sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

O espelho obscuro




   Sentado no capo de sua caminhoneta velha, Martins acendeu um cigarro enquanto dois funcionários do cemitério quebravam o tumulo de seu pai. O velho amigo Saulo, arrancou uma pequena garrafa de whisky de dentro do paletó surrado, bebeu um gole longo e indagou:
— Uma exumação nunca é boa coisa de se ver, mesmo se tratando  de um homem infame como seu pai, que o bom Deus o tenha... Se é que “aquele sujeito” perdoa mesmo os pecados...
 Martins desceu do capo e jogou fora o cigarro depois do terceiro trago, atento aos golpes de marreta que arrebentavam a tampa de concreto que protegia o caixão, desviou o olhar para o amigo desengonçado. Se aproximou do mesmo e pegou o whisky de sua mão. Deu uma curta talagada. Devolvendo, limpou a boca e respondeu:
— Meu pai não era o tipo de sujeito que esperava pelo perdão divino. Era fiel ao misticismo. Mas levando em consideração a sofrida vida que teve, creio que aos olhos de Deus ele esta perdoado em sua inocência.
 A poeira do tumulo aberto subiu. Os funcionários colocaram as mascaras nos rostos e o caixão foi arrastado aos pés de Saulo, que guardou a bebida de volta no bolso do velho paletó marrom e blasfemou:
— Santa caceta! Tinha até me esquecido do bom gosto do seu pai! Realmente construiu um belo caixão para descansar!
 Martins sabia do que o velho amigo da família estava falando. Muito antes de sua morte, o pai havia escolhido a madeira e fabricado com cautelosa luxuria seu próprio caixão. O talhou com extrema perfeição, pintou, envernizou, poliu e zelou, até o dia em que o corpo decrépito deu sinais de fraqueza:
— Ele era um homem muito supersticioso. Fico surpreso que não tenha tido medo de construir o próprio caixão. – disse Martins.

— Você diz medo de se gorar? – perguntou Saulo, respondendo logo em seguida – Mas é claro que não! Juarez era um sujeito inquieto e infeliz, pensava sim em nova vida, não é a toa que teve três esposas. Nunca conseguiu o que sonhava com nenhuma delas, estava na cara que almejava a felicidade, mas nunca a teve. Sou capaz de acreditar que a época mais feliz da vida dele foi o planejamento deste caixão bonito. Eu não o culpo! Se você o declarou inocente aos olhos de Deus, sou firme em apoiar tal particularidade do meu velho amigo.
 Um dos funcionários pôs o pé sobre a tampa do caixão, pronto para abri-lo com o pé-de-cabra. Martins o olhou cismado e indagou:
— Mas respeito, homem! Tire os pés dai, por favor.
 O coveiro envergonhado obedeceu, largou a ferramenta e desparafusou com a ajuda do amigo a tampa pesada. Se prepararam para abrirem o caixão bonito. Saulo encarou Martins e nenhum deles conseguiu esconder do outro o ar de curiosidade.

 Quando a tampa foi arrancada, um forte fleche de luz iluminou a ossada do cadáver. Martins curioso se ajoelhou diante do caixão e viu uma lâmpada pequena entre as mãos de seu pai. A lâmpada foi ficando cada vez mais fraca, até se apagar de vez:
— Uma lâmpada? Acesa? – perguntou Martins impressionado.
 Os coveiros curiosos puseram a tampa de lado, puxaram o soquete da lâmpada e viram que um fio corria por dentro das vestes podres do cadáver, passando pela manga e adentrando no paletó, entrando nas calças do defunto e indo até seus pés.

 Puxaram o fio que foi rasgando sem dificuldades o terno apodrecido e seco junto com a carne. O fio deu até uma grande bateria coberta por uma ripa e pelo tecido que um dia foi branco, aos pés do caixão:
 — Podem me chamar de idiota – disse Saulo, coçando a velha careca enrugada – Mas não tenho motivos para acreditar que esta lâmpada ficou acesa por todos esses anos graças a esta bateria descarregada...
— Vinte e quatro anos! – disse Martins ainda impressionado – Faz vinte e quatro anos que ele foi sepultado!
 Saulo tentando arranjar uma explicação, abriu a ripa de madeira que protegia a bateria aos pés da ossada, enquanto ia justificando alguns pontos ao seu modo:
— Você não conheceu direito seu pai, Martins. Era um pirralho mirrado quando ele morreu. Juarez tinha medo do escuro, acho que pediu á sua mãe que deixa-se a lâmpada instalada. Agora sei por que o caixão ficou lacrado durante todo o funeral. Sua mãe disse que ele não queria que ninguém o visse morto, para não ser lembrado assim, mas vejo que foi só uma desculpa para ocultar o medo da escuridão eterna.
— Talvez. – Opinou Martins rodeando o caixão, enquanto um dos coveiros preparava o saco para depositar os restos – Mas isto não explica o fato da lâmpada ainda estar acesa. Nenhuma lâmpada do mundo ficaria acesa tanto tempo assim, mesmo que a bateria tivesse força o suficiente. Deus meu... São vinte e quatro anos!
 Os homens sem perderem tempo foram arrancando os ossos colados ao corpo seco. O velho Saulo segurou no ombro do amigo e solene falou:
— Certas coisas simplesmente não podem ser explicadas, Martins. Coisas como esta não podem ser compreendidas, mesmo que não sejam aceitas... Vamos embora e deixe os homens cuidarem do resto.
 Saulo mais uma vez estava certo. Ao dar o primeiro passo, Martins sentiu uma luz focar da tampa do caixão. Intrigado, se aproximou e virou a tampa velha de lado e se espantou:
— Um espelho?
 Saulo cauteloso olhou o objeto coberto com uma crosta escura. Arrancou uma caneta do paletó e passou no cristal, constatando que fora a sujeira, estava praticamente intacto:

— Sim, é um espelho. Seu pai os adorava. Vendia muitos e muitos no antiquário. Este em especial é bem bonito e antigo, não é a toa que seu pai queria leva-lo para o sepulcro. Deve valer uma pequena fortuna!
 Martins encarou o velho amigo que muito bem escondeu sua curiosidade. Este lhe sorriu e continuou a dizer:
— Deus meu, Martins! Não estou tentando achar uma explicação para este outro fato estranho! Só estou tentando lhe dizer que... Bem, seu pai em vida não era um homem de muitos costumes e obsessões. Devo afirmar que sim, ele teve uma vida falha e de certa forma desgastante. Não era homem de reclamar, mas certa vez o ouvi dizer que sua maior vontade era recomeçar a vida tudo de novo. Se você me perguntar se tenho uma explicação para isto eu lhe respondo que não tenho. Mas se quer saber se tenho uma teoria... Bem, ai é diferente, eu posso lhe dizer que tenho uma “tola” teoria.
 Tola teoria. Martins olhou para o velho enquanto os dois funcionários depositavam o saco com a ossada na urna da família:
— Pois seria interessante ouvir alguma coisa plausível. Seria interessante sim, mesmo sabendo que a teoria absurda que sairá de sua boca ecoará num canto escuro da minha cabeça até o fim da minha vida térrea.
 Saulo sorriu, tentou contar sem parecer ridículo. Respirou fundo, tirou novamente o whisky do bolso. Ele precisava molhar a boca para dizer suas próximas palavras. Deu uma longa golada e entregou ao amigo, respirou fundo enquanto limpava a boca com a manga do paletó surrado, contando sem rodeios:
— Pois bem: Quando éramos jovens, seu pai se encantou por uma índia velha que veio acompanhada do pai ao mundo civilizado. Mesmo a mulher sendo muito mais velha que ele, Juarez nutriu um forte sentimento por ela, tão forte que cheguei a acreditar em feitiço. É complicado de se explicar, porque você pode não entender e dizer que também sou supersticioso. Não sou supersticioso, mas acreditava de verdade que aquela índia velha o enfeitiçou! A maldita fez o belo rapaz se atrair por ela! Juarez era um sujeito de porte, na juventude gozava de boa saúde e tinha um padrão de beleza aceitável. Era cobiçado pelas meninas da cidade pequena, no entanto, se apaixonou por uma índia que tinha idade para ser sua avó. Pois foi este o inicio de toda a desgraça de seu pai... Por oito anos, oito longos anos de sua vida jovial, ele se dedicou aquela mulher. Ele só se desapegou dela quando uma ferida braba infeccionou e arrancou a vida daquela maldita! Mesmo doente e com o enorme machucado exalando um cheiro horrivelmente pútrido, seu pai ficou junto dela. Quando eu ia visita-los, ficava na varanda, pois não aguentava ficar dentro da casa pequena... O cheiro de carne podre era muito forte. Seu pai aguentava, cuidou da velha, limpando e tratando da ferida braba, até ela morrer e a alma sair do corpo. No exato momento em que ela morreu, ele caiu de joelhos e despertou do feitiço. Gritou na casa pequena, gritou para sair de dentro do quarto, mas percebeu que estava trancado. Demoraram três dias para tira-lo de lá, ele estava em choque e dizia que o tempo todo estava sendo seduzido pela alma da esposa morta, enquanto que o corpo da mesma apodrecia diante seus olhos. Ele me disse que via a alma dela dentro do espelho da penteadeira...
 Martins sorriu. Sorriu e olhou para o amigo serio. Ficou tão constrangido por rir que deu uma segunda talagada no whisky e perguntou:
— Acredita nessas coisas?
— Bem – respondeu Saulo – Pode parecer uma historia absurda, mas isto condenou a mente do seu pai. Ele passou a se lamentar pelos longos 8 anos dourados, perdidos de sua vida jovial. Quis recuperar o tempo perdido e acabou se casando com uma moça que lhe fez muito infeliz. Quando conseguiu sair deste relacionamento pesado, montou o antiquário e depois de anos se casou com sua mãe. Você há de convir que este também foi um grave erro, mas como ele estava velho demais para recomeçar, optou por seguir sem pesares.
— Sim. – concordou Martins – A união deles foi um erro que tiveram que aturar por toda uma vida. Meu pai se dedicou com afinco no antiquário, e quando a saúde fraquejou, dedicou anos e anos planejando a própria morte. Mas o espelho ainda me é um grande mistério. Também é pra você, Saulo?
 Saulo respirou fundo. Olhou para os lados como que se não quisesse parecer idiota no que iria dizer. Pisou sobre a tampa do caixão com um pé enquanto que a sola do outro ia limpando um pouco do cristal do espelho:
— Olha meu rapaz... A maior desgraça de seu pai foi o relacionamento com a velha índia. Era ele um homem decidido, e por acreditar que muito perdeu, decidiu aproveitar a única coisa que lhe fez ficar estagnado. Se te falei que ele via a alma da velha vagando dentro do espelho da penteadeira, não menti. Esta ideia pendulou em sua cabeça e ele se aprofundou nisto. Se afogou em pesquisas e linhas de raciocínio sobre aquele fato intrigante, acho que por isto não foi feliz no segundo casamento, se afundava em teorias e descobertas, firme no propósito de tirar proveito da própria desgraça para se reinventar... Quer saber? Eu não acredito nisto. Não acredito que um morto possa vagar dentro de um espelho! Arranque este espelho e leve para o antiquário. Acho que te fará bem preservar algo que seu pai tanto amava.

 Martins realmente não acreditava que o espírito de seu pai vagava dentro do espelho antigo. Percebeu que a ideia do amigo estava misturada em um misto de sarcasmo e desafio. Bem, pensou consigo que aquela exumação realmente lhe fez parecer idiota aos próprios olhos.
 Sem dificuldades conseguiu arrancar o espelho da tampa do caixão. O olhou curioso, enquanto o examinava:
— Tenho uma vaga lembrança deste espelho... – se esforçando para se lembrar da peça, cujos detalhes lhe traziam vagos fleches de lembranças.
— Deve ser único. Leve e restaure, se ele era importante para seu pai, pode também ser pra você. Vamos embora?

 Antes de entrar na caminhonete, Martins encarou o velho caixão vazio e o saco de ossos. Tremeu dos pés a cabeça ao encarar o espelho sujo debaixo dos braços. Um pensamento relâmpago lhe cobriu a mente. Talvez não devesse ousar... Talvez fosse melhor quebrar aquele cristal e jogar a carcaça dentro do caixão bonito, para ser queimada pelos coveiros junto com a madeira velha... Ignorou seus instintos e seguiu com a relíquia e o amigo bêbado.

 No caminho, desconversaram sobre o assunto. Saulo deixou o amigo em seu antiquário, onde morava com Lucélia, sua esposa grávida e o filho pequeno, no andar de cima. Antes de partir, o velho respirou fundo e sem tirar os olhos do caminho que seguiria, aconselhou o jovem:
—Vê se não fica pirado ou bolado com essa coisa toda, Martins. Não quero acreditar que desenterramos duvidas e incertezas junto com a carcaça de seu pai.
 Martins não precisou pensar em uma resposta. Antes que abrisse a boca, Saulo dirigiu,calando o assunto e as incertezas que não podiam mais ecoar.

 Martins com a relíquia embaixo do braço calou seus pensares e se preocupou com outra bobice. Torceu para que a esposa não percebesse o vago cheiro de bebida que saia de seu halito.
 Deixou o espelho velho na oficina do antiquário e subiu.
 Lucélia sabia que aquela tarde havia sido difícil para seu marido. Quis contar que o bebê mexeu mais do que o de costume em seu ventre, mas se calou. E mesmo sentindo o leve cheiro de bebida barata, não comentou sobre o assunto. Beijou o esposo e comentou:
— Deve ter sido difícil acompanhar a exumação. Vou preparar seu banho.
 Martins respirou aliviado e respondeu:
— Foi mais estranho que difícil, querida. Mas agora acabou. Preciso mesmo de um bom banho... Tou com cheiro de cemitério.... Lucélia o beijou e terminou de preparar o jantar.

 Sentado á mesa com a esposa e filho de 8 anos, Martins comia devagar enquanto pensava na exumação do corpo do pai. Seus pensamentos foram calados pela pergunta da esposa:
— Amor, o que acha daquela parede?
 Olhou para a parede branca e iluminada por duas lâmpadas á frente da cabeceira da sala de jantar. Procurou imperfeições na mesma e exclamou:
— O que tem ela?
— Vazia. Ela esta vazia meu amor. Acho que se colocássemos um quadro grande nela ficaria mais viva. O que acha?
 O jovem marido olhou atento para a parede e sem demorar, respondeu:
—Talvez um espelho. Um espelho antigo.
 A mulher gargalhou:
— Como você é brega meu amor! Um espelho? 
 Martins tentando não parecer ridículo respondeu:
— Colocam espelhos até em caixões... Não há de ser tão ridículo assim.
 O filhos pequeno o encarou. Ele continuou a cortar a bisteca enquanto a esposa tentava entender seu comentário tão vazio quanto a parede. Jamais entenderia.

 Trabalhou com afinco na restauração do espelho sujo e danificado, dedicando todo o seu tempo na recuperação da peça que acompanhou o cadáver de seu pai apodrecer e secar debaixo da terra.
 Olhou maravilhado para o espelho impecavelmente restaurado, neste momento, lembrou-se de toda a soberania afiada do velho Juarez.
 Encarando seu reflexo no cristal limpo, viu-se com os mesmos traços do homem que aprendeu a respeitar e a odiar, o homem carrasco e grosseiro a qual devia suprema obediência em sua sofrida infância.
 Hipnotizou-se ao deslumbrar seu reflexo, seu rosto lembrava perfeitamente o semblante do pai, os olhos atentos corriam pelos detalhes do próprio rosto...
 Lembrou-se porque não gostava de se ver, sua mente alimentada pelo reflexo de seu rosto o fazia recordar de todas as humilhações e desgraças que passou graças à estupidez do velho carrasco.
 Se viu ainda menino, ali, naquele mesmo lugar, segurando um espelho parecido... As mãos pequenas apertavam com afinco a moldura do cristal enquanto o pai doente polia o próprio caixão.
 Caminhava com cautela levando o espelho para o pai quando sentiu a moldura escorregar de suas mãos lisas, se espatifando no chão da oficina.
 Arrepiou-se dos pés a cabeça e o coração miúdo foi a mil. Encarou de olhos arregalados o julgamento do pai decrépito que se voltou á ele e aos cacos. Juarez com dificuldade levantou-se, aproximou-se do filho e em ira o humilhou:
— O que diabos fez, moleque retardado?
 O menino conhecedor do julgamento do carrasco abaixou a cabeça e sentiu a mão magra lhe segurar os ombros. As unhas cumpridas do velho doente entraram em sua carne e ele gritou de dor. Encarou o pai com os olhos arregalados e pode enxergar todo seu ódio. Sentia o sangue escorrer por onde as unhas do imundo entraram, o velho o jogou sobre os cacos e indagou em ódio:
— Limpa esta merda que você fez!
 Ajoelhou-se diante dos cacos enquanto o pai velava sua decadência. As mãos pequenas pegavam com cuidado os grossos cacos do espelho antigo, o doente lhe humilhava com palavras e tapas na cabeça e ele tremia. Em absurdo, a mão miúda apertou um estilhaço do espelho e ele sentiu o sangue escorrer do corte profundo. O pai decidido o obrigou a continuar. Tremulo, obedeceu, enquanto novos cortes lhe retalhavam as mãos...


 Naquela mesma noite, já estava dentro do seu quarto com a luz apagada, sentado em sua cama com as duas mãos enfaixadas. Pensava no acontecido enquanto ainda soluçava em lagrimas. Estela abriu devagar a porta do quarto escuro e acendeu a luz. Ele olhou para o rosto machucado da mãe submissa e a ouviu dizer:
— Meu menino... Seu pai esta acamado. Os enfermeiros estão cuidando dele. Ele quer te ver.
 O pequeno Martins obediente levantou-se da cama e calçou os chinelos. Caminhou com a mãe até o quarto onde o velho agonizava. Dois enfermeiros faziam o possível para livra-lo da dor. O menino olhou o sujeito que há horas atrás o humilhou com violência. Estela colocou a mão em seu ombro ferido e pediu:
— Vá até ele meu filho. Seu pai não estava em sã consciência. Diante disto, é preciso perdoar...
 Ele sabia que há algumas horas atrás a mãe havia apanhado do pai. Caminhou até o velho anestesiado, enquanto os enfermeiros foram dar as más noticias á sua mãe.
 Martins olhou frio o rosto do moribundo, que arregalou os olhos ao encarar sua face limpa. O menino sorriu. Sorriu diante da desgraça do pai carrasco. Riu majestosamente enquanto o homem se entregava ao frio da morte, agonizando e dando os últimos suspiros, sem poder ser salvo e nem perdoado.
 Martins encarou com desprezo o pai que mordia em agonia os próprios lábios. Sem mostrar piedade, o menino lhe disse baixo:
— Eu te odeio seu velho sujo! O inferno é muito pouco pra você! Morra e apodreça bem devagar...

 Martins despertou de suas lembranças. Encarou o reflexo no espelho e se espremeu para se recordar de mais detalhes do dia em que outrora quis se esquecer. 
 Voltou à memória para o dia da morte do pai, vendo sua mãe preparar seu corpo junto com os dois médicos.
 Martins viu quando colocaram o corpo de Juarez dentro do caixão bem trabalhado, ali mesmo naquela oficina. Viu quando a mãe se assegurou de que um novo espelho estivesse bem colocado na tampa do caixão, enquanto um dos médicos arrancava de dentro de uma caixa a lâmpada com o soquete e os fios. 
 Estela olhou para o filho que testemunhava a estranha preparação do corpo do pai, aproximou-se dele com cuidado e pediu que fosse brincar no terreiro. Obedeceu, sentindo no rosto o vento soprar, livre da crueldade do homem que chamava de pai, enquanto a mãe atendia o ultimo desejo do marido.

 Diante de todas suas lembranças, deixou o espelho bonito escapar de suas mãos, como fez quando menino. O cristal bateu com violência no piso duro. Ele testemunhou o espelho se chocar contra o piso e cair intacto, sem sequer um arranhão, diferente do desastre da ultima vez.
 Pegou com cuidado a peça e o pendurou na parede, cobrindo com uma cortina. Cortina esta que ele não esperava abrir tão cedo.
 Martins não queria calar seus pensamentos. Deitado junto da esposa, forçou a mente em busca de lembranças e respostas. Não conseguiu.
 Mas talvez, todas as respostas de suas perguntas estivessem em outra mente, tão ou mais esquecida que a dele. Sua mãe.
 Já faziam muitos anos que Estela estava internada no Asilo São Judas Tadeu. Calada e inerte graças ao Alzheimer, vegetava olhando o vazio, esperando só o dia de partir.

 Na manhã seguinte o carro de Martins parou em frente ao Asilo. Ele desceu do veiculo determinado a descobrir a verdade. Já fazia meses que não visitava a mãe... Da ultima vez, prometeu a si mesmo que jamais voltaria lá, pois era o mesmo que visitar um tumulo. A mulher não mais falava, sequer gesticulava ou demonstrava qualquer reação. Era inanimada e completamente inerte.
 Os portões foram abertos. Caminhou com a enfermeira até o belo jardim. Parou diante de uma senhora aparentando menos que setenta anos, sentada em sua cadeira de rodas. Tinha os cabelos totalmente brancos e despenteados. Com os olhos fundos inertes no belo jardim, pouco se importou com a presença do filho bem vestido. Ele lhe beijou a testa e pediu sua benção:
— Bença mãe.
 A mulher debilitada pelo Alzheimer sequer piscou:
— Mãe – disse ele sem rodeios – preciso que a senhora me diga por que enterrou aquele espelho com meu pai.
 Nenhuma reação. Martins se levantou e respirou fundo, olhou para a enfermeira que lhe lembrou:
— Sinto muito... Não ouve evolução no quadro clinico de sua mãe. Ela não consegue dizer uma única palavra...
 Conformou-se em não saber das respostas. Pronto para ir embora, ouviu a velha balbuciar:
— Você quebrou o espelho que ele escolheu. Por isto ele foi tão severo na punição.
 O homem se arrepiou dos pés a cabeça. Olhou para a mãe inerte em seu silencio. Encarou a enfermeira e perguntou:
— Ouviu o que ela disse?
 A mulher seria o encarou desconfiada e indagou:
— Ela nada disse senhor.
 Martins tentou calar seus medos e incertezas. Olhou para o caminho a frente que o conduzia até o portão. Realmente não gostava de visitar a mãe, prometeu a si mesmo que jamais voltaria lá. No entanto a causa era nobre. Tinha que enfrentar seus pesares e ir, mesmo sabendo que de nada adiantaria. Abandonou seus confusos delírios e seguiu em frente, com mais incertezas que antes.

 Saulo acordou de sua ressaca. Andou tossindo pelo corredor estreito do pequeno apartamento e entrou no banheiro sujo. Tossiu desenfreado e vomitou na pia. Olhou-se no espelho e abriu a torneira para a água lavar o vomito da louça. 
 Pegou um frasco de remédios, tirou dois comprimidos, jogou na boca e abriu a garrafa de whisky, deixando o álcool levar o remédio para seu estomago vazio.
 Segurou com as duas mãos na pia e se encarou no espelho manchado, se perguntando como chegou naquele estado de extrema decadência.
 As rugas em seu rosto cansado mostravam que o tempo não lhe foi generoso. O vicio corrompeu seus objetivos e o condenou á condição de velho e cansado. Não tinha mais sagacidade nem planos, vivia por viver, bebendo muito e comendo pouco, velando aos goles sua grande desgraça, enquanto se perguntava o que deu errado no meio do caminho:
— Juarez lutava contra si mesmo... E eu? – se perguntou encarando a face calejada no espelho turvo – Eu luto contra o que?
 Não tinha as respostas para as próprias perguntas. Assim como não tinha motivos para se reestruturar.
 Sempre fora um homem solitário, e agora, com o peso da idade, era só ele e as duvidas que não conseguia responder.
 O telefone tocou e Saulo caminhou para atender, já sabendo quem era. Não esperava nenhuma ligação, mas sabia que a única criatura que ligava era Martins, o homem que ele viu crescer.
 Martins parecia alterado e confuso, Saulo manteve a calma que o remédio lhe proporcionava e ouviu o amigo contar:
— Saulo, descobri sobre o espelho! Eu me lembrei de algumas coisas...
 Saulo atento na própria desgraça sentou-se no sofá, interrompeu o amigo com um sábio conselho:
— Olha Martins, talvez seja hora de você esquecer estas coisas. Entenda, eu vi a desgraça acompanhar de perto seu velho pai. Vi ele encher a cabeça de bobagens e se dedicar em recuperar o tempo perdido. Acho que sem perceber ele perdeu todo o resto. Não quero que isto aconteça com você, tens uma bela família e uma vida digna, coisas que seu pai nunca conseguiu... Não quero que coloque tudo a perder com pensamentos absurdos e teorias tolas. Esqueça isto.
 Caiu em si ao ouvir tão sábio conselho do amigo. Arregalou os olhos e arrepiou-se com o termino das palavras que gritaram em sua alma. Pensou na felicidade de sua família, na esposa, no filho pequeno e no bebê que estava por vir. Deu créditos ao conselho de Saulo:
— Meu Deus, Saulo! Tens razão... Ando tão cansado neste propósito inútil que esqueci de mim... Da minha família.
 Saulo sorriu depois de facilmente convencer o amigo, não desenterrariam mais defuntos tão cedo...
 Mesmo assim ele se calou em sua seriedade. Calou-se, pois se deu conta do que fez. Em sua estranheza, lembrou-se da determinação de Juarez... Juarez... Maldito Juarez! Saulo bem pensou assim, pois era verdade. Juarez antes de morrer teve um plano e um propósito, e se antes a ideia absurda de que este propósito foi concluído com êxito causava risos em Saulo, agora não mais tinha o mesmo efeito. Se Juarez conseguiu mesmo o que queria, Martins corria um grave perigo!
 Saulo tentou se encontrar em sua linha de raciocínio... Precisava pensar bastante para tentar ajudar seu jovem amigo.

 No quarto grande e arejado, o sono pesado cobriu a mente anestesiada de Martins, que dormia confortável ao lado de Lucélia, sua doce esposa.
 Um zunido começou a ecoar fino em seu ouvido e ele tentou despertar. Estava anestesiado pelo sono enquanto o barulho ganhava cada vez mais intensidade. Sentiu o peito apertar, como que se o coração fosse explodir dentro do seu peito. Arregalou os olhos e olhou para cima. O pai, morto e pútrido, com o terno todo rasgado, pisava soberano em seu peito.
 Martins tentou ganhar forças para gritar, mas não conseguia. Se viu menino diante de toda a demência do velho Juarez, que lhe arrancou da cama e o jogou no chão cristalino. O piso espelhado começou a trincar e o pequeno se desesperou, enquanto o defunto caminhou até ele e segurou em seu ombro. Martins tremulo olhou para o pai que soprou palavras tão pútridas como seu hálito:
— Não a nada pra você aqui meu filho... Você é minha grande desgraça!
 De súbito o menino reagiu no pesadelo... Empurrou o pai e o encarou, tentando finalmente criar coragem para enfrenta-lo. A coragem não vinha e seu quarto tremeu. As paredes que antes eram de tijolos se trincavam como vidro seco. Ele em desespero olhou para a esposa que dormia ainda um bom sono. O pai percebeu sua preocupação e sorriu nefasto:
— Tens bom gosto para vagabundas... Talvez devêssemos deixar certas coisas em família...
 Juarez aproximou-se de Lucélia, que dormia... Martins estagnado viu a barriga da esposa se mexer mais do que o de costume, enquanto o cadáver se aproximava dela. Juarez separou os cabelos que cobria o rosto da mulher e lambeu seu rosto com a língua áspera. Escorregou levemente a mão pela barriga voluptuosa, até chegar na ponta agitada:
— Parece que teremos um homem de verdade aqui dentro desta casa!
 Martins gritou em insanidade... Seus gritos ecoaram pelo cômodo escuro e ele despertou, ensopado de suor.
 Lucélia assustada tentou acalmar o marido, que olhou para seu rosto e viu uma mancha vermelha, bem onde seu pai havia passado a língua.
— Esta tudo bem meu amor... Foi só um sonho!
 Não foi só um sonho... Ele olhou a sua volta e sentiu que aquele pesadelo estava muito longe de se acabar...
(Desculpa... Não coube tudo aqui, Termina na próxima parte.)

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