terça-feira, 4 de junho de 2013

Dance Of Death

 O encontro estava marcado e, sem dúvidas, era com o meu saudoso amigo e escritor, Marcos Leite. O local seria dentro de uma modesta praça pública mineira ("modesta" é um termo cortês, confesso, porque era a terceira praça da região, alçada com um bloco de concreto triangular junto a alguns banquinhos de cimento em volta). Meu nome? Mauro Alves, muito prazer. Pegue a melhor garrafa de gim que tiver e sente aqui do meu lado, pois tenho algo a dizer.
       Minha vida toda trabalhei como médico cirurgião em um hospital público caindo aos pedaços, um submundo que a cada dia virava de cabeça para baixo devido a má politicagem em nosso país. Porém, quem sou eu para efetuar críticas quanto a isso. O que fiz de errado (e é algo que vou contar-lhes agora) é digno de decesso.
       — Bom dia Mon Cher — Marcos compareceu esbanjando gomalina nos cabelos e vestindo algo um tanto diferente de sua pessoa: uma camiseta de manga curta enobrecendo o rosto da cantora americana de blues, Nina Simone. Não me surpreenderia nem um pouco se ele começasse a cantar ali, em minha frente, a bela Feeling Good.
       — Olá Nanquim — chamei-o pelo apelido. — Ainda acha que nosso plano dará certo?
       — Claro que sim Mauro. Pegaremos toda a grana que minha prima reserva dentro de um cofre qualquer lá no trabalho dela, depois fugiremos para bem longe daqui. Objeção?
       — Não Marcos, nenhuma objeção.
       — Então vamos ao trabalho, pois já estou farto dessa cidade. Maluco sou eu ao tentar sobreviver das letras.
       — Concordo plenamente.
       A prima de Marcos era uma veterinária muito bonita e simpática chamada Lee Rodrigues. Seu local de trabalho ficava a três quarteirões da velha praça saindo pela alameda boa-ventura, indo direto para o sul. Geralmente, tínhamos por costume assaltar apenas lojas dentro de shoppings, mas "Nanquim" era o primo muito chegado da Lee, e disse que os Rodrigues tinham tanto dinheiro que sobrava até para dar aos cachorros. Quando o assunto era dinheiro eu acreditava em tudo que me contavam, até mesmo em Papai Noel.
       A residência veterinária era cercada com árvores em forma de dríade. Seu portão era marrom, e o domicílio atrás desse portão era de dois pavimentos, verde em cima e amarelo em baixo, com uma porta giratória no meio em formato de gorila. Tocamos a campainha e a própria doutora viera nos atender. Era um mulherão de tirar o fôlego, de longos cabelos morenos e olhos de pupilas tão grandes, que seriam capazes de enfeitiçar qualquer um, inclusive eu. Ela usava uma calça jeans com uma blusinha rosa sob um jaleco branco de médica. Imediatamente, Nanquim enfiou uma pistola Ruger na face dela, que me deu uma agonia no coração, e falou cortesmente para nós entrarmos.
       Uma vez dentro da clínica, demos de cara com uma negra de voz autêntica que lembrava muito com uma cançonetista que nós conhecíamos. Ela estava ali porque havia trazido o seu chihuahua para fazer um chuck up. Fora isso, mais ninguém. Tirei ela dali a força encarcerando-a dentro de um canil enquanto Marcos cercava sua prima vendo-a tremer de medo feito um terremoto no Japão.
       — Oxi — disse Lee. — Minha mãe tá chegando hoje de Salvador, quando ela chegar a gente passa um cheque pra vocês. Depois vocês vão embora, está bem?
       — Cara — Marcos atirou um olhar doentio para ela. — Quem está com o poder de ditar regras aqui, sou eu.
       — Somos nós — eu o corrigi.
       — Obviamente Mauro, somos nós.
       — Eu não tenho dinheiro agora, meninos.
       — Silêncio! — Marcos abriu um rasgo nos lábios dela com um jab de direita, fazendo o sangue esguichar. — Isso é para você aprender a ficar em silêncio. Aonde está o dinheiro?
       — E-eu esfou falanfo a ferfade! — agora Lee não conseguia mais abrir a boca sem expelir sangue. — O dinheiro que eu fenho no momento ta fofo no feu cartão!
       — Passe o cartão pra cá e diz a senha.
       — Tudo bem! — ela passou o cartão, e disse a senha.
       Marcos pegou o cartão e foi até um posto Texaco do outro lado da rua sacar a grana. Contudo, não passou nem mesmo cinco minutos quando ele voltou revoltado, alegando que o MasterCard só cuspira R$ 10 reais em suas mãos.
       A partir daí vocês já sabem o que aconteceu, caros leitores. Ficou estampado na frente de todos os jornais do país: ("Devido a raiva por não conseguirem uma boa quantia em dinheiro, assaltantes acabam com a vida de uma jovem veterinária baiana chamada Lee Rodrigues. Indícios comprovam que, após o crime, eles ainda dançaram com o corpo dela ao som de Feeling Good, como se estivessem em um salão de baile. A imagem da câmera de segurança os flagraram fugindo em um Corsa azul, de modo que o delegado responsável pelo caso já está a procura dos responsáveis por este bárbaro crime...")
       Nunca me esquecerei do som crepitante que os ossos de Lee fizeram quando a gente dançou com ela, era algo como um estalar de galhos secos no inverno. Naquela altura, eu já estava mais arrependido do que um anjo bem intencionado.
       Mas o delegado não precisou se esforçar muito. Logo no dia seguinte após o assassinato da Lee, foi encontrado o cadáver de Marcos Leite... mais conhecido como Folheto Nanquim.
       Uma ligação anônima fez com que a polícia o encontrasse jogado em uma vala de drenagem em Virgínia. Ele matou e, um dia depois, mataram ele. Muito engraçado.
       Encontraram-no banguela e com o peito quase todo costurado com grampos, algo em torno de noventa centímetros partindo do pescoço à cintura. Ele vestia um falso uniforme nazista da SS e, quando o legista o descosturou, para ver o que haviam feito com ele por dentro, acharam todos os seus 32 dentes espalhados nas entranhas. A causa da morte não fora o rasgo mal fechado em seu corpo, mas sim a hemorragia interna. Seu pulmão fora perfurado pelos seus próprios incisivos.
       Logo logo a polícia também me encontraria. Tudo isso devido àquela mesma ligação anônima.
       Agora estou aqui, sentado neste banco da praça esperando a viatura chegar. É triste quando a gente olha para trás e ver o que deixamos de fazer na vida, não é? Mesmo eu já ter sido um conceituado cirurgião no passado, ainda sinto falta daquele namoro que acabou... ou daquele encontro que não rolou... tive que fazer força para não chorar. Arranquei um miolo de pão e joguei para alguns pássaros comerem em volta de meus pés. "Birds flying high you know how I feel" [Pássaros voando alto, você sabe como me sinto]. Ora, de onde eu tinha ouvido essa letra? Da Nina é claro. Era a dança mortal da Nina.
       Às vezes – pelo menos pra mim – eu acho engraçado como alguns jornalistas dão-se com as notícias nas mãos, vocês já notaram isso? Alguns deles até mesmo citam algo como a vingança de uma veterinária morta... Que bastardos!
       Como já era bem dito: "O sensacionalismo é uma máscara para a violência". Tudo isso, certamente, porque ainda não havia passado pela cabeça deles, o real significado de meu arrependimento.

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