sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

A Mula

Seu crime? Uma paixão.
Sua pena? Uma maldição.
Era mais um setembro quando tropas de mulas chegavam à vila trazendo em seus cestos e embornais toda sorte de encomendas e viveres para abastecer as casas de comércio, armarinhos e boticas do arraial.
Assim que os tropeiros apeavam eram cercados por dúzias de negrinhos escravos, bem como vários outros meninos e meninas, moços e moças e até os mais velhos, todos ávidos para saber das novidades trazidas das terras de além das montanhas das Minas Gerais.
Mas não só mantimentos chegavam com as mulas. Aproveitando a rota da tropa todo tipo de homem chegava naquela região: aventureiros a caça de ouro, agentes da Coroa em busca de impostos para o Rei ou até mesmo criminosos procurando refúgio, acontecia de muitos clérigos também se aventurarem nas trilhas dos tropeiros, usando-as como rota para chegarem até as almas dos cristãos espalhados naquele pedaço da Colônia.
Era o caso de Inácio, jovem padre que chegava para substituir o velho sacerdote da paroquia local. Inácio estava feliz por finalmente ter terminado a jornada mais longa que jamais havia feito, pois até então não conhecia mais do mundo que não fosse o pequeno pedaço do vale do Alentejo em Portugal, região onde fora criado e educado na santa doutrina da Igreja Católica e onde fora prometido por sua mãe para ser servo do bom nome do Senhor.
E agora ele se encontrava ali, a léguas e léguas de seu mundo e em seu coração batia o desejo de pregar os ensinamentos de Cristo ao fiel povo da Colônia.
Assim ele apeou de sua montaria e pisou com suas sandálias as ruas de pedra indo em direção a imponente igreja construída através dos anos pelas mãos negras de legiões de escravos. E neste momento, quando seguia para cumprir seu destino como discípulo de Deus, foi que a tentação e o pecado surgiram em sua frente e decidiram seu destino para sempre.
Do meio da algazarra de muares ela apareceu, sua visão foi como a de um anjo. Era bela, a mais bela jamais vista por ele, seu nome era Maria do Rosário, jovem moça das redondezas que encantava a todos os viajantes com seu corpo de donzela e sua face de grande beleza. Naquele momento o coração de Inácio bateu forte e ele estacou frente aquele ser produzido por Deus, ou pelo Diabo.
E Maria do Rosário, mesmo acostumada com a reação dos viajantes a sua presença, também se surpreendeu com aquele moço, pois ele não era um viajante comum, trazia no corpo as vestes de um homem santo. Assim, quando percebeu ser observada por ele, sua face branca se ruborizou e ela desviou o olhar.
Inácio, envergonhado pela reação de ter sido flagrado pela jovem, criou coragem e se desculpou pela indelicadeza:
- Me perdoe a indelicadeza – falou ele – estou há muito na estrada, acostumado a lidar com homens rudes e a visão de sinhazinha é como um bálsamo de Deus para ombros cansados.
Maria do Rosário riu por dentro, não estava acostumada com este tipo de galanteio:
- Por tuas vestes vê-se logo que és um homem de Deus, mas há de concordar que teu discurso destoa muito daquele que se esperaria de um santo.
Agora foi Inácio quem se viu ruborizado:
- Mas uma vez peço-lhe perdão sinhazinha, não era minha intenção ser indelicado. Meu nome é Inácio, sou o padre enviado para esta localidade. Posso saber tua graça?
- Me chamo Maria, Maria do Rosário. E perdoo-te só por que és um padre, apesar de não se portar como um. Bem sei que padre Tiago deve estar lhe esperando na igreja, pois vá lá e confesse teu pecado, o de se apresentar assim a uma moça. Agora, já que és um sacerdote, eu peço tua benção e espero ver vossa senhoria mais tarde na celebração.
Maria do Rosário, num ato ao mesmo de tempo de respeito e provocação, pegou na mão do jovem padre e a beijou deixando Inácio sentir o calor que as mulheres provocam nos homens. Depois disso ela partiu.
Inácio seguiu então para a igreja e percebeu que de suas portas um velho de batina o observava, aquele era padre Tiago, que assistiu em silêncio toda cena entre os jovens.
- Sua benção padre... – começou Inácio.
Mas não continuou, padre Tiago o interrompeu:
- Vejo que já conheceu o rebanho local – disse ele – e vejo também que o Diabo já lhe infectou a alma e o coração padre Inácio.
- Fala da jovem? Uma simples rapariga que veio me recepcionar, aliás, a única a fazê-lo.
- Não estamos na Metrópole jovem padre, cuidado com as moças daqui, não estão acostumadas a serem tratadas com bons modos. E são donas de uma beleza não vista em terras europeias, acredite em mim quando digo que são cria do próprio demônio, armadilhas para enganar os incautos e desvia-los dos caminhos do Senhor. Agora entre e prepare-se para celebrar sua primeira missa, nos fundos da igreja fica a casa paroquial, encontrará comida e roupas limpas lá. Vejo o senhor mais tarde, passar bem.
O velho padre saiu e Inácio percebeu que não poderia contar muito com ele.
Resignado ele seguiu para casa paroquial onde se lavou, se trocou, comeu e dormiu um pouco.
Acordou com os sinos da igreja bradando. Olhando pela janela percebeu o Sol se deitando por sobre as montanhas. O tremendo cansaço de todos aqueles dias de viagem havia lhe pregado uma peça e ele não conseguiu acordar a tempo da missa, e padre Tiago nem ao menos buscou por ele!
Apressado ele se arrumou e seguiu para a igreja, lá chegando encontrou todos os bancos tomados pela elite local disposta nas primeiras filas, no meio da igreja havia moradores mais humildes, no fundo mineiros e por último, de pé, alguns escravos.
Padre Tiago estava sentado junto ao altar e lançou lhe um olhar de reprovação:
- Deus a tudo observa jovem Inácio – disse ele – agora comece a homilia.
Antes de começar Inácio se apresentou aos presentes, corria o olhar por todos, mas se deteve frente a uma visão: lá estava ela, mesmo com o rosto coberto por um véu a reconheceu, era Maria do Rosário. Inácio vacilou um pouco em seu discurso, foi breve, porém nada que não escapasse ao olhar inquieto de padre Tiago que a tudo observava sentado ao lado do púlpito.
A celebração corria sem problemas, Inácio dominava o latim com a maestria de poucos e entoava cantos de grande beleza sacra. Chegou então o ápice da cerimônia católica, a Santa Ceia, e o povo fez fila para receber o corpo de Cristo e, mesmo que o próprio Jesus considerasse todos os homens iguais perante Deus, ali imperava a lei da importância e os poderosos locais eram os primeiros a receber a hóstia sagrada.
Um a um recebiam das mãos de Inácio o pequeno pedaço de pão ázimo, ele depositava nas mãos dos fieis, em outros colocava diretamente na boca. Até que veio a vez de Maria do Rosário que mais uma vez demonstrando ousadia levantou o véu e abriu a boca para que Inácio depositasse ali o alimento santo, e ele o fez e de novo sentiu os lábios da moça roçarem sua mão, mais uma vez sua face ruborizou. Maria do Rosário o encarou um pouco e seus olhos castanhos brilharam para ele.
Ao lado, padre Tiago observava tudo, impassível como uma ave de rapina.
Aquela noite Inácio não dormiu. Sentiu a febre que acomete o homem quando inoculado pelo veneno de uma mulher. Suava frio, revirava-se na cama. Sentiu a vida pulsar entre suas pernas e por fim, não suportando mais a força da tentação, entregou-se ao pecado solitário derramando fluídos por sobre o lençol enquanto pensava nos olhos, nos lábios e no corpo de Maria do Rosário. Depois chorou, se ajoelhou ao lado da cama e rezou seu terço em busca de perdão e arrependimento. Porém a cada dia que passava, a cada missa celebrada, lá estava ela e o pecado noturno se repetia noite após noite. Pelos cantos, como uma sombra perversa, padre Tiago sempre estava à espreita de tudo.
- Padre Inácio – disse padre Tiago certo dia – lembre-se, Deus tudo observa e pune os erros dos homens.
- Porque diz isto padre? – retrucou Inácio.
- O Diabo padre Inácio, o diabo muitas vezes usa as jovens e seus encantos. Cuidado, não entregarei minha igreja a um pecador.
- Sua igreja padre Tiago? Pois digo que está igreja não é tua nem minha, nem do povo que reza protegido por suas paredes, antes é de Nosso Senhor Jesus Cristo, ninguém mais.
- Aqui eu tenho mais poder que Cristo padre Inácio, lembre-se disso.
- Isto sim é heresia padre Tiago, se algo assim chega-se aos ouvidos da Cúria o senhor seria excomungado.
- Não temo a excomunhão, mas acho que o senhor deveria temer a maldição. Agora passar bem, tenho de ir ter com os meus.
Depois desde episódio eles mal se falaram novamente. Inácio sentia que Tiago era um homem perigoso e deveria ser denunciado ao episcopado. Por outro lado não conseguia tirar a jovem Maria do Rosário da cabeça. O que não sabia era que a jovem também brigava com sua consciência e pela primeira vez se percebia uma mulher e não uma menina, frequentava mais a igreja, a ponto de as pessoas já começarem a comentar pelas ruas, ela não ligava, queria ficar perto de Inácio mais tempo.
E Inácio também tornou-se ousado, fazia visitas frequentes a casa da moça com a desculpa de pregar os evangelhos. Indiferentes a tudo e a todos eles faziam caminhadas sozinhos, conversavam na praça e trocavam risos e confidencias. Seria um casal normal, se ela não fosse uma moça solteira e ele um sacerdote da Igreja.
Desafiando todos, eles continuaram a se encontrar e certa ocasião, estando a sós na casa paroquial, tiveram uma conversa definitiva.
- Inácio – disse Maria do Rosário – toda a vila está a comentar sobre nós dois.
- Incomoda-te os boatos alheios?
- E não deveriam? Tu tens uma missão a cumprir, não quero ser um obstáculo em teu sacerdócio.
- Pois abandonaria meu sacerdócio por mais tempo junto a vos mi ce.
- Que queres dizer? – ela perguntou vermelha.
- Que não há nada neste mundo que desejo mais do que a senhora, é pela senhora que rezo a noite, é pela senhora que meu sono não vem e é pela senhora que meu corpo queima em febre. Amo-te Maria do Rosário e não creio que o amor, sentimento ensinado pelo próprio Cristo, seja pecado.
- Então vos mi ce também o sente? Mas irão nos perseguir, nunca irão nos aceitar.
- Pois fujamos os dois então! Na próxima madrugada uma tropa partirá da vila, venha comigo Maria do Rosário, rogo a Deus que venha comigo!
Como estavam sós eles foram ainda mais além e suas bocas se tocaram ignorando o lugar santo onde estavam. Mas eles só pensavam estar a sós, na penumbra, como sempre, estava padre Tiago, disposto a impedir a união dos jovens.
A noite chegou, uma noite sem lua e silenciosa, apenas o rouco agouro das corujas preenchia o ar, no estábulo das mulas Inácio esperava por sua amada, já havia abandonado o hábito, vestia-se como um homem comum.
Não demorou muito ela apareceu. Trajava vestes simples como a dele, mas sua beleza não diminuía nem um pouco por isso.
- Inácio – disse ela – ah meu amor, tenho tanto medo.
- Não temas meu amor, ninguém vai nos separar agora.
Sob o olhar apático das mulas os dois enamorados se beijaram mais uma vez. Um beijo longo e ardente, interrompido apenas por uma voz vinda das trevas:
- Nem a morte é punição grande o suficiente para tamanho pecado! – disse padre Tiago surgindo entre os animais.
- Deixe-nos! – gritou Inácio – não tenho mais nada contigo ou com “tua” igreja, como o senhor mesmo disse.
- Não quero nada de ti – disse padre Tiago – não passas de um pecador e teus crimes serão punidos por Deus e pelo diabo no momento certo. Negou a santa igreja, e o preço dos filhos que traem as mães é o esquecimento e o abandono. Agora quanto a esta sinhá, essa cria do demônio, ela sim deve pagar pelo crime de tentar os santos homens da igreja!
- Deixe-a, juro que se a tocar és um homem morto!
- Além da fornicação também irás matar Inácio? Não já pecou o suficiente?
Maria do Rosário falou pela primeira vez:
- Amar não é pecado, foi o que Jesus nos ensinou...
- Cala-te demônio – berrou padre Tiago – não tente corromper meus ouvidos, já há muito tempo meu corpo não tem mais desejo pela carne de mulher alguma. Mas tu já pecaste, e por teu pecado serás maldita!
Padre Tiago mostrou então um machado que trazia escondido por sob a batina.
- Afaste-se de nós! – gritou Inácio.
Padre Tiago estava enlouquecido, partiu armado com o machado para cima dos dois jovens. Inácio se colocou a frente para proteger Maria do Rosário, mas sua coragem custou caro, ele recebeu o primeiro golpe, a lâmina do machado entrou fundo em seu peito e o sangue escorreu pelo estábulo.
- Nãããoooo! – gritou Maria do Rosário se ajoelhando para segurar o corpo de Inácio enquanto este caia.
- Seu maldito! – ela gritou.
Padre Tiago apenas sorriu.
- Não morra ainda padre Inácio – disse ele – ainda não completei minha intenção.
Inácio, apesar do grave ferimento e da morte iminente, ainda mantinha os olhos abertos.
- Mata-me de uma vez! – pediu Maria do Rosário.
- Matar-te? – falou padre Tiago – não, não merece a morte, merece castigo muito pior.
Padre Tiago mais uma vez levantou o machado e num único e certeiro golpe decapitou a bela jovem. Inácio, no fim de suas forças, convalesceu de dor.
- Agora Inácio, verás a pena para o crime cometido por esta jovem.
Tiago pegou a cabeça da jovem e se dirigiu até uma das mulas próximas.
- Observe pecador, não servimos ao mesmo Senhor. Tenho outro mestre, um mestre sábio e perverso, e ele me concede poderes que nem imagina!
Inácio puxou então um pequeno punhal e com ele golpeou uma das mulas, o animal relinchou de dor e Tiago banhou a cabeça de Maria do Rosário com o sangue que escorria da garganta do quadrúpede. Depois jogou novamente a cabeça junto ao corpo e uma bizarra transformação começou a ocorrer.
A cabeça de Maria do Rosário começou a se queimar e seu corpo a se contorcer. No limite de suas forças Inácio via tudo, viu quando o corpo de sua amada ganhava contornos animalescos e ficava de pé em quatro patas, o pelo tomava conta de tudo. A sua volta os animais corriam assustados e o que restou era semelhante a eles em tudo, uma mula, porém faltava-lhe a cabeça e no lugar saia apenas labaredas de fogo.
A criatura tomada pelo medo, pela fúria e pela agonia, desembestou pelas ruas de pedra levando aflição a todos que cruzavam seu caminho. Inácio vivia seus últimos momentos de vida e antes que morresse padre Tiago ainda o amaldiçoou:
- Que teu espirito imundo nunca descanse Inácio!
Assim morreu Inácio, mas sua alma ainda vaga pelo mundo. Dizem que está em busca de sua amada até os dias de hoje, conhecida por todos como uma besta denominada simplesmente de a “Mula sem Cabeça”, uma mulher maldita que teve este destino como punição pelo simples ato de se enamorar por um padre.

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