segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

O maldito planeta kb23

O Maldito Planeta KB23



Soava o alarme que indicava o vigésimo quarto dia de missão. Fazia-se necessária a troca da capa impermeabilizante da nave, caso contrário os microorganismos a consumiriam em poucas horas. Os três tripulantes haviam aterrissado no planeta KB23 às exatas dezessete horas do dia 21 de janeiro de 2094 com a missão de instalar a primeira base para pesquisas. O planeta era habitado apenas por organismos microscópicos desconhecidos que se alimentavam de ligas metálicas. A capa foi projetada para suportar apenas quatro dias e precisava ser trocada pouco antes disso. Era a vez de Beatriz, mas coincidentemente sua menstruação havia chegado, deixando nas mãos de Roberto a tarefa nada agradável. Precisava vestir um traje rosa-choque feito do mesmo material da capa para não ter o corpo atacado pelas minúsculas criaturas. Conseguiria convencer Carlos facilmente, mas este estava em outra missão, uma busca de campo para recolher amostras que seriam congeladas para análise na base.

Ainda resmungando muito, subiu até o topo da nave e acionou o botão de desintegração para eliminar a capa contaminada. Em seguida, retirou três rolos do compartimento, acoplou-os nos três pontos principais (parte frontal e as duas laterais) e acionou a alavanca. Em questão de segundos a nave triangular foi recoberta pela capa nova e assim ficaria por mais três dias e meio. Voltou para o interior da nave com cara de poucos amigos.
- Droga! Carlos está demorando muito nessa missão! Deve estar vendo pornografia holográfica, aquele maldito!
- Você reclama demais – disse Beatriz, um tanto zangada. – Ele foi para a região montanhosa. Não seria nenhuma surpresa demorar tanto, com aquela barriga que ele tem e os equipamentos que levou. Tente contatá-lo pelo transmissor.
- Fiz isso há dez minutos, e nem havia sinal. Pensei que estava passando por uma tempestade de poeira.
- Não há previsão de tempestade para esta semana. Você não estava fazendo o monitoramento da meteorologia?
- Estava na semana passada, mas como praticamente não havia nenhuma mudança, achei produtivo perder meu tempo com coisas mais úteis.
- Como o quê? – inquiriu Beatriz, olhando atravessado para Roberto.
- Com a base, ora bolas – respondeu Roberto, surpreso com a pergunta. – Não está totalmente pronta. Preciso instalar os compartimentos das capas e os reservatórios para amostras. E você, o que anda fazendo além de reclamar dessas malditas cólicas?
- Estudando esses microorganismos.  Ontem fiz uma descoberta interessante sobre eles.
- Sério? Descobriu finalmente que são malditos e insuportáveis? – zombou Roberto.
- Insuportável é você! O que descobri é realmente interessante. Notei que em intervalos de 48 horas esses microorganismos simplesmente desaparecem, voltando a repovoar a nossa nave poucas horas depois. O que ainda não descobri é o que acontece nesse intervalo de tempo. Suponho que tentam buscar outra fonte de alimentação, mas como não encontram, acabam voltando.
- E quantas vezes fizeram isso?
- Até agora, três vezes, mas acredito que estejam fazendo desde que chegamos.
- Nenhuma novidade até ai. Se fossem seres inteligentes, já teriam nos abandonado há muito tempo. São apenas malditos insistentes e se não terminarmos a base em duas semanas, finalmente vão penetrar a nossa nave – disse Roberto, com raiva.


Beatriz pegou o transmissor e tentou localizar Carlos. De fato não havia sinal. Roberto tentou contato através do rádio, mas não havia nada além de estática. Como a noite durava mais de dezesseis horas, eles resolveram realizar as buscas antes do anoitecer. Vestiram os trajes impermeabilizantes e levaram suprimentos para a jornada.

Ainda era tarde, e apesar dos dois sóis que iluminavam o planeta, fazia frio. Roberto olhou para trás e viu a mancha marrom se espalhando pela nave. Beatriz sorriu, demonstrando nenhuma surpresa.
- São realmente rápidos – disse ela.

Seguiram exatamente o mesmo trajeto traçado pelo computador que os levaria a uma cadeia de montanhas na região norte do “setor 9”. Avistaram uma extensa faixa dourada onde pepitas de ouro pareciam brotar da terra. Não estava nos planos da tripulação coletar ouro, mas Roberto havia firmado compromisso de levar uma quantidade suficiente que lhe garantisse sua aposentadoria ao retornar à Terra. Cruzaram a pequena cordilheira até chegar a uma extensa cratera. Roberto segurou o braço de Beatriz abruptamente e ela acabou sendo projetada bruscamente para trás, caindo de bumbum no cascalho.
- O que você está fazendo?! – resmungou Beatriz.
- Olhe aquilo! – disse Roberto, apontando para um ponto brilhante no centro da cratera.

Beatriz ficou estupefata. O objeto era retangular e aparentemente metálico. Somente seres inteligentes seriam capazes de produzir tal peça. Ficou surpresa, pois sabia que ninguém havia aterrissado no planeta antes deles. Roberto, pelo contrário, não demonstrava qualquer surpresa.
- Depressa, Roberto. Precisamos ver o que é aquilo. Além disso, Carlos pode estar lá.
- Acho difícil, mas como sei que não poderei convencê-la do contrário...

Ao aproximarem-se, eles percebem que havia destroços do que parecia ser uma nave. Um dos três propulsores ainda soltava uma tímida fumaça, e partes da carenagem se desmanchavam lentamente. Havia ferro retorcido em um perímetro de duzentos metros. Beatriz não conseguia esconder o seu espanto, como se tivesse revivido o pior de seus pesadelos. Um pouco mais a frente, avistaram um corpo encostado no que restou da cabine principal. Sentindo um forte cheiro de óleo queimado, aproximaram da carcaça. O painel principal ainda funcionava, exibindo a rota que a nave deveria seguir até a aterrissagem. Dois assentos estavam no lugar, e um terceiro fora arrancado por conta do impacto. Havia suprimentos espalhados pelo piso, muitos já estragados devido à falta de refrigeração. Beatriz ignorou o corpo e seguiu para o interior da nave.

A nave estava completamente contaminada. Sua superfície estava coberta por microorganismos que a devoravam lentamente. No interior havia sinais deles nas paredes e em um dos compartimentos onde seriam guardadas as capas. Beatriz percebeu que seu traje estava mudando de cor. Sentiu repugnância, uma aversão que a fez ter ânsia de vômito. Recuou ao ouvir o chamado de Roberto.
- Ele ainda está vivo – disse ele, espantado.
- Impossível! O impacto foi muito intenso. Além disso ele não está usando o traje especial.
- Está respirando! Olhe bem.

De fato estava respirando. Mesmo sem o traje, milagrosamente seu rosto não apresentava qualquer mancha. Beatriz fitou o homem que parecia ter uns quarenta anos, caucasiano. Estava sangrando na têmpora esquerda, e a boca estava levemente aberta.
- Eram três tripulantes... Onde estão os outros? – perguntou Beatriz.
- Não sei... A porta da nave estava aberta. De repente sobreviveram...
- Sem os trajes? Impossível! E me parece que não levaram suprimentos. Agora não consigo entender por que os comandantes da estação mentiram para nós...
- Sobre o que?
- Disseram que seríamos os primeiros a visitar esse planeta, e ao que parece outros chegaram antes de nós.

Roberto fingiu que não escutou. Aproximou do homem, examinando suas feições. Quando tentou verificar o seu pulso, eles ouviram passos. Beatriz se virou e viu uma sombra se aproximando. De repente uma voz ecoou detrás dos destroços.
- Não toquem nele. Está morto!

Um homem alto, usando o traje especial, aproximou-se dos dois. Segurava uma barra de ferro na mão esquerda, pronto para atacar.
- Este homem ainda respira – disse Beatriz, recuando para perto de Roberto.
- Ele não. Os vermes respiram.
- Do que está falando? – inquiriu Roberto, em posição de defesa.

O homem se aproximou do corpo e apontou a barra para sua cabeça. Num único golpe, rachou o crânio. Vermes escorreram pela massa encefálica e se contorciam sobre o seu peito. Beatriz vomitou e ficou incrivelmente pálida. Roberto ficou absorto.
- Esses vermes precisam de dióxido de carbono, por isso invadem o cérebro para comandar os pulmões. Isso explica a respiração do meu finado companheiro.
- Mas segundo os relatórios da estação, esse planeta era habitado apenas por bactérias e outros microorganismos... – protestou Beatriz, ainda fraca.
- Creio que você foi recrutada para esta missão, estou certo? Por isso não sabe a verdade...
- Que verdade?
- Não diga a ela – interrompeu Roberto.
- Parece que seu amigo também sabe... Como não recebo ordens de ninguém, vou lhe contar a verdade. Esta já é a terceira missão neste planeta. Na primeira tentativa, perdemos contato com a tripulação, e a nave simplesmente desapareceu. Formei uma equipe de resgate e descemos dois meses depois. Um defeito em uma das turbinas fez com que pousássemos emergencialmente, mas algo fez com que a nave se chocasse violentamente contra o solo. Fui o único sobrevivente. Estou aqui há dois anos.
- E você sabia disso, Roberto? – perguntou Beatriz, olhando fixamente para ele.
- Sim. Fui eu quem planejou essa missão de resgate. Não contei a verdade para garantir que fosse um sucesso.
- Claro que foi um sucesso, maldito! Carlos deve estar morto agora, por sua causa!
- Não esteja tão certa disso. Eu vi um homem gordo passar por aqui. Sei onde ele está.

Beatriz ficou em silêncio, tentando reorganizar suas ideias. Estava desconfiada do misterioso sobrevivente da primeira missão. Como saber se estava mesmo falando a verdade? Os dois sóis estavam se ponto ao sul e logo anoiteceria. Precisava pensar rápido.
- Qual o seu nome?
- Alexandre Lopes, mas pode me chamar de Alex.
- Muito bem, Alex, leve-nos até ele. Se estiver mentindo, nós o mataremos.

Uma sombra extensa os seguia anunciando o frio anoitecer do planeta KB23. Os três subiam a montanha coberta por curiosas espécies de samambaias azuis. Uma brisa ou outra cortava o inquietante silêncio daquele maldito lugar. Roberto notou que seu traje estava mudando de cor rapidamente. Olhou para Beatriz e percebeu que o dela pouco havia mudado. Alex não parecia se importar com as bactérias.

Depois de uma curta descida pelas folhagens azuladas podia-se ver um abrigo montado ao pé da montanha. Beatriz voltou a ficar animada, com esperanças de que Carlos ainda estivesse vivo. Roberto seguia com cautela, vigiando os passos de Alex. Ele estava mais sério, nada contente com essa caminhada. Beatriz não o mataria, em nenhuma hipótese. Tinha medo até de matar uma barata. Ficou surpreso com o tom de ameaça com que ela se dirigiu a Alex. Nunca foi ameaçado por uma mulher, mas naquele momento sentiu na pele a sua fúria.

Saía fumaça de dentro do barraca. Os equipamentos estavam jogados no chão, todos quebrados. Havia rastros de sangue perto da entrada. Beatriz, desanimada, queria ver se Carlos estava lá dentro, mas Roberto a impediu.
- Fique aqui. Você não está pronta para ver isso.

Alex ficou fitando Beatriz, inexpressivamente. Ele parecia saber exatamente o que aconteceu com Carlos. Beatriz já desconfiava disso, mas não entendia por que ele quis levá-los até o corpo de seu companheiro. Poucos minutos depois, Roberto voltou igualmente inexpressivo.
- Os vermes o atacaram também. Estava respirando, mas não havia pulso – disse ele, num tom de voz grave e automático.
- Droga! Precisamos sair desse planeta imediatamente! – gritou Beatriz, desesperadamente.
- Ninguém vai sair daqui – disse Alex, retirando o seu traje especial.
- Alex, o que está fazendo?! Será contaminado se retirar o traje!
- Não há perigo algum – interrompeu Roberto, também tirando o traje. – As bactérias não são perigosas.
- Está louco?! Então quem matou Carlos?

Roberto e Alex tiraram a roupa e ficaram completamente nus. De repente suas peles ficaram vermelhas e terrivelmente inchadas. Ulcerações se espalharam pelo corpo deles, expelindo um pus azulado. Beatriz ficou horrorizada.
- O que está havendo com vocês?

Eles não responderam. Ficaram parados enquanto vermes gigantes saiam de seus estômagos e saltaram sobre Beatriz. Ela desmaiou no mesmo instante, e nem percebeu quando penetraram seu ventre.

Nenhum comentário:

Postar um comentário