quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Hazel


Um grito habilmente abafado. Foi assim que acordei. Tremia um pouco, mas não era de frio. De qualquer forma puxei o cobertor tentando acalmar o corpo agitado. Como o de costume olhei para o lado, certificando-se que minha irmã ainda estava ali.
Ela estava. Dormindo tranquilamente. Alheia a tudo que acontecia quase todas as noites.
Não queria olhar o relógio, pois já sabia que horas eram. Três da manhã. Não se precisa de muito para entender o que isso significa. Eu já sabia, só não queria lembrar.
Isso não era recente. Na verdade, estava presente nas minhas memórias de infância tão bem como o sorriso da minha mãe.
Quando eu gritava e chorava, o tempo inteiro, dizendo que não queria dormir, não era bem verdade. Eu não queria sonhar. Sabia muito bem o que acontecia nos meus sonhos. Não queria voltar para lá. Foi quando insisti para minha irmã passar a dormir em um ponto onde eu pudesse vê-la. Era o que me acalmava quando eu acordava sem voz e em pânico. Ela parecia ser mais forte, e eu sempre acreditei que ela me protegeria.
Depois de um tempo, fui obrigada a parar de insistir em não ir para cama. Parar de correr para a cama da minha mãe quando era pesado demais para voltar a dormir. Mas os sonhos não paravam. Eles nunca param. Também acabei com a ilusão que ter a minha irmã por perto mudaria algo, mas ainda a olhava quando acordava, só por costume.
Dessa vez era apenas uma menina. Grandes olhos castanhos. Parecia tímida atrás do escorregador do parquinho. Eu sorri para ela enquanto esticava e dobrava as pernas no balanço.
- Olá princesa. – Disse e sorri vendo ela se esconder mais ainda. – Qual o seu nome? Ela não respondeu, mas saiu de trás do escorregador.
- Eu nunca te vi por aqui. Senta aqui comigo. – Eu disse e ela se sentou. Balançamos juntas por alguns minutos até que ela resolveu falar.
- Você que está no lugar errado.
- O que? – perguntei confusa.
-Você nunca me viu aqui, mas na verdade você que não deveria estar aqui.
-Sou muito grande para um parquinho? – Perguntei sorrindo, mas ela não respondeu.
Ficou em silêncio mais alguns segundos. Finalmente resolveu falar:
- Diga a ela que é um lindo nome.
- O que? Dizer a quem? – Perguntei.
- Ela me chama de “minha Hazel”. Demorou muito tempo para escolher. Diga que eu gostaria de ser chamada Hazel.
Parei o balanço. A menina falava como alguém muito mais velho.
Olhei para a menina. As correntes que suas pequenas mãos seguravam sujaram-se de vermelho. Era sangue. Ela encarou como se já esperasse.
- Suas mãos! – Eu gritei e saltei de onde estava para ajuda-la.
Uma forte dor no estômago me forcou a dobrar-me para frente. Na verdade não parecia ser no estômago. Abracei a barriga com os olhos fechados. Tentando conter a dor.
O cabelo completamente jogado pra frente enquanto eu soltava um grito agudo de dor, caída em frente ao balanço da menina Hazel.
Recuperei o ar. Olhei para frente. Ela havia sumido. No balanço estava uma borboleta amarela, que voou tranquilamente, atravessando a rua, parando na pista onde pessoas andavam tranquilamente.A dor foi tão real que me acordou. E o sonho passava em minha mente mais uma vez, enquanto eu encarava minha sonolenta irmã.O dia se passou normalmente.
O tédio inevitável do domingo não me surpreendia mais. Se me perguntassem se eu queria sair ou ficar em casa, provavelmente eu aumentaria o volume dos fones de ouvido e pediria para me deixarem em paz no meu quarto.
Estava perto de anoitecer novamente, o crepúsculo pintava o céu de um jeito bonito quando minha mãe pediu para comprar o pão. A chuva já tinha terminado, mas o delicioso vento frio ainda corria pelas ruas da cidade. Peguei com gosto meu casaco de capuz e sai.
No caminho encontrei várias crianças brincando, e até mesmo discutindo, o que me fez rir um pouco. Caminhava junto com muitas outras pessoas que iam e vinham de todos os lugares possíveis. Apesar do fluxo de pessoas, o barulho não incomodava.Velhinhos correndo, adolescentes conversando e um lindo casal de mãos dadas.
A mulher estava andando devagar, o homem que a acompanhava estava claramente carregando-a. Eles pararam poucos metros a minha frente quando a mulher sentou-se no chão, chorando.
O marido puxou o telefone e eu estava perto o suficiente quando a mulher começou a gritar. O homem se desesperou e parecia gritar também com a pessoa do outro lado da linha. Provavelmente pedindo ajuda.
Vários rostos curiosos começaram a se reunir em volta da cena. Eu me abaixei perto da moça e segurei sua mão. Mais nenhum dos intrometidos parecia interessado em ajudar, só queriam saber do que se tratava. Uma poça de sangue começou a se formar entre as pernas da mulher que gritava rouco, com os olhos fechados.
- Meu… meu bebê. – Ela conseguiu dizer quando abriu os olhos.
Grandes olhos castanhos.
Os olhos delas me deram vertigem. Fechei os meus, tentando não desmaiar.
Voltei a olhá-la. Ela parecia um pouco melhor, agora chorava baixinho. O marido chegou perto e se abaixou. Claramente ia me expulsar quando eu sussurrei.
-Hazel…
Eu toquei a barriga da moça. Ela me encarou com os mesmo olhos castanhos que eu havia visto hoje de madrugada:
- Como… Como sabe o nome da minha Hazel?
- Ela queria… Queria que você soubesse que é um lindo nome.
A mulher me encarou, porém a dor não a deixou falar. O marido me olhou com olhos arregalados, mas desviou assim que a mulher soltou mais um suspiro.
Levantei ainda em êxtase. A situação não parecia real.
Foi quando uma borboleta amarela chegou a meu campo de visão. Ela atravessou a rua delicadamente. Do outro lado da rua estava um parquinho, esse eu conhecia, o vi diversas vezes fazendo esse caminho.
O balanço se mexia tranquilamente, porém não tinha nenhuma criança sentada ali.
-Responda! – A mulher me disse quando conseguiu um pouco de fôlego.
Eu levantei, ainda encarando o balanço que se movimentava:
-Desculpe, eu estive no lugar errado. – Disse enquanto me afastava

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