sexta-feira, 7 de junho de 2013

O Príncipe do Inferno

A vila se chamava Donmará e era antiga, muito antiga, ou ao menos fora. Na verdade era habitada a menos de cem anos, pelas famílias que ali moravam agora. Quando ali chegaram, os pais e avôs dos atuais aldeões se firmaram  nas proximidades da ruína de um fortim, e ergueram as suas casas sobre as fundações arruinadas da cidade que outrora ali existira.

Foi um oficial de justiça do Averdui que disse que Donmará era o nome dali e que os aldeões estavam submetidos à Fortaleza de Averdin, pois aquelas terras pertenciam desde sempre ao Averdui e, por sua vez, o Averdui se submetia a Averdin. Alguns partiram e outros chegaram desde então, e Donmará persistia como uma vila, pagando impostos à Fortaleza.

***

Teo era filho de um lavrador e por se dar muito bem com os cavalos se tornara o cavalariço não oficial da vila. Pouco era o que ele recebia para cuidar dos cavalos alheios, mas como gostava dos bichos, não reclamava.

Mas uma vez por ano, era diferente.

Para norte de Donmará, havia uma cidade chamada Lanceliana, e o senhor daquela cidade organizava todos os anos, na data da fundação da cidade um torneio de cavaleiros. E para os cavaleiros do Averdui chegarem a Lanceliana, tinham que passar por Donmará, onde muitos acabavam pernoitando. Teo tinha trabalho extra e mal dormia nesta época, mas ganhava sempre moedas de cobre e prata dos cavaleiros. O torneio acontecia no fim do outono, o que era ainda melhor, pois às portas do inverno os ganhos da lavoura eram escassos.

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Era meio de tarde, e o sol de verão começaria dali a pouco a sua lenta descida.

Teo estava escovando o cavalo do estalajadeiro, terminando os tratos com o animal. Quando ouviu um relinchar distante. olhou para a encosta que estava além dos limites leste da vila e viu o cavaleiro galopando a toda velocidade. Teo percebeu que algo estava errado, checando se o cavalo do estalajadeiro estava bem preso, correu em direção à praça para onde o cavaleiro parecia seguir.

Chegaram quase na mesma hora, algumas pessoas haviam vindo ver quem corria de cavalo a uma hora daquelas.


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O cavalo estava meio morto, e pouco mais poderia se dizer do cavaleiro. Quando comandou que o cavalo parasse, antes de se chocar em alguém, o cavaleiro oscilou sobre a sela e começou a deslizar rumo ao chão. Aldo, o ferreiro se aproximou rapidamente e sustentou o cavaleiro, impedindo que ele simplesmente caísse.

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Teo notou que o cavaleiro não trajava armadura, vestia apenas uma roupa marrom desbotada e bastante esfarrapada. O homem também era um farrapo, magro, com o rosto enrugado e cabelos longos grisalhos.

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- Agr.. Arg.. Ars.. Disse o homem sem fôlego.

- Água! Berrou Aldo.

O homem sacudiu a cabeça fortemente, como se tivesse tendo um ataque.

- Arzg… Ashr.. Tentou de novo. Girou-se no braço do ferreiro e apontou para a elevação de onde tinha vindo - fuj..

Uma flecha negra enterrou-se na garganta do cavaleiro.

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Teo olhava para o alto da elevação, havia um homem no topo, um homem estranho, completamente negro, em uma das mãos trazia um grande arco recurvado, na outra parecia segurar outra flecha, mas o estranho eram os chifres que saíam de sua cabeça. Seguiam retos de cada uma das têmporas e recurvavam-se para cima nas pontas. Teo abriu a boca, e a fechou. Sua mente pensou em deus e em seus pais trabalhando na lavoura. Outros apareceram no alto da colina.

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Aldo olhou para flecha por um instante, a flecha parecia ter brotado da garganta, de tão rápida que apareceu. Olhou então para onde o cavaleiro havia apontado, enquanto deixava o corpo cair de seus braços.

Ao ver o arqueiro, e os outros que se aproximavam, blasfemou por um instante. Voltou para sua oficina e pegou seu martelo e um facão, depois retornou à praça. Pensando no nome que o cavaleiro queria dizer e que ele ingenuamente pensara ser água.

- Nós morreremos! Bradou, o povo que estava ali olhando para o alto da colina atônito olhou para ele - Não há pra onde fugir, mas em nome de deus, vamos levá-los conosco! Então ele viu o jovem cavalariço.

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Teo se assustou quando o ferreiro correu em sua direção segurando um martelo e um facão, mas não reagiu. O ferreiro se aproximou e se abaixou.

- Corra. Pegue um cavalo e parta, siga as estradas, é mais rápido, conte, conte que demônios vieram do leste e arrasaram Donmará, vá! Berrou o ferreiro.

Teo olhou-o de volta e piscou uma, duas vezes. Então virou-se e correu.

***

A vila toda estava em movimento agora, alguns tentavam fugir, outros caíam de joelhos rezando a deus, uma parcela considerável corria para se reunir ao ferreiro, pegando espadas antigas, facas, cutelos, porretes, e tudo que pudesse virar armas.

***

O ferreiro ainda estava na praça, reunindo o povo para a defesa.

Estranhamente, os demônios mantinham-se no alto da colina.

Então eles chegaram.

E lá estava ele.

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No alto da colina, os soldados-demônios olhavam para a vila abaixo, os aldeões correndo para fora ou para a praça de entrada, aonde o cavaleiro traidor jazia morto no chão.

Então ele chegou ao alto da colina, montado em seu corcel negro e acompanhado de seus seis companheiros.

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Os sete demônios livres. Pensou Aldo. O Príncipe do Inferno.

Arshraghaz.

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Seu rosto trazia algumas rugas da idade, ele sabia, mas nem de longe a sua verdadeira idade se revelava, se assim fosse ele seria pouco mais que ossos agora.

Olhar para aqueles humanos se amontoando para enfrentar suas tropas lhe dava uma sensação de divertimento.

Ele deixou escapar um suspiro de enfado.

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Os sete cavaleiros desceram a colina. Aldo partiu brandindo o martelo, alguns correram atrás dele, outros correram com medo, para longe.

As flechas dos demônios cobriram o céu.

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Na sombra da nuvem de flechas, Aldo alcançou o Príncipe do Inferno com o nome de deus na boca.

O cavaleiro era bonito, sua tez era pálida, e havia alguns vincos na pele ao redor dos olhos, mas eram as únicas imperfeições. uma barba bem aparada cobria o queixo e unia-se ao cabelo, emoldurando o rosto. os cabelos longos e negros esvoaçavam. Os olhos reluziam em prata.

O movimento do cavaleiro foi delicado. Em um instante segurava o punho de sua espada ainda embainhada, no instante seguinte embainhava-a de novo.

O martelo do ferreiro voara junto com um braço em direção aos demônios, quebrando um dos chifres de metal. A cabeça rolara pela grama após quicar duas vezes no chão.

***

Donmará ardeu durante todo o resto do dia e toda a noite.

***

Não longe dali, no dia seguinte, um viajante encontrou um cavalo pastando com um fardo em suas costas. Ao se aproximar, percebeu que era um jovem montado, como se estivesse desacordado, ao tentar acordá-lo, o jovem caiu. A ponta da flecha saindo de sua barriga e seus olhos cegos virados para o céu.

O homem balbuciou o nome de deus.

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