sábado, 22 de junho de 2013

O Cemitério

 

 O dia já estava chegando ao fim e as casas dormiam na escuridão. No centro da cidade, as lojas já estavam fechadas. Na casa funerária PAZ E LUZ, uma fraca luminosidade indicava que o Sr. George ainda trabalhava.   
 O corpo do pequeno Davi de 12 anos estava sendo preparado para ficar no mínimo apresentável quando seus familiares e amigos chegassem para o funeral. O pequeno tinha saído de casa um pouco depois do almoço para fazer um trabalho escolar com um coleguinha, mas nunca chegou ao seu destino. Em um cruzamento, um caminhão em alta velocidade o atropelou, arrastando seu corpo frágil por metros de distancia.
    
  Os coveiros Miguel e Rogério já haviam aberto a cova logo de manhã, estendendo faixas de grama artificial sobre a terra fresca retirada do chão.  Enquanto preparava a lapide que os pais do pequeno haviam especificado, Miguel notou que Rogério estava diferente naquela manhã. Ele costumava assoviar uma canção enquanto trabalhava, mas naquele dia estava estranhamente diferente.
Deve ser ressaca. – Pensou Miguel.
 Já era tardezinha quando o cortejo fúnebre seguia atrás do carro funerário do Sr George, subindo o monte rumo aos portões do cemitério. Rogério na entrada se preparava para abrir os portões para a entrada do cortejo. O rapaz se remoendo em silencioso ódio, olhava as lanças de ferro do portão, onde há dois dias atrás havia encontrado seu cachorro empalado em uma das lanças. O vira lata era um inquieto, causava repudia em todos, mas o dono não conseguia imaginar quem faria algo tão desumano.
 Os portões foram abertos e o longo cortejo adentrou no cemitério, rumo a cova destinada ao menino. Rogério apagou o cigarro e fechou novamente o portão, tentando se esquecer da triste sina de seu animal.
 Caminhou até a cova, onde Miguel aguardava junto do padre Faustino. O padre pronto para a cerimônia usava uma estola sobre os ombros, e o missal estava aberto no capitulo que falava sobre a morte.
Lá estão eles, padre.
Vai ser difícil. Não gosto de funerais de crianças.
E tem como adiantar tudo isto? Também não gosto de funeral infantil. Se eu não tivesse que fechar a cova sairia daqui e só voltaria depois dos familiares irem embora.
Vai durar dez minutos, no máximo. – respondeu o padre – Não vou prolongar o sofrimento dos pais e nem o nosso.
Ok. Vou me afastar um pouco. Preciso de ar. – Disse Miguel se distanciando dali.
 A cerimônia fúnebre embora curta foi de puro lamento. Inconformado, o Sr. Gustavo, pai de Davi, chorava em desespero enquanto o caixão branco descia no sepulcro:
Ele não pode estar morto... – soluçava em lagrimas – Não pode estar! Ele é apenas uma criança... Só tem 12 anos.
 Chorava convulsivamente, sendo amparado pelos amigos e familiares que o tiraram do cemitério, enquanto o padre terminava suas ultimas palavras.
 Quando todos tinham ido embora, Miguel voltou e sentou na beira da cova aberta, esperando pela volta de Rogério, que havia ido abrir o portão para os familiares irem embora.
A noite estava por vir, as sombras se alongavam e o sol já se escondia atrás dos altos carvalhos. Rogério ainda não havia voltado.
 Miguel encarando o pequeno caixão branco decidiu que não podia esperar pelo amigo, cobriria sozinho o caixão do menino Davi.
 De súbito, escutou um barulho por entre os túmulos. Olhou rapidamente para flagrar o causador do barulho e nada viu, pois a fraca luminosidade já se fazia presente no cemitério desertificado.
 Ele que nunca teve medo do seu local de trabalho agora sentiu um arrepio lhe governar... A noite caia e ele certamente estava sendo vigiado.
Rogério? É você?
 Ninguém respondeu. Ele sabia que o amigo não era de fazer tais brincadeiras... O vento sussurrava misteriosamente entre as arvores. Então lembrou-se do cãozinho do amigo espetado na lança do portão.
 E se o desgraçado que fez aquilo estivesse a espreita, esperando o momento certo para fazer o mesmo com ele?
Não deixe que a noite te pegue aqui Miguel – pensou em voz alta.
 Engoliu o próprio medo e tomou a única decisão que tinha. Enterraria o menino, talvez terminaria completamente na escuridão...
 Se pôs a trabalhar sem tentar entender o pavor que o dominava, sem se perguntar porque aquele trabalho, que nunca o incomodara antes, incomodava-o tanto agora.
 Olhou para a cova aberta, que parecia zombar dele.
 Ocorreu-lhe que a sensação de ser vigiado sumira assim que deixou de ver o caixão instalado no fundo da cova. E veio-lhe a imagem de Davi deitado sobre o pequeno travesseiro de cetim com os olhos abertos.
 Não... Que bobagem! Eles fecham os olhos dos defuntos com goma. Já vira o velho George fazer isso varias vezes. Claro que fechavam os olhos!
 Encheu a pá e jogou a terra que encheu a superfície do caixão branco com uma pancada surda. Miguel fez uma careta. O som o enjoou um pouco.
 Ele se inclinou, voltou a encher a pá e jogou mais terra.
 Miguel se atirou no trabalho, tentando bloquear os pensamentos. Depois de algumas pazadas, o som da terra contra a madeira se tornou abafado.
 Ele jogou mais duas pazadas e de súbito pensou:
O caixão tem trancas! O morto jamais poderia sair!
  Mais porque cargas d'água colocar trancas em caixão? Era para ninguém tentar entra? Só podia ser, pois com certeza não era para o defunto não sair.
Pare de me olhar! – indagou Miguel em voz alta, sentindo o coração se contrair no peito.
 Estava delirando de tanto medo.
 Um súbito impulso de fugir daquele lugar, de correr pela estrada até chegar a cidade, tomou conta dele. Foi com muito custo que conseguiu se controlar. Era só um ataque de nervos. Quem trabalhando num cemitério não ficaria assim de vez em quando? Parecia um maldito filme de terror ter de enterrar aquele menino de 12 anos...
  A oração fúnebre dos católicos começou a ecoar em sua mente. Lembrou-se do desespero do pai de Davi e das ultimas palavras do padre Faustino.
   Parou e olhou para a cova, era funda, muito funda. A sombra da noite já começava a se insinuar dentro dela. Ainda faltava muito. Ele nunca conseguiria enche-la antes de escurecer completamente... Nunca!
 Sim, os olhos estavam abertos. Por isso ele se sentia vigiado. O Sr. George não usara goma o bastante, e as pálpebras haviam subido como persianas. E agora, Davi olhava para ele. Aquilo não podia ficar daquele jeito.
 Tirar a terra de cima. Essa era a solução. Tirar a terra, quebrar a tranca com a pá, abrir o caixão e fechar aqueles terríveis olhos fixos. Ele não tinha goma, mais tinha duas moedas no bolso. Serviriam! Teriam que servir!
 Eram de prata. Sim, era de prata que o menino precisava para finalmente se calar dentro da sua cabeça.
 De repente Miguel saltou dentro da cova e começou a trabalhar jogando a terra para cima. Depois se ajoelhou sobre o caixão e começou a bater na tranca de metal com a pá.
O que estou fazendo meu Deus? – Se perguntou – O que diabos estou fazendo?
 Ajoelhado sobre o caixão, tentava refletir, mas algo no fundo da sua mente mandava-o se apresar. Levantou novamente a pá, bateu mais uma vez sobre a tranca e ouviu um estalo. Quebrou. Olhou para cima por um instante, num ultimo vislumbre de sanidade, o rosto machado de terra e suor, os olhos arregalados e salientes.
   Ofegante ele deitou inteiro sobre a urna e tateou em busca das alças da tampa do caixão. Encontrou-as e puxou.
 A tampa se abriu, as dobradiças rangeram como ele imaginara, revelando primeiro apenas cetim roxo, e depois uma manga curta. ( Davi fora enterrado com o terno da primeira comunhão ) e depois... O rosto. A respiração ficou presa na garganta de Miguel. Os olhos estavam abertos. Como ele sabia que estariam. Bem abertos e nem um pouco vidrados. Pareciam horrendamente vivos a luz agonizante da noite que caia. Não havia palidez mortal naquele rosto. A face estava rosada, transbordando vitalidade. Tentou afastar os olhos daquele olhar reluzente e gelado, mas não conseguiu:
Meu Deus... – murmurou.
  O dia clareava quando Miguel acordou. Não lembrava de ter enchido a cova de Davi, Mas ela estava ali, cheia e coberta de grama. Só conseguia se lembrar dos olhos. Sim aqueles olhos. Abertos e vivos. Miguel levantou com dificuldade. Suas roupas estavam encharcadas da leve chuva que Devia ter caído durante a noite. Pegou sua pá e caminhou até sua camionete. Ao se aproximar do grande portão de ferro com suas lanças pontudas, freou bruscamente. Em desespero desceu do veiculo e testemunhou Rogério, assim como antes estava o cãozinho, empalado na mesma lança de ferro.
 O sangue escorria em abundancia. Com dificuldade Miguel arrancou o amigo espetado no portão. Rogério estava de olhos arregalados. Estranhamente isto incomodou Miguel, que incomodado, enfiou a mão no bolso, tirando de lá as duas moedas de prata, as colocando sobre os olhos do amigo morto.
 

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