem surdo-mudo fazia o serviço da casa todas as manhãs,  e depois ia embora.
                - O senhor Tarso, quem é? – Perguntou Afonso.
                -Meu  irmão de criação – fez a ressalva esfregando as mãos. Fomos criados juntos, ele teve meningite quando criança e  ficou surdo – Marcos enxugou o suor da testa. 
  Afonso pensou que ele estava nervoso, mas lembrou-se do boato sobre sua  internação em um hospício e todas aquelas noticia nos jornais sobre os ataques de pânico do grande cirurgião.
                - Não me leve a mal. Eu também fui adotado, mas Tarso sempre foi o preferido dela.
                - É … Ele parece um filho dedicado – disse Afonso.  As famílias são assim... Minha mãe sempre preferia a minha irmã.
                - Não sou um ingrato, senhor Afonso!  Por isso acho bom explicar: Tenho uma boa condição financeira e minha mãe anda quase na miséria.  Sei que deveria ajudar mais, porém ela não aceita. Ela nunca aceitou a minha partida, sempre disse que médicos não sabem de nada – Marcos abaixou a cabeça – ela considera um absurdo tudo o que  eu digo.  Nos amamos,  porém temos  opiniões divergentes.  Eu fui  adotado por ela e recentemente conheci a minha mãe biológica...  Sabe,  de repente descobri que tenho afinidades com ela. Isto é como ter uma segunda mãe.
                - Diante de tudo isso, essa mensagem vem parar exatamente aqui!  – Disse Afonso abrindo mais uma vez a caixa. – Não gosto disso!  Tenho uma sensação ruim aqui na minha clavícula e,  na última vez que tive essa sensação, perdi um irmão assassinado.
                - Acho que quem a enviou, queria ter  a certeza que eu  a receberia.
                A caixa estava aberta e,  o que os olhos viam, assustava até mesmo um médico experiente como Marcos.  Seus sentimentos por Lúcia ainda eram fortes e suas esperanças foram violentamente abalada por aquela mensagem. Ao longe um trovão abalou o silêncio do momento, seguido por outro.  Afonso estava há seis meses na polícia e pensava seriamente em mudar de atividade assim que pudesse.  Era baixo, usava um bigode que lembrava filmes antigos e tinha uma expressão facial do Mazaropi.
                - Não há nada que eu possa fazer aqui.  Tenho que levar a evidência e o senhor para a capital, como sabe.  Pode repetir a história novamente?
                Marcos parecia estar cansado de repetir toda a história, porém o  fez mais uma vez.  Conheceu Lúcia na estrada da vida há dez anos atrás, quando deu uma carona para a jovem morena que pulou à frente do seu carro.  Bonita e com uma expressão trite,  Lúcia cativou o médico.
               Ela tinha uma expressão meiga e começaram então a sair depois daquele encontro. A menina morava sozinha em um quarto no centro da cidade e lhe disse que seus pais eram do interior.   A verdade é que Marcos nunca os conheceu.  Quando foram morar juntos, repentinamente, ela se propôs visitar a mãe adotiva de Marcos.  As duas  não se entenderam, pois a velha não aceitava outra mulher na vida de Marcos.  Voltaram para a capital e naquele mesmo  dia, quase se separaram.  A jovem fez com que Marcos  lhe prometesse que nunca mais a levaria naquele lugar terrível e ele cumpriu.  Três meses depois ela desapareceu.
                - Uma história de cinema! – disse Afonso. – Tem certeza de que o que está dentro dessa caixa é dela?
                Marcos tirou da carteira uma foto e disse:  - Tirei esta foto de surpresa.  Isso pode lhe ajudar.   Afonso olhou a bela jovem de cabelos negros e sorriso aberto.
                 -Muito bonita, realmente.  Olhos castanhos … Pode ser!  – Fez um gesto com as pernas  e depois levantou-se – Acho melhor o senhor reportar-se ao delegado da capital. Temos um  ônibus que vai sair em uma hora; pegue as suas coisas que arranjo uma vaga. Veja: Esse temporal vai isolar essa cidade em quatro horas,  se continuar assim, devemos partir logo! – Afonso parecia exausto. - Essa chuva tem me causado muitos problemas.                    

                O prefeito está fora e  o delegado pediu-me para levar (junto com as provas) um casal de amigos dele e uma mulher gestante em trabalho de parto prolongado.  O senhor que é  médico deve saber, parece que o filho dela está meio de lado na barriga e a polícia acaba fazendo trabalhos que não são de sua competência. Eu preciso levar um preso e umas provas, o Jairo vai ficar responsável pela delegacia;  vamos em um ônibus da prefeitura com um trator fazendo a nossa escolta (limpando o caminho e portando uma corda, para o caso  de atolarmos).  Você está de carro?
                - Não vim de carro.  Há alguns anos não posso dirigir devido a um problema de saúde. Tenho síndrome do pânico e  não posso mais operar.
                - Poderia me ajudar com a gestante?
                - Entro em pânico quando vejo sangue – disse Marcos.
                - Talvez possa nos ajudar com a gestante – insistiu Afonso – uma ajuda é melhor do que nenhuma.
                - Meu ataque de pânico não permitiria.  Sinto muito.
                Afonso teve uma sensação ruim ouvindo aquelas palavras. Aquele médico estava lhe escondendo alguma coisa, porém não ligava. Seu turno de trabalho estava acabando e logo, dali a quatro horas, estaria em algum bar curtindo o que a vida tem de melhor: o vício e as mulheres.  Já  até sentia o gosto de uma bebida na capital, livre daquela gente e, principalmente, livre do maluco de óculos com sua caixa maldita.
               -Isso é um olho humano senhor Marcos? A perícia pode determinar com mais detalhes, mas é um olho humano, não há duvida; e muito parecido com o desta foto.
   Marcos chorou. Aquele parecia um choro forçado, mas  Afonso não queria julgar ninguém.
                A chuva caia impertinente. Grandes corredeiras se formavam dificultando qualquer deslocamento a pé. Afonso teria que se deslocar até o hospital o casal, juntamente com a gestante,  estavam esperando-o lá. Reinaldo, o motorista, parecia impaciente. Gritava que logo as pontes cairiam e eles não conseguiam passar. O ônibus tinha correntes nas rodas e um reforço na estrutura que protege o motor; e tinha  sido construído para andar naquele inferno.
                - Temos que ir, policial. A chuva só vai piorar – disse Reinaldo.
                - Temos que levar outro passageiro – disse Afonso para Reinaldo.
                - Certo. Vamos logo! A chuva vai destruir as pontes.
                As gotas caiam como pedras. Afonso amaldiçoou o dia que ouviu o seu amigo Lauro lhe dizer que, no interior, a polícia é mais tranquila. Teve um trabalho imenso até juntar todo mundo e colocar o trator para andar.
                Quando a viagem começou, os passageiros se dividiram no ônibus de forma heterogê0nia: O casal sentou-se no meio;  conversavam sem parar como se estivessem de férias. A gestante amparada por uma enfermeira gemia no fundo do ônibus e tinha um soro acoplado ao seu pulso; Marcos sentava-se no primeiro banco e Afonso ficou de pé ao lado do motorista. À frente, estava um trator conduzido pelo experiente Helmer e todos andavam em uma velocidade pegajosamente lenta, escorregadia e cheia de balanços.  Na primeira hora os solavancos deixaram Marcos enjoado, e então ele levantou-se.
                - Fique sentado, senhor! – disse Afonso.
                -Estou enjoado. Você tem algum remédio para enjoo? – perguntou Marcos. Depois escutou-se um barulho tremendo e  uma sirene disparou.
                 – Ah meu Deus! O que aconteceu com o trator?
                Todos olhavam para frente. Nada do trator.
                - Deve ter feito meia volta – disse Reinaldo que conduzia o ônibus bem devagar. – A visibilidade está péssima, mas na minha frente ele não está mais.
                - Pare o ônibus! – disse Afonso – vou descer para ver o que aconteceu.
                Marcos desceu atrás do policial que tentou protestar, mas... O mundo é livre! Ele praguejou alguma coisa do tipo “o azar é seu se morrer”.  Os dois andaram por uns cem metros, sob chuva torrencial. Havia pouca visibilidade, pois já era cinco da tarde, mas... Afinal, o que havia acontecido com o trator? Olharam um pouco mais a frente, na lateral da estrada, no acostamento.
                - Olhe Afonso! – disse Marcos.
                - Oque foi? – balbuciou Afonso no meio da chuva forte.
                - Acho que ele caiu ali – disse apontando para uma enorme cratera feita na estrada.
                Afonso olhou para onde Marcos apontava e percebeu que o  buraco  na estrada tinha uns três metros de profundidade, mas estava totalmente fora da trajetória. Somente um erro grosseiro levaria o trator para aquela direção. A pergunta que Afonso estava se fazendo naquele momento era: Como um motorista experiente foi cair naquele buraco?
                - Que merda está acontecendo? – perguntou Reinaldo.
                - Alguma coisa desviou o caminho do Seu Helmer e ele caiu no buraco – disse Afonso quase gritando. Sua voz saia fina, como a de uma mulher – temos que descer lá. Há cordas no carro?
                Reinaldo fez um sinal afirmativo com a cabeça e foi buscar a corda. Afonso desceu devagar e seus pés escorregavam na lama; Marcos e Reinaldo seguravam a corda que estava amarrada no ônibus. O que Afonso viu foi terrível:  Helmer teve o corpo esmagado, seu sangue era levado pela chuva, que tudo sugava como um vampiro; e essa hemorragia  o levaria à  morte.  Antes de morrer, ele disse umas palavras:
                - Afonso, fuja! E leve essa gente com você. Uma coisa horrível... Eu vi uma coisa horrível!
                - Não diga nada. Você perdeu muito sangue. Vamos pegar o macaco do ônibus para levantar o trator e retirá-lo daí; depois voltamos para Vargem Verde.
                - A coisa me atacou e disse que a cidade deve pagar pelo que fez....
                - Como é?
-A mãe do médico, a velha bruxa – ele tossiu, pela boca saiu uma quantidade sangue. Tarde demais, Helmer estava morto.
 Afonso pediu que o ajudassem a subir.
                - Vamos voltar para Vargem Verde! - Quando Afonso disse essas palavras,  já estava dentro do ônibus. Ele não comentou  nada do que Helmer  lhe disse.  Marcos permanecia calado. Reinaldo estava resignado, afinal, estavam apenas a cem quilômetros de Vargem Verde, poderia voltar para casa e dormir em uma cama quente.
                Afonso foi até o médico e gritou.
                - Que diabos está acontecendo aqui?
                - Não tenho a menor ideia - disse Marcos.
                - Helmer falou que toda essa merda é obra de sua mãe – disse Afonso.
                - Você acreditou em tudo? Sobrenatural.
                -Vamos voltar! – disse Afonso.  Na delegacia quero ouvir essa história novamente.
                A enfermeira foi a primeira a se manifestar:
                - Não podemos! A criança dela está atravessada e logo vai sentir dores muito fortes, assim morrerá.  Marcos concordou com a cabeça.
                -Eu tenho negócios. Se não chegarmos à capital, perderei muito dinheiro – disse o amigo do prefeito, enquanto a sua mulher esboçava uma gritaria.
                Afonso pegou a sua arma.
                -Estão vendo isso? Isso é a minha autoridade. Vamos voltar para Vargem Verde. Nada mais tenho a dizer e quero todos calados no caminho de volta;  já temos um bom homem  morto debaixo de um trator  por tentar nos ajudar.  Não quero ninguém mais morrendo! – Ele apontou para a enfermeira e para Marcos que desviou o olhar.
                 – Você tem que cuidar dela. Sei que é experiente e já viu o Dr. Mauro, antes de morrer, fazer dezenas de cesarianas. Agora é a sua vez.
                O caminho foi lento. A  chuva parecia aumentar e muitos tentavam secretamente usar o seus telefones celulares. Afonso nem  tentou. Sabia que telefones não funcionavam ali e que estavam por conta própria, jogados à própria sorte. Ninguém mais poderia saber pelo que eles passavam naquele momento. Ninguém.
                O pneu dianteiro direito do ônibus estourou. Reinaldo parou o veículo.
                - Merda! Vamos perder de uma ou duas horas trocando o pneu. Já está ficando tarde e essa grávida não para de gritar.
                 -Vamos! – disse Afonso.
                 Todos tiveram que descer do ônibus. A lama cobria os joelhos e a água caia com força. A gestante começou a gritar de dor, nada amenizava o seu sofrimento, nem mesmo as injeções de remédios. A gritaria e a noite deixavam o ambiente tão desesperador que se sentia um arrepio constante nas costas. Pensamentos ruins passavam pela cabeça de todos.
                - Cala a sua boca! – disse o amigo do prefeito. - Estou ficando louco com sua gritaria, sua grávida de merda! Na hora de fazer, o gritinho era outro....
                Marcos queria esmurrar aquele homem. Afonso ignorou, pois estava pensando em coisas mais importantes.
                A gestante deu um grito ainda mais forte, seguido de outro.  Afonso pediu para o amigo do prefeito se afastar,  com a arma em punho. Com medo, o homem retrocedeu. Afonso ficou na frente da gestante que gritava de dor.
                - Alguma chance dela parar? – disse o policial.
                - Não – disse a enfermeira que se aproximou de Afonso, falando próximo ao seu ouvido – em algumas horas ela estará morta, se não chegarmos ao hospital.
                - Vamos chegar! Darei um jeito de chegarmos a algum hospital – disse Afonso.
                Marcos aproximou-se do policial e disse:
                - Vou tentar. Acho que posso ajudá-la, mas temos que chegar ao hospital. Posso dar o meu máximo... Ainda tenho conhecimentos de obstetrícia – disse pegando uma medicação em uma maleta e injetando no soro. – Isso vai retardar o parto, mas se não chegarmos ao hospital ela vai morrer.
                Afonso balançou a cabeça afirmativamente.
                - Cadê a minha mulher? Onde está a Karla? – disse o amigo do prefeito.
                - O que aconteceu com ela? – perguntou Afonso.
                - Foi atrás daquela arvore fazer xixi e desapareceu.  Já procurei... Meu Deus, o que eu vim fazer nesse fim de mundo?
                Afonso correu até o pé de manga.  Teve dificuldade pois havia muita lama. Nada. Nem uma pista. O amigo do prefeito começou a chorar e gritar o nome de Karla. Minutos depois, Afonso e Marcos faziam o mesmo; estavam exaustos  e com as pernas  atoladas  no meio da lama.
                Ficaram caminhando nesse delírio por horas. A chuva molhava mais que a alma, os olhos nem podiam ser totalmente abertos, os gritos por Carla somavam -se à gritaria infernal da  grávida, alguma coisa esbarrou junto com a enxurrada na perna no amigo do prefeito. Um galho solto entrou em sua coxa e rasgou quarenta centímetros da sua carne, fazendo com que o sangue que saia da parte posterior de sua  coxa misturasse com o barro e com a lama.  A dor deve ter sido intensa, pois o homem magro, de face feminina e jeito educado perdeu os sentidos. Marcos olhou para ele e teve a certeza de uma lesão na artéria femoral. Afonso tentou  correr para ajudar o homem que empalideceu. Correr é um eufemismo diante da lama, da enxurrada e da chuva pesada. Os movimentos pareciam em câmara lenta e a noite começava a aparecer. O farol do ônibus iluminava, mas a escuridão fora daquele clarão era quase que total. Marcos e Afonso estavam usando uma pequena lanterna que iluminava o caminho de uma forma precária e macabra.
                Quando avistaram a mulher andando com dificuldade pela lama, havia alguma coisa errada com o pescoço dela que estava tombado, reclinado e preso  por fios de aço. Olhar aquilo, por si só,  já dava vontade de vomitar. Marcos teve um acesso de pânico e o amigo do prefeito misteriosamente acordou, tirando forças ninguém sabe de onde, e correu pela lama gritando desesperadamente.
                - Karla, você está bem?
                - Amigo pare! Há alguma coisa errada com ela - disse Reinaldo.
                O homem, usando de uma força sobrenatural, correu o que pode. Seu rastro de sangue apavorava as pessoas que assistiam a tudo imóveis. Quando chegou perto da mulher, parou como se estivesse enfeitiçado; tudo  ficou congelado, frio. Todos podiam ouvir seus corações e uma fração de segundos se passou onde apenas o barulho da floresta foi ouvido. Até que a mulher ergueu as mãos, segurou a cabeça do marido que não ofereceu resistência e, mesmo com o pescoço tombado,  mordeu a sua face arrancando um pedaço  e depois outro.
                - Que lugar dos infernos! – gritou Afonso que foi atirando na direção de Karla. Uma das balas acertou a cabeça da mulher, que caiu.
                - O que fizeram com eles? São mortos-vivos! Será que a lenda é verdadeira? – disse Reinaldo.
                - Que lenda?– disse Marcos.
                - Um zumbi (português brasileiro) ou zombie (português europeu) é uma criatura cujo esteriótipo define-se nos livros e na cultura popular tipicamente como um morto reanimado, usualmente de hábitos noturnos, que vive a perambular e a agir de forma estranha e instintiva; um morto-vivo; um ser privado de vontade própria, sem personalidade. Histórias de zumbis têm origem no sistema de crenças espirituais e nos rituais do Vodu afro-caribenhos, que contam sobre trabalhadores controlados por um poderoso feiticeiro – Reinaldo disse. – Neste lugar há muito tempo atrás, diziam que haviam mortos-vivos, gente que morreu e continuava vagando, alimentando-se de outros seres vivos. Sua mãe me contou essa história. Sabe que eu tinha muito medo daquela velha, não é?
                - Minha mãe é praticante de Vodu. Ela também me contou essa história...
                  -Querem calar a boca! – disse Afonso. Ele estava olhando para Karla. Somente a última bala que a atingiu entre os olhos derrubou aquilo. Sua pele estava fosca e havia muito sangue do amigo do prefeito. Afonso apontou a arma para a cabeça dele e disparou.
                   -Por via das dúvidas... Não acredito nessa história, mas não vou ficar esperando que um indivíduo se levante e venha comer a minha carne.
                - Que vamos fazer? Temos que voltar para a cidade e a grávida esta gritando de dor – disse Reinaldo.
                Afonso olhou para Reinaldo com desprezo. Seus cabelos sujos pela lama e grudados na cabeça davam a ele um aspecto de louco.
                - É tudo culpa dele!– disse Reinado apontado para Marcos. A mãe dele é a bruxa dessa cidade! Sempre foi. Sempre trouxe o mal junto dela. Quando eu era criança, ouvia coisas horríveis que ela fazia com meninos e meninas... Agora dizem que ela está morrendo de câncer e quer levar a cidade junto com ela.
                - O que minha mãe tem com tudo isso? Muito do que falam dela é mentira! -disse Marcos.
                - Nós sabemos, doutor, que o senhor ficou no hospício – disse Reinaldo. Em uma cidade pequena sabe-se de tudo – disse encarando  Afonso que ainda estava de olho no amigo do prefeito e escutava a discussão cuidadosamente.
                - Fiquei porque nasci assim. Não tem nada de estranho no fato de uma pessoa ter síndrome do pânico. Não sei o que minha vida pessoal tem com essa merda toda!
                - Calem a boca! Essa conversa não vai chegar a lugar nenhum! – disse Afonso.
                - Na cidade dizem que o senhor recebeu os olhos de sua esposa pelo correio... Pode ser que ela esteja viva e bem na casa de sua mãe, senhor Marcos. A velha é uma praticante de magia e arrancou os olhos de sua mulher porque não gostava dela. O senhor sabe que ela fez isso! Por isso veio aqui... Quer que ela pague, mas tem medo dela.
                - O senhor ficou louco?
                - É adotado não é? Ela roubava crianças e as oferecia  em sacrifício. A gente ouvia os gemidos e isso deixava muita gente doida – disse Reinaldo. Não sabe nada sobre aquela velha... Antes de morrer ela vai destruir essa cidade. Vivo aqui a minha vida toda, ela vai acabar com a cidade... ela acha que a cidade lhe pertence.
                Um grito aterrador ocorreu. Era a mulher grávida.
-Ela está morrendo! Temos que tirar a criança agora! Aqui e agora – disse a enfermeira. – Pode ajudar doutor?
                O médico começou a tremer e suas mãos estavam suadas. Ele vomitou, depois caiu para frente. Afonso tentou levantá-lo, mas ele manteve a face na lama. Reinaldo ajudou a erguê-lo; seus olhos estavam virados, parecia em transe. Afonso bateu com a mão espalmada na face duas ou três vezes até que o médico começou a chorar e chamar a mãe.
                - Ele está tendo a porra de um ataque de pânico! – disse Reinaldo.
                - Doutor, nós  precisamos do senhor! – gritou Afonso.
                Como um robô, sem escutar direito o que Afonso estava falando e com as mãos trêmulas, Marcos pegou na maleta o velho bisturi. Jogou um pouco de álcool na barriga da grávida e, quando ia cortá-la, Affonso perguntou segurando o seu ombro:
                - Ele vai corta - la?
                - É – disse Reinaldo.
                - Salvará a vida do bebê. – Disse a enfermeira.
                Marcos passou o bisturi apenas com cuidado para não ferir a criança, depois retirou -a. A mulher não sobreviveu.
                - Que merda! – disse Afonso olhando todo aquele sangue, lama e chuva. No meio de tudo... Uma menina.
                Marcos entregou a criança para a enfermeira, mas o que viu não pode ser traduzido em palavras. Em toda a sua vida nunca viu algo tão macabro: Centenas de pessoas andando pela lama, devagar, com faces deformadas e  pescoços tombados. Duas coisas eles tinham certeza: Primeiro, eram todos habitantes da cidade; a outra é que estavam todos mortos.
                Afonso começou a atirar e depois gritou.
                - Corram!
                Então fez o último disparo.
                Alguma coisa agarrou a enfermeira, ela desequilibrou e para proteger a criança caiu batendo a cabeça no tronco, Afonso olhou para o lado esquerdo onde estava Reinaldo, ele havia desaparecido, Marcos estava parado e olhava fixo para a mulher mais velha que conduzia a multidão, aquela mulher que um dia chamou de mãe.
                -Doutor precisa pegar a criança – disse Afonso.
                -A enfermeira está morta, precisa segurar a criança, eu vou tentar pegar o rifle e a outra pistola que estão no ônibus.
                -Não quero ficar sozinho aqui – disse o médico.
                -Todos nós estamos sozinhos nesse mundo Doutor, pegue a criança se eu não voltar corra o máximo que puder...
                Ele nunca voltou.
                Marcos não sabe quanto tempo andou, nem quantas horas ouviu o choro da criança, mas quando chegou a estrada havia um carro parado uma chave no banco do carona, roupas para a criança, alimento, e uma carta.
                Onde havia os dizeres:
                -Chama-me de “Lucia” é um presente meu para você, depois de um tempo vai entender tudo.
                 Marcos ligou o carro, queria sair dali o quanto antes. Não havia mais medo, Lucia estava do seu lado, ele conseguia enxergar, finalmente a chuva parou e tinha o seu amor de volta.

              -Ela é linda não é? - disse Lucia. Marcos sorriu, sabia que tudo era coisa da sua cabeça da loucura. A criança chorou, tinha que sair dali antes de perder a sanidade definitivamente.

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