terça-feira, 4 de junho de 2013

O Dono II

A jovem aproximou-se novamente do homem sentado embaixo da árvore. Permaneceu sentada a seu lado em silêncio por alguns minutos. Enquanto pensava, o homem sentado virou-se para ela:
-      O que você quer ?
-      Eu vim aqui pra te ver. Quero falar com você.
-      Falar o quê? Mais alguma frase sem sentido que o pessoal lá de cima mandou você dizer?
-      Não, eu quero falar sobre você.
-      Não vê que estou ocupado, muito ocupado?
-      Eu sei.
-      Então por que volta aqui todo dia na esperança de conseguir me importunar?
-      É exatamente isso.
-      Isso o quê?
-      Eu venho aqui há vários dias, e como vejo que continua concentrado em seus pensamentos e sentimentos, eu volto depois.
-      Volta depois pra quê ?
-      Pra te ver. Pra falar com você.
-      Falar o quê ?
-      Se você me escutar um minuto eu falo.
-      É algum recado do pessoal lá de cima, por acaso?
-      Não.
-      Então o que é ?
-      Eu tenho observado você, prestado muita atenção.
-      Desde quando ?
-      Desde o dia em que o conheci.
-      Sim, e daí?
-      E daí que eu pude ver que você é uma pessoa muito bonita.
-      Você acha que eu não tenho espelho?
-      Acho que não.
-      Como você ousa dizer isso ?
-      Porque eu sei, ora, disse-lhe a moça com um sorriso no rosto.
-      Olha, eu acho que você vem aqui pra me provocar.
-      Que bom que você acha isso!
-      Por que, sua abusada?
-      Porque o que nos provoca nem sempre é mau.
-      Tá bem, abusadinha. Você veio me dizer que eu sou bonito. Obrigada, mas a minha mãe já me disse isso uma porção de vezes. Aliás, ela me diz isso quase todos os dias. Bem, mas obrigado, mesmo assim. Afinal de contas, uma massagem no ego não faz mal nenhum.
-      Você é muito bonito, sim. Mas eu não estava me referindo só aos seus atributos físicos.
-      Ah, não? Vai me dizer que eu tenho a aura de ouro ?
-      Você gostaria de ter?
-      O que você acha que eu sou? Eu...
-      Um homem com um coração muito bonito!
-      Quem lhe disse isso?
-      Ninguém. Eu sei. Eu vi.
-      Viu o quê ?
-      Seu coração.
-      Olha, aqui mocinha, pare com essa conversa de apaixonada, que eu sei muito bem onde você quer chegar.
-      Não sabe, não.
-      Antes de mais nada, me explique aquela frase que você veio me dizer no outro dia.
-      Aquele recado...
-      É, aquele “recado” do pessoal lá de cima...
-      Não posso.
-      Como não pode ?
-      Porque não posso.
-      Porque não sabe, não é ?
-      Não, eu sei. Sei o que significa.
-      Não sabe, não. Você veio trazer o recado, mas não sabe explicar.
-      Sei, sim. Mas não posso. Porque o pessoal lá de cima me disse pra fazer assim.
-      Assim, como?
-      Enviar o recado somente.
-      E por que você não pode me explicar? Vai dizer que não sabe também ?
-      Não, eu sei porque.
-      Então, diga.
-      É, você que tem que pensar a respeito daquilo.
-      E você acha que eu não tenho pensado?
-      Eu sei que tem.
-      Então por que não me explica ?
-      Porque não posso.
-      Por que não pode?
-      Porque você só vai compreender no dia em que sentir o que está naquele recado.
Mais um segundo de silêncio balançou o ar.
-      Sentir, sentir... o que é que você sabe sobre sentir?
-      Sei mais do que você pensa.
-      Não sabe, não. O que é que você pode saber sobre mim?
-      Eu sei como é seu coração. Eu o vi.
-      Mentira. Você não viu coisa nenhuma. Só está falando isso porque quer me conquistar.
A moça deu outra sonora gargalhada.
-      Está rindo do quê? Ficou sem graça agora que eu descobri sua malandragem?
-      Não, é que quanto mais eu falo com você, mas eu vejo que é exatamente como eu vi.
-      Você não viu coisa alguma! Está blefando! O quê é que uma mocinha como você pode saber de um homem como eu? E pra falar a verdade, não acho que alguém possa ver o coração de outra pessoa.
-      Eu também não achava, nem sabia que isso era possível até ver o seu.
-      Para, menina! Você é jovem demais pra saber algo de mim.
-      Eu sou mais velha que você, sabia?
-      Mentira. Tá mentindo pra me impressionar. Pensa que eu não sei o que você quer?
-      O que é que eu quero?
-      Você só quer arrumar um namorado, pra fazer como todo mundo na sociedade: casar, ter filhos, ter netos e depois morrer. E sabe por quê ? Só pra que todos olhem pra você e digam que é uma pessoa bem resolvida, feliz, pra que não sintam pena de ver você sozinha. Pensa que eu não sei que as pessoas tem horror à solidão? Elas preferem viver ao lado de alguém que não amem a viverem sozinhas.
-      Ah, é? E você está vendo alguém indesejável do meu lado? Aliás, está vendo alguém?
-      Não. Mas o que é que eu tenho a ver com isso ?
-      Foi você que reparou que estou só. Mas pode ter certeza que a minha solidão não é como a dessas pessoas que você falou.
-      Então, parabéns. Pelo menos você não vai cair na armadilha.
-      É por isso que eu gosto de você! Você é inteligente!
-      É, acha que eu sou mesmo?
-      Acho.
-      Então me diga como eu posso ser tão inteligente se ainda não consegui todas as coisas que eu quero.
-      Não sei. Você é que vai ter de descobrir.
-      Então, você não está atrás de um namorado ou marido. Então, o que quer comigo?
-      Eu já disse, vi que seu coração é muito bonito e gostei de você.
-      O que é que você sabe sobre meu coração? Acha ele bonito ? Por acaso pensa que eu sou algum desses cantores de música romântica ou um desses personagens de cinema, que têm todas as frases bonitas na ponta da língua? Você sabe quantas coisas tristes eu já vi ou quantas vidas doloridas eu já vivi ? O que é que você sabe sobre meu coração? O que é que você sabe sobre as coisas que meu coração viu ou sentiu?
-      Eu só poderia saber sobre cada coisa que seu coração viu ou sentiu se eu estivesse dentro da sua alma, e isso só seria possível por alguns segundos. E você também só poderia saber tudo o que senti até hoje se pudesse fazer o mesmo. Tudo que eu vi é que em cada milímetro do seu coração existe uma parte infinita de sentimento. Ele é tão vivo que poderia existir sozinho.
A moça suspirou por dois segundos.
-      Então você sabe o quanto eu já...
-      O quanto você já amou... Eu também já amei muito, sabia? Muito, muito, muito.
-      Até doer?
-      Até doer.
-      Então por que não está com ele?
-      Porque ainda não é a hora.
-      E por que ainda não é a hora ?
-      Porque ele ainda não quer o amor.
-      Mas eu quero o amor, então por que não o tenho?
-      Você o tem tanto que nem percebe.
O homem suspirou por um segundo.
-      E...eu vi outras coisas também. Vi as espadas no seu coração. E sei que você não merece essas espadas. Eu também já tive espadas no meu coração. Sei o quanto elas doem.
-      E o que adianta saber o quanto elas doem?
-      Sei também que um dia elas param de doer.
-      Quando ? Como?
-      Levante daí e você vai descobrir.
-      Mas se eu não consigo descobrir como realizar meus sonhos, como vou fazer as espadas saírem?
-      A gente as expulsa, sabia?
-      Como?
-      Abrindo os olhos.
-      Mas se eu tenho dor, como vou ficar com os olhos abertos o tempo todo?
-      Não fica.
-      Então o que eu faço?
-      Você começa abrindo e fechando lentamente, e depois passa a abrir e fechar mais depressa, até que vai estar fazendo isso como um malabarista. E tem mais...
-      Mais o quê ?
-      Tem como.
-      Como o quê ?
-      Como ficar com os olhos abertos.
-      Como assim ?
-      Não pode ficar com os olhos parados, feito bobo. Tem que olhar tudo em volta com muita atenção. Eu sei que você pode fazer isso muito bem. Sei que o seu olhar é envolvido por uma luz muito intensa, muito brilhante, muito leve e muito forte.
-      E pra que serve essa luz ?
-      Pra pensar.
-      Acha que eu posso descobrir como conseguir as coisas que quero só pensando?
-      Pensando e sentindo.
-      Com esse coração machucado?
-      São os melhores.
-      Por quê?
-      Porque são os que conseguem ter a dimensão de tudo, de todas as coisas. Porque só aquele que se sente está vivo.
-      Você ainda não falou o que quer de mim.
-      Quero ficar um pouco com você.
-      Pra quê?
-      Pra fazer coisas interessantes com você, coisas importantes, coisas especiais.
-      Que tipo de coisas?
-      Não sei. Eu não posso saber tudo a cada minuto. Ninguém pode saber tudo o tempo todo.
Bem, existem alguns pensamentos e sentimentos meus que eu gostaria de dividir com você.
- Eu não quero pensar igual a você.
-      E nem poderia. Veja bem, eu disse alguns.
-      Você não vai gostar de ficar comigo. Eu sou muito selvagem.
-      Eu falei em ficar um pouco. Não falei em grudar em você. E quanto a ser selvagem, acho que sei bem o que é isso. Sabe qual é diferença entre nós ? Eu tenho Vênus no coração e Marte na cabeça, e você tem Vênus na cabeça e Marte no coração.
-      Eu preciso de tempo para ficar com os meus pensamentos e meus sentimentos.
-      Mas eu não pretendo separar você do seu intelecto. Ninguém pode nos separar do nosso intelecto. E se tentam fazer isso, a gente sai correndo, sabia?
-      É, eu sei.
-      Bem, eu tenho que ir agora. Posso dar um beijo no seu rosto?
-      Já vai?
-      Já. Mas eu volto.

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