sábado, 29 de junho de 2013

O Dono III

A moça voltou ao lugar onde o homem estava sentado sob a árvore e sentou-se ao seu lado. Ele tinha os olhos fechados, com as mãos segurando o rosto. Levou alguns segundos para aperceber-se de sua presença. Abriu os olhos lentamente, virou-se para ela e cumprimentou-a com um suave sorriso:
-         Olá!
Ela respondeu-lhe com um sorriso silencioso:
-         Você está bem?
-         Como você pode ver, continuo na mesma. Nada de novo. Nada de especial. Aliás, eu me pergunto o que é que pode existir de tão especial na vida para que alguns queiram tanto viver.
-         Mas não é a vida que é especial. É você. Não é fora que as coisas começam a acontecer, é dentro da gente.
-         Você já sentiu tédio?
-         Até hoje não me sobrou muito tempo pra sentir tédio.
-         Por quê?
-         Porque eu acabo dividindo meu tempo entre as coisas que quero realizar e os problemas que tenho que resolver.
-         E você já realizou alguma coisa que queria?
-         Sim, algumas já.
-         E como fez pra realizá-las? E as outras que ainda não realizou, como vai fazer? Me explique, eu preciso saber!
-         Bem, eu fiquei muitos anos sofrendo simplesmente porque não conseguia realizar nada do que queria. Achava que minha vida ia ser só uma imensa coleção de fracassos. Eu tropecei e cai muitas vezes, por diversos motivos.
-         Por causa dos outros ou por causa de você mesma?
-         Por causa dos outros, por causa de mim.
-         Mas o que você fazia de errado?
A moça suspirou um momento.
-         Bem, eu queria tanto, mas tanto, mas tanto conseguir certas coisas, que elas acabavam se tornando inatingíveis pra mim. Era como se eu tremesse por dentro e mal conseguisse andar. E foi assim que eu andei por muito tempo.
-         Tremendo por dentro?
-         Tremendo por dentro. Da ponta dos dedos até o fim do salto do sapato que tocava o chão.
-         E como você vivia?
-         Doendo aqui, rindo ali, chorando lá, sonhando acolá.
-         E como você fez pra parar de tremer?
-         Eu só consegui parar de tremer quando percebi que teria de lutar com amor.
-         Então seu caso é diferente do meu.
-         Por quê?
-         Porque eu não tremo.
-         Você tem revolta, não é?
-         Como você sabe?
-         Por que eu vi seu coração, esqueceu?
-         Então compreende que sou um caso autodestrutivo sem volta?
-         Não é não.
-         Ih, lá vem você! O que me resta senão a autodestruição? O que é que eu faço com a minha revolta?
-         Você tem que usar sua revolta, fazer com ela algo bonito, algo que as outras pessoas possam admirar, apreciar, que as faça pensarem sobre si mesmas, e que contribua para que exista mais liberdade no mundo.
-         E o que pode ser isso?
-         Pode ser alguma forma de arte, alguma ação, alguma idéia. Como o seu coração conceber.
-         Mas não pode ser minha cabeça?
-         Sua cabeça já tem as informações. Mas essas informações têm que estar ligadas ao seu coração para que sejam transmitidas de uma maneira bonita.
-         Esse coração machucado? Acha que ele ainda consegue produzir alguma coisa, mocinha?
-         Tenho certeza que sim. E olhe que não existem muitas certezas nesse mundo.
-         Você é muito otimista. Aposto que nunca sentiu dor de verdade.
-         Você sabe que sim.
-         Mas você disse que nunca sentiu tédio!
-         Eu disse que não tive muito tempo pra sentir. Mas quer saber o que me causa tédio? Não ser compreendida. É como andar por salas e salas vazias.
-         É, é terrível mesmo.
O homem pensou por uns segundos.
-         E, me diga uma coisa, por que você voltou aqui hoje, então?
-         Porque eu queria te ver, falar com você.
-         Por que você queria me ver?
-         Porque gosto de você.
-         Você já não está cansada de mim e das minhas dores?
-         Não.
-         Por quê ?
-         Porque gosto de você.
-         E por que você gosta de mim?
-         Já lhe disse. Você é bonito.
-         Eu nem sempre tenho certeza disso.
-         Acho que eu sei por que isso acontece.
-         Por quê?
-         Porque você tem encontrado muitas criaturas mesquinhas, egoístas, pessoas que não sabem valorizar um ser humano.
-         Ao que você se refere exatamente?
-         As garotas que você tem encontrado por aí. Acho que você tem encontrado mais meninas do que mulheres. E nós sabemos qual é a diferença entre as meninas e as mulheres. As meninas não compreendem, não relevam, não perdoam, não amam por completo. As meninas só querem namorar, desfilar com alguém. As mulheres querem amar.
-         É, eu sei disso. E qual é a diferença entre os homens e os meninos?
-         Os meninos só querem sexo. Os homens querem amor.
-         Muito bem. Vejo que você não é tão inexperiente assim.
-         E você não é tão ranzinza quanto parece.
-         Eu sou muito mais do que ranzinza. Você ainda não viu nada!
-         Eu sei. Você é selvagem. Eu também já fui selvagem, muito selvagem.
-         Não acredito! Você?
-         É, eu sim! disse a moça com um sorriso. Vamos dar uma volta e eu te falo um pouco sobre isso.

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