quarta-feira, 12 de junho de 2013

No meio das pernas

O quarto estava escuro, e o interruptor não parecia inclinado a ajudar. Talvez faltasse energia, mas era mais do que isso. A escuridão não era ausência de luz somente. Ainda que houvesse ali disponível algum dispositivo infravermelho para se ver na total escuridão, ela não veria nada. Porque nada era o que havia dentro do quarto. Um nada tão profundo que nem mesmo respirar ela conseguia. Não tinha ar.

Por anos ela desejou que aquilo acontecesse de alguma forma. Não ponderou que "alguma forma" poderia ser aquela, no entanto. Não ponderou nada, na verdade. Apenas queria seu marido de volta. E conseguiu.

O nada do quarto, a absoluta solidão em relação ao resto do mundo, possivelmente também prejudicava sua memória. Ela não se lembrava muito bem do nome do marido, ainda que estivesse seriamente tentada a acreditar que fosse Jair. Não tinha certeza como ele havia morrido, mas sua mente confusa e cada vez mais em pânico dizia que ele tinha sido morto na guerra. Qual guerra? Ela não lembrava. Jair era soldado. Ou ela achava que era.

Anos atrás ela havia enterrado seu marido e junto com o corpo, sua própria vida. Não mais falou com os amigos, que depois de algumas semans de tentativas frustradas em tirá-la da fossa, desistiram e sumiram. Nunca mais falou com sua mãe, nem com sua irmã (o que não era lá grande coisa) e nem mesmo com o seu filho, que apesar de recém-adulto, era bastante independente e irritadiço. Nunca mais assistiu um filme no cinema ou na TV, nem nunca mais ouviu música, nem folheou livros e revistas. Apenas ficava sentada, dia, tarde e noite, vendo a foto do marido morto e lembrando-se da vida que tinha com ele. E desejando, desejando muito mesmo, que ele voltasse de alguma forma.

Ela não sabe o que mudou. Não tem idéia qual foi o ponto de ruptura. O que transformou o normal cinza e sem graça num sobrenatural escuro, negro, táctil. Em uma hora ela estava cozinhando seu arroz sem tempero para comer com seu ovo sem sal, e noutra ela ouviu o barulho no quarto.

Não considerou que poderia ser um ladrão. Um rato. Seu filho, finalmente decidindo deixar de ser um idiota completo e vindo visitá-la. Não, não considerou nada disso. Logo que ouviu o som no quarto teve certeza - era ele.

Então o arroz queimou, uma labareda de fogo subiu em seu rosto e desgraçou sua sobrancelha. O ovo apodreceu, ficou verde e cheirando a morte. As luzes do sol na rua foram obscurecidas com alguma coisa. Qualquer coisa. O ar ganhou consistência gelatinosa, e empalideceu. As paredes pareciam derretidas, chamuscadas, turvas. O chão não mais fornecia um apoio confiável. Ela tremeu, engoliu seco e sentiu sua garganta ferida. Seus olhos estavam marejados, e quando ela os coçou, sentiu uma gosma estranha. Parecia sangue. Parecia pus. Parecia uma enorme e doentia infecção.

Ela largou a panela, não ligou para o perigo de incêndio. Caminhou lentamente e pesarosamente para o quarto, porque sabia que ele estava lá. Sabia que seu desejo de muitos anos havia se tornado real. E não sabia mais se queria mesmo isso.

Abriu a porta e o quarto estava igual a cozinha. Nojento, podre, sem cor, sem vida. Entrou, e quando fechou-se lá dentro, tudo morreu. O ar, a luz, tudo se foi. Tudo. Absolutamente tudo. Menos ele. Ele estava lá.

Ela sentiu quando ele se levantou da não-cama e caminhou em sua direção. Sentiu sua não-mão tocar seu rosto, o frio e a degradação. Sentiu, quando ele a abraçou, o choque daquele enorme buraco em seu peito. Pulsante, repugnante, gélido. Ele a apertava, e ela não sentia carinho. Era apenas um aperto. Não era amor, nem saudade. Não existia isso naquele lugar sem ar. O toque era horrível, o abraço dolorido.

Ela não respirava, e mesmo assim, estava feliz com isso. Não queria imaginar o cheiro podre que aquele corpo emanava. E o aperto, que ficava mais forte a cada instante. E a dor, a terrível dor no peito. Ela tentou gritar e se soltar dele, mas não podia. Não, não podia.

E então ela lembrou. Foi um lapso de memória, uma coisa que veio como um trovão, e se foi de forma igualmente rápida. Jair foi pra guerra. E voltou. Mas ela não o esperou. Foram meses. Muitos meses. Ele voltou e fez uma surpresa. Mas ela também tinha uma surpresa. Ela estava com outro homem entre as pernas quando ele a encontrou, e ele com flores nas mãos. Ela estava sorrindo, ela estava arranhando, ela estava muito feliz. Ela estava gritando. Ele também quis gritar, mas não pôde. A decepcão era muita, enorme, absurda. Então ele foi embora. Ela não viu, ela continuou com o homem entre as pernas, por trás, na boca, nas mãos. Ela só soube depois, através de uma carta, que Jair havia voltado para a guerra novamente. E que ele havia visto ela trepando com outro homem qualquer.

E então, ele morreu. Outro flash. Bucha de canhão era a palavra. Jair não se matou, mas se ofereceu para morrer. Linha de frente. Um tiro no coração, nada mais perfeito. Explodiu aquilo que o feria por dentro.

Ela sentiu sua falta, e o amargo sabor do arrependimento. Sentiu falta do filho, que também foi embora exatamente por causa disso. Ela sentia muito, muito mesmo, e desejou nunca ter se deitado com aquele outro homem. Desejou seu marido de volta. Queria ele de volta, queria ele entre suas pernas, e somente ele. Mas era tarde demais.

A ausência de ar cobrou seu preço. Ela entrou em pânico e tentou se soltar do corpo apodrecido, mas não conseguiu. Sua pele estava se fundindo a dele. Afastar-se significava rasgar-se. Queria, precisava, tinha que respirar. Mas não podia! Seu peito doía a terrível dor do tiro que nunca havia levado. O frio, o corpo na lama, o rosto numa poça. A dor, a terrível, medonha, absurda dor. Seu grito não soou, não fez nenhum barulho, e ninguém nunca ouviu sua súplica.

Seu corpo fora achado alguns dias depois, por bombeiros que arrombaram a porta de seu apartamento. Os outros moradores sentiram o cheiro de seu corpo em decomposição. Tudo estava normal. A panela queimada, sim. O ovo podre, sim. Seu corpo no quarto, sim.

Sem sinal de violência. Sem sinal de assassinato, ou de suicídio. Apenas uma morte casual. Os familiares e ex-amigos disseram que ela havia morrido de amor. Que não aguentou a ausência de Jair. Contaram para muitos uma bela e trágica história de amor que jamais aconteceu.

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