quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Ele e Ela

Ele estava andando pela estrada. Tinha comido uma quantidade até boa de carne, legumes e comia não mais por prazer, mas sim porque sabia que era importante se manter preparado. Cada passo que dava, era um episódio já vivido, uma repulsa, ou uma saudade. O tempo está muito quente, ele não vê árvores pela frente, somente plantações de soja. Ele pensa em deitar entre elas, mas não pode fazê-lo. A disciplina é importante e ele sabe que tem que respeitar suas regras e uma delas é não parar antes do seu objetivo. Ele precisa chegar à próxima cidade antes do anoitecer e ele sabe que a vida nunca foi muito legal com ele. E ele reconhece que ousou demais contra ela, a vida. Fica pensativo e absorto em seus devaneios quando pensa nas pessoas que passaram por sua vida, na sua família, nos amores vividos, nas noites de luar na beira da praia, quando tocava com sua banda de garagem underground, das professoras, das descobertas e infelizmente, das decepções, rejeições sofridas, perdas e oportunidades que na época pareciam tão ruins, sem graça.
Continua sua caminhada e sorri quando pensa nela. Ela que é uma mistura de delicadeza e ao mesmo tempo algo desastroso.  Eles sempre foram apaixonados, como nos filmes de romance, ela na janela do apartamento e ele com um violão lá em baixo. O tempo passou, ela partiu.
Passa um carro e buzina várias vezes, vai diminuindo a velocidade e dá ré, ele acena negativamente, como quem não quer conversar e muito menos companhia, uma carona. Ele decidiu seguir a pé. Ele está de férias, tem seu apartamento, seu carro, um Jipe da Segunda Guerra Mundial, sua vida tá tranquila, ele só quer seguir andando. O carro alinha-se com ele. O motorista sorri e pergunta ao de cabelos estranhos para qual lugar ele está indo. Ele diz a cidade e o motorista sorri, sua esposa faz um gesto de concordância, e os dois respondem como uníssono que estão indo para lá também. Eles dão gargalhadas, o motorista e sua esposa, pois sempre acontece de os dois pensarem a mesma coisa e falarem ao mesmo tempo, eles amam isso, passam dezenas de anos e sempre acontece, mas quem se importa? O viajante explica que precisa andar só, que precisa pensar um pouco, ter esse momento, que agradece a gentileza, mas não poderá aceitar o convite. Eles partem tristes, sem entender o motivo desta peregrinação solitária e cansativa se tinham o privilégio de ter companhia tão agradável como à deles. Simplesmente não entendem. O casal segue, escutando Frank Sinatra.
Ele continua a sua caminhada e lembra-se daquele sorrisão novamente, de guria levada, dos momentos que tiveram de saírem juntos, fazerem planos, fazerem amor, tudo ser tão perfeito, tanta sintonia, e como todas às vezes, quando pensa nela a tristeza vem. Naquela época ele era uma pessoa inconstante, indisciplinada, um louco buscando atenção e paz, querendo acertar, mas dando passos errados, se drogando para anestesiar sua dor. Ele para a caminhada. Retira uma foto dela e chora.
Ele passou diversas vezes em frente à casa dela, a observava, de longe. Às vezes arriscava-se chegar mais perto, para contemplá-la melhor, fazia isso por horas. Ela e seu marido, assistindo TV e o filho no quarto jogando um game com fones de ouvido, cabelos perfeitos, parecia um anjo.
Ele estava solteiro ainda, era feliz dentro do que se pode dizer de felicidade. Mas quando ele a olhava falando e gesticulando para seu marido, ele sabia que o que tinha não era nada comparado àquilo.
Ele está quase chegando à entrada da cidade, algumas pessoas ali sabem quem ele é, mas chegando a pé, de mochilão, barba e cabelos grandes, ninguém o reconhecerá. Ele entra no hotel Gade, sabe que o hotel não é muito bom, mas o café de lá é perfeito, forte e em quantidade. Isso vale muito para ele. Paga as duas diárias antecipadamente, reserva seu café para às seis da manhã, e pede para a recepcionista mandar alguém preparar a banheira e solicita as chaves da academia. Quer malhar até a exaustão, tentar dormir bem.
Quando chega ao seu quarto, suado, exausto, vai à banheira que está numa temperatura perfeita, entra devagar, encosta sua cabeça e cobre os olhos com uma toalha molhada morna. Ele sabe que amanhã terá que encontrá-la, terá que aparecer de novo em sua vida, ouvir mais uma vez a sua voz, mesmo que seja a última vez e saber se ela está bem. Só assim ele poderá ficar em paz, definitivamente. Não que ele estivesse ruim, ou qualquer adjetivo que faça alusão antagônica ao que ele observara da vida dela, que era feliz (ao menos observando dava-se essa impressão, muito claro isso), ele estava na melhor fase da vida, sua independência, patrimônio, conforto, o emprego que gosta, estava bem resolvido. Mas como fazia planos (ele sempre faz planos, mania de planejar), ele queria seguir em frente em relação a sua vida amorosa. Há anos que namora por períodos até longos e depois decide ficar só, depois namora de novo por mais um tempo e quer ficar só de novo. Um espaço que não pode ser preenchido por ninguém desde que a conheceu. Mas ela parece estar feliz. Está sim. Agora ele quer se casar também, mas ele sabe que só vai conseguir fazê-lo se fechar esta porta que ficou tão aberta em seu coração. Ele quer seguir em frente como ela seguiu. Só isso, ter 'dignidade'.
Sai da banheira, se enxuga com uma toalha muito felpuda, gostosa, se olha no espelho e vê sinais do tempo em seu rosto. Faz a barba e conversa com ele mesmo olhando-se no espelho (ele gostava de fazer isso quando fumava Skank, ou bebia uns drinks). Ele diz para si mesmo que amanhã irá encontrar a mais bela de todas as criaturas, a sua garota, ou melhor, a garota que fora sua. Fica triste de novo, vai para o quarto, nem liga a TV, confere as mensagens em seu celular e uma chata insiste em forçar a barra, mesmo depois de tantos foras, ele ignora, apaga as mensagens, e, quando ia desligar o celular, ele toca, era o filho dele dando boa noite e dizendo que estava com saudades, desejando um bom descanso. Ele ri. Pensa que tem muita sorte em ter um filho adulto que liga para ele todas as noites. O filho dele é um bom 'garoto', raro. Ele adormece, estava exausto. Não sonha com nada.
Ele acordou muito cedo, disposto, desceu ao restaurante onde fora servido um café colonial. Comeu algumas torradas, salame, queijo e, por mais que soubesse que o ideal seria um iogurte, ou um suco natural, ele sempre os trai com o café, forte, dose dupla, o velho e bom café do Hotel Gade.
Na noite anterior dormiu pensando nela e da mesma forma acordou. Hoje ele precisa criar uma oportunidade de falar com ela pessoalmente.
Se arruma, veste uma calça folgada, uma blusa preta e um blusão xadrez por cima. Ele gosta de andar grunge. Usa um pouco do perfume que mais gosta, One e conversa com ele mesmo no espelho. Percebe que está um pouco ansioso, mas mesmo assim sorri, treina algumas falas. Ele se acha estranho, mas já se acostumou. Tranca a porta do quarto e,  percebe que esqueceu a sua palheta. Ele não vai tocar em lugar nenhum, mas se acostumou a andar sempre com ela. Volta. Pega sua velha palheta, fica em ‘paz’. Vai até a recepcionista, lhe entrega a chave e diz que não sabe a hora em que irá voltar. Sorri para a moça e ela lhe retribui graciosamente, um sorriso bom, honesto.
Ele pega seu celular, que estava no silencioso (ele nunca deixa seu celular com toque sonoro), tinha mensagens da garota de ontem, ele faz cara de desdém, liga para o número do taxi que pegou na recepção.
O taxista pergunta ao homem o endereço, ele o diz com a voz embargada e a boca um pouco seca.
Chega ao endereço, mas não desce do carro, diz para o motorista esperar, ele a vê, parece que vai sair e casa. Ela conversa algo com o seu filho, ele responde alto que não quer sair com ela, que vai encontrar seus amigos mais tarde. Ela diz que não, mas ele insiste, fica um pouco nervoso e ela cede. Ela o beija e sai de casa, entra no seu carro, ajusta os espelhos, retoca a maquiagem, sorri para ela mesma (ele percebe isso de longe, no taxi e ri, lembra que eles sempre foram parecidos demais, admite isso com um sorriso espontâneo, descontrai um pouco). O motorista do taxi percebe a movimentação e faz uma feição de detetive, está tentando concatenar tudo que percebe e vê.
Ela dá a partida, sai. Está linda.
Ele diz ao motorista para seguir aquele carro de longe. O motorista responde que já sabia que deveria fazê-lo, o motorista estava satisfeito com a ‘missão’. Isso era atípico e ele estava levando isso a sério, uma aventura de investigação.
Andaram alguns quarteirões, o bairro dela é muito bonito, o dia estava lindo e ele tenso.
Ela entra no estacionamento de um supermercado, estaciona o carro, olha de novo o espelho, faz umas bocas, espreme os olhos, sai do carro. Linda, vestido azul, óculos escuros, bolsa bege, adereços prateados, perfeita. Ele repara que ela ainda usa o chaveirinho de guitarra que, há dez anos ele lhe deu, uma guitarrinha preta estilo Ramones.
Ele agradece ao motorista, lhe dá uma gorjeta além da corrida. O motorista lhe deseja boa sorte.
Ele procura um banheiro. Surge um na entrada do supermercado, ele precisa do banheiro, manias, repetições. Entra, lava o rosto, as mãos, seca-se e, conversa mais um pouco com ele mesmo, a tal ‘coisa’ dos espelhos, sai.
Ele pega o carrinho de compras e, rapidamente coloca alguns itens dentro, itens para a sua viagem de volta, coisas enlatadas, isotônicos, cereais, mel e chocolates (gosta muito de chocolates, Twix, Lollo), tudo para abastecer o seu mochilão.
Ele a localiza e vai chegando perto, cada vez mais. Ele a acha linda demais. Os anos passaram, mas ela tem o ‘poder’ de ser bela. Ela afronta os anos sem ofendê-los. Ele decide esbarrar no carrinho dela com indelicadeza, ela faz uma cara de brava, mas nem se dá ao trabalho de olhá-lo.
Ele ri.
Ele agora bate no carrinho dela com muita força e ela fica super enraivecida e fala para ele ter mais cuidado e resmunga a palavra droga, ou melhor, que droga! Ela o olha, demora um pouco, fica sem ação por uns segundos e sorri, enche os olhos d’água e o abraça. Que abraço bom, demorado. Eles não falaram nada, somente ficaram abraçados, quase que dançando, movimento quase imperceptível, dando carinho. Ele mexia nos cabelos dela e ela acariciava seu pescoço, seus braços.
Eles se olham. Ambos, os olhos mareados.
Ele disse que a estava seguindo, que esse esbarrão não foi um acidente. Que por várias vezes tinha estado em frente ao estacionamento de sua casa longo desses anos, que a observava sempre. Quando ele fica eufórico age assim, derramando um monte de palavras, informações ao mesmo tempo.
De súbito ela deu um tapa em seu rosto, um tapa forte, estalado. Ela baixou a cabeça e, chorou, soluçando. Ele a abraçou e disse que lamentava.
Eles sempre se amaram muito. Eles sabem disso. Mas a vida tem desses desatinos, falta de esperança, falta de fé, ingredientes que destroem sonhos.
Eles conversam. Ela fala sobre a sua vida, seu trabalho, seu marido, igreja, ministério. Fala sobre algumas viagens que fez para o exterior. Ele a escuta e fica ‘feliz’ de ela estar tão bem. Ele fala um pouco sobre ele. Sobre as aulas que dá, seus livros e a luta para alinhar-se com uma editora, sobre a superação da doença, sobre sua disciplina. Fala um pouco sobre as suas músicas, sobre as trilhas que gosta de fazer, de viagens de mochila que planeja e faz sozinho, uma espécie de desafio, fala do seu melhor ‘amigo’, seu Jipão velho. Os olhos dela brilham, ela vê que ele está bem e que conquistou seus sonhos.
Ela faz esse comentário com ele, mas ele responde: “– Quase todos os sonhos”. Ela entendeu bem o que ele disse. Ela não foi até o fim, ela achou que era o fim. Preferiu um caminho ‘melhor’, mais seguro. A culpa não foi dela, ninguém tinha mais esperança nele. Ele não demonstrava capacidade de sair do buraco, de ser independente, marido, pai, sóbrio. Ele caíra várias vezes, sempre caía.
Ela ia dizer perdão, mas ele disse primeiro. Eles deram as mãos, ele chorou. Falaram um pouco sobre os filhos e ele disse que gostaria de se casar, assim como ela fez. Ela fica em silêncio, morde o canto do lábio, suspira, olha para baixo. Ele diz que ela continua linda, e, diz que precisa ir. Ela diz que entende, pergunta se ele aparecerá novamente, pede seu telefone. Ele diz que não sabe se voltarão a se ver, mas que ela sempre estará em seu coração, mas que ele precisava seguir em frente. Não quis dar o telefone para ela.
Ela fica sem palavras e ele também. Ele a puxa para si a beija no rosto e na boca ao mesmo tempo, tipo um beijo de adolescente, roubado. Os lábios se tocaram, os sentimentos entram em erupção, ferormônios.
Ele se despede, ela o segura mais uma vez e se beijam como se isso não fosse proibido. Àquele bom e velho beijo que deram em várias épocas da vida, quando crianças, noivos e agora nessa condição estranha e desconcertante. Isso aconteceu, mas eles sabem que é proibido. Ela ama e respeita seu marido. Isso jamais acontecerá de novo. E ele é um homem íntegro e não permitirá isso novamente. Eles estão com o coração batendo forte, mãos dormentes, molhados em sua sensualidade. Se compõem, ela ajeita o vestido, ele passa a mão no rosto, faz isso sempre que está sem saber o que dizer, suspiram. Dizem adeus. Ele, antes de se virar, diz para ela ficar bem. Ela diz idem.
Ele volta para o hotel, vai para a piscina e nada por horas, aquele beijo não sai da sua cabeça, está perturbado e, ao mesmo tempo aliviado, cumpriu o que tinha planejado, ficar ‘livre’ como ela decidiu ficar. Quer ter um relacionamento sério, uma família, envelhecer com alguém que um dia tem esperança de encontrar. Mas quando já se encontrou e perdeu, se encontra de novo? Ele duvida. Mas tem que seguir em frente, ela seguiu e ele sabe que ela o amava, mas teve que seguir. E ele a ama, mas vai ter que seguir também.
Ela nem passou as compras no caixa. Saiu do supermercado torpe, pegou seu carro e andou a esmo pelas ruas da cidade, caiu em si, voltou para casa. Seu marido perguntou sobre as compras, viu que ela não estava bem, perguntou o que tinha acontecido e ela disse que não estava se sentindo bem, que queria se deitar. Ele a respeita, pergunta se ela quer algo. Ela diz que não, que só quer se deitar, ficar um pouco só. Ela pensa nele, seu beijo, braços fortes, seu cheiro. Suspira longamente e chora quietinha, encolhida. Ela agradece a Deus por ele estar bem, sua saúde, sua vida resolvida, sóbrio. Isso a conforta e ela descansa, dorme.
Ele paga a despesa do hotel, sorri para a recepcionista, agradece. Ela pergunta se precisa chamar um taxi. Ele diz que voltará para casa a pé. Ela não entendeu, mas desejou boa viagem.
Assim ele seguiu seu caminho, sentindo-se incompleto, mas sabe que fez o que era correto. A vida é feita de escolhas. Ele escolheu mal no passado, a decepcionou várias vezes. Ela fez a sua escolha em função dos erros dele. Escolhas e caminhos diferentes, mas, o mesmo amor. Isso ninguém poderá tirar-lhes, se amam, mais do que imaginam.

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