quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Na floresta


Imagem: Maria Santino


A região amazônica é rica de diversas formas e no quesito, mitos e relatos fantásticos, recebe também um enorme destaque.
Sempre fico reflexiva quando ouço alguém desmerecer os causos contado por uma pessoa mais humilde e tento esquecer tudo o que vivenciei na infância, afinal, quem acredita em relatos assim?

 

     Morávamos no interior do estado do Amazonas e meu pai, que havia sido soldado da borracha, casou-se com minha mãe, teve dois filhos e depois de se aposentar, decidiu que queria plantar cupuaçu e viver do lucro que aquele fruto propiciava. Foi nesse período que nasci. Nunca fui bonita, mas quando criança a situação era quase medonha; era magra demais, joelhuda, tinha o rosto quadrado, olhos negros e grandes quase saindo das órbitas, baixinha e minha pele tinha o aspecto de queimada pelo sol. No entanto, para meus pais eu era uma criança como outra qualquer, e acho que essa é a função do amor entre pais e filhos, nos fazer parecer que somos seres dignos de amor, inseridos, normais.
     Aos seis anos de idade me despedi dos meus irmãos, que rumaram para a capital, Manaus, para estudar na faculdade federal do estado, e assim, ficamos só meus pais e eu unidos a grande plantação e os trabalhadores que vinham periodicamente fazer coleta dos frutos. O pedaço de chão onde morávamos ficava próximo a uma mata virgem e havia relatos de animais selvagens, onças, cobras e javalis, além é claro, dos contos fantásticos que os trabalhadores narravam, sobre seres misteriosos que habitam as matas, por isso, também evitávamos andar por aquele lugar.
     Passamos bons tempos naquela terra, não éramos pessoas de grandes ostentações, muito simples, frequentadores da igreja cristã. Nossa casa era pequena, de madeira, com exceção do piso que era de alvenaria, confortável e limpa. Tudo era paz e progresso em nosso lar, porém quando completei 11 anos de idade mamãe veio a falecer após ter contraído malária, e aqueles foram dias turvos onde não houve coleta de frutos e meus irmãos quiseram que vendêssemos tudo e fôssemos embora, meu pai tornou-se diferente: duro, agressivo e passou a consumir álcool dia e noite. Ele se manteve firme em decidir ficar ali e eu fiz um escândalo para não me separar dele. No entanto, tudo havia mudado; não havia mais brincadeiras, nem conversas engraçadas, só um homem distante, sisudo que estava sempre bêbado.
     Logo o cupuaçuzal foi atacado pela “vassoura de bruxa”, uma doença causada por um fungo que também ataca o cacau, fruto da mesma família do cupuaçu, esse mal afeta a extremidades da planta e brotamentos jovens os fazendo secar e dando a aparência de vassoura velha, daí o nome da doença. A safra caiu, muitos trabalhadores vieram para podar as plantas, já que esta ainda é a ação mais eficaz para combater a doença, e dessa forma os gastos foram exorbitantes.
     Após algum tempo, meu pai se entregou de vez ao álcool tornando-se recluso em casa, os trabalhadores reclamavam a falta de pagamento pelos serviços prestados aparecendo a qualquer hora do dia para fazer-lhe cobranças e xingá-lo com palavras horríveis ou o ameaçá-lo, mas sempre iam embora e diziam que papai estava “cavando a própria cova”. Em uma noite, alguns deles decidiram fazer “justiça com as próprias mãos”.
     Era Tarde, eu havia lavado as louças do jantar e meu pai estava bêbado, como já era seu costume, e deitado em uma rede para assistir ao telejornal. Naquela noite em especial ele me chamou para junto dele como há tempos não fazia, ainda escuto sua voz:
     - Émile! Venha aqui, vamos assistir o jornal.
     Passado alguns minutos, sentimos um cheiro forte de gasolina e depois vimos o clarão amarelado das chamas. Os empregados puseram fogo em nossa casa e depois riam e gritavam em regozijo pelo feito, sentindo-se vingados segundo suas leis.
     Meu coração disparou, vi meu pai pegar a arma que ficava em um armário, abrir a janela da cozinha e me mandar pular para me safar, mas assustada e sem querer deixá-lo, não conseguia obedecer, no entanto, ele me empurrou janela afora onde acabei caindo e torcendo o pé. Fiquei abaixada chorando e vendo a casa ser engolhida pelo fogo, depois ouvi tiros e pensei o pior, mas não tive nenhuma ação, pois meu pé doía muito.
     O fogo aumentou, o calor ficou insuportável e um dos empregados do meu pai me puxou pelo braço, tentei em vão desvencilhar-me, ele cheirava a álcool e cigarro, fui arrastada até a frente de casa onde meu peito infantil congelou.
     Sobre o chão com o corpo banhado pelo clarão das chamas vindas de casa, meu pai jazia morto com um tiro na cabeça. O grito não saiu, nem voz, só choro, choro sem som algum somente lágrimas que rolavam em grande fluxo. Os homens tinham o olhar de bicho e estavam cheios de ódio. Um deles deu um tiro para cima e apontou a arma em minha direção me mandando correr e que se caso parasse eles me matariam.
     Obedeci. Não havia mais pé torcido, nem pensamentos, eu só corria sem olhar para trás enquanto escutava aqueles risos altos e deixava o negrume da noite me engolir tendo o medo como mola propulsora. Adentrei na mata fechada que ficava após a plantação e seguir em frente sentindo os olhos e palavras daqueles homens cravados em mim.
     O fogo se alastrou, ao longe podia ouvir o cupuaçuzal crepitando e as folhas secas alimentando as labaredas. Já bem distante, tropecei em uma árvore caída, não era possível ver mais nada e os animais noturnos com seus barulhos aumentavam meu pavor, sentia que meu peito estava na garganta e lembranças da cena que vi, iam e vinham como um filme curto, que recomeçava e me fazia senti um forte solavanco por dentro. Chorei ali, por horas até que o sono levou embora a consciência.
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     Quando o sol mal havia surgido, algo me acordou, abri os olhos após ouvi um grito muito forte que julguei ser dos macacos guariba, pois eles produzem um som rouco, altíssimo e assustador. De sobressalto me coloquei em pé, mas ao fazê-lo percebi que havia chamado a atenção de um ser perigoso que lentamente começou a vir em minha direção.
     Os galhos das árvores balançavam com o vento em prévia de chuva, derrubando as gotas acumuladas de orvalho que se misturavam as minhas lágrimas que começavam a brotar novamente devido ao medo, as folhas secas e caules mortos quebrava-se a cada passada do enorme felino todo pintado que se aproximava fitando-me e fazendo seus barulhos de fera, atrás de mim havia um grande espaço, mas como estava com o pé machucado não conseguia correr, (ainda que essa fosse minha única vontade).
     A enorme onça veio em minha direção mais rápido ao perceber meu medo e ímpeto de fuga, correu dando algumas passadas até que novamente aquele grito foi ouvido mais alto e perto. Por algum motivo ela parou e mais uma vez o som, rouco, alto e forte ecoou na selva. Coloquei minhas mãos nos ouvidos e sentei no tronco próximo a mim, me sentindo desnorteada. O felino mantinha as orelhas para trás em um movimento de alerta e via algo que eu ainda não tinha visto.
     Logo, um ser peludo de mais de dois metros de altura se colocou diante dela enquanto eu observava boquiaberta aquela curiosa aparição. De início, achei que fosse um bicho-preguiça, mas não poderia ser, ele era grande demais, seus pés e mãos eram como dois pilões sem garras só cascos grandes e redondos, a coloração dos pelos compridos, possuía um verde profundo quase negro.
     Os movimentos foram muito rápidos, aquela fera felpuda investiu contra a onça e arrancou sua cabeça num "zás-trás" mordiscando e engolindo com sofreguidão, minhas mãos não estavam mais nos ouvidos e sim, tapando minha boca para evitar o grito de pavor.
     Um trovão ecoou alto e o ser voltou-se para mim. Senti um cheiro forte de ervas e folhas verdes que me deixava enjoada, era um odor desagradável, vi que ele possuía somente um olho bem no meio da testa e a boca abria em vertical, do queixo ao umbigo, cheia de dentes pontiagudos. Gritei com todas as forças que possuía, pedi socorro alto não tendo mais controle sobre mim e sentindo que o pior estava preste a acontecer.
     Ele manteve a boca aberta por algum tempo, mas não avançou, farejou o ar e após os primeiros pingos de chuva começar a cair, andou para trás lentamente sem tirar aquele único olho redondo, da cor de folha seca, de cima de mim. Não muito distante, emitiu mais uma vez aquele bramido perturbador e rouco erguendo sua cabeça disforme para o céu e depois saiu pulando pelos troncos das árvores, bem rápido desaparecendo em seguida floresta adentro.
     Todo aquele barulho chamou a atenção dos moradores que vieram ao meu encontro mesmo com a forte chuva que caia.
     Entrei em estado de choque por alguns dias e meus irmãos cuidaram dos trâmites legais da venda de nossa fazenda, bem como puseram a polícia no encalço dos bandidos, vim para capital do estado e me recuperei em um hospital passando a morar com um de meus irmãos e sua esposa. Minha adolescência foi vulgar, sem grandes realizações e jamais contei o que vi na selva, permitindo que todos pensassem que meu jeito introvertido e assustado, fosse devido ao que aconteceu com meu pai. Às vezes acordava na madrugada aos gritos, sentindo aquele cheiro nauseante de folhas verdes, mas com o tempo, retive tais lembranças em algum lugar da mente não voltando mais a pensar nelas.
     Hoje, em idade adulta sei o que vi e afirmo, aquele na mata era ele, o mapinguari.

(mapinguarí, ser fantástico que habita a floresta amazônica devorando as cabeças daqueles que encontra. Ribeirinhos e indigenas, afirmam que suas caracteristicas são: possui mais de dois metros de altura, um olho só, emite sons altos, a boca é no umbigo ou abre em vertical do queixo ao umbigo, pele felpuda ou na idêncica a de um jacaré, não possui garras e muitos atestam que tem medo de água. Estudiosos afirmam que tal ser seria um remanescente dos grandes bichos-preguiça gigantes)

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