sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

O bebê dos anjos

Robson Augusto dos Anjos sempre atravessava a Cinco de Julho com o seu carro. Sempre. Isso para ele era como uma religião. A rua em questão ficava no bairro Santa Rosa, em Niterói, e sempre que ele passava por lá, era porque estava voltando de seu trabalho na gráfica SOLARES, da qual era um dos proprietários.
     Ao se enfiar dentro do carro, Robson abria a janela do lado do motorista para que toda a fumaceira de seu Ritz saísse de lá, depois ele conectava sua rádio em alguma estação FM — se quisesse algo mais selecionável, como Legião Urbana, Engenheiros do Hawaii ou até mesmo Paralamas, ele teria que se socorrer ao CD, mas no momento ele não tinha nenhum no porta-luvas. Katia havia feito uma faxina em seu Voyage 2013, e o pior é que seu Voyage ainda estava novinho em folha! Katia e sua mania de limpeza.
     A chuva aumentou, fazendo-o acionar o pára-brisa.
     — Aquela filha da mãe deve ta de onda com a minha cara — chiava ele em voz alta no volante, quando, de repente, se viu num estranho engarrafamento.
     Robson não estava em uma estrada vicinal para sofrer com um engarrafamento daqueles, ora essa. Ele estava era numa ruazinha de um bairro rodeado de prédios!
     Ainda assim, os carros iam parando por causa do alagamento criado pela chuva. Uma rajada de buzinas começou a soar atrás de si.
     Por isso, ele resolveu sair do Voyage.
     Pegou uma capa de chuva amarela no banco de trás para proteger a cabeça, e saiu, sentindo aquele cheiro gostoso de terra molhada, tentando descobrir o que se sucedia lá fora. Um vento alcalino serpenteou as suas costas.
     Logo ele estava pedindo informação ao motorista de um Palio parado a sua frente, que também estava fora do veículo.
     — Toda chuva alaga, não adianta reclamar — dizia o cara do Palio, que usava uma camiseta preta de mangas cortadas com o símbolo do MOTÖRHEAD na frente. — Sempre que chove é a mesma coisa. Se algum dia o prefeito fizer uma obra de drenagem com recapeamento por essas bandas, tudo vai se ajeitar.
     — Alguns carros tão voltando na contramão.
     — Alguns não meu camarada, todos. Temos que fazer o mesmo para sair do caminho, porque se criou um enorme alagamento lá na frente, um verdadeiro rio d'água. O pior é que essa ruazinha é de mão única — o cara do Palio deu uma coçada em sua terceira perna por cima da jeans, e repetiu: — Se algum dia o prefeito fizer uma obra de drenagem com recapeamento por essas bandas, tudo vai se ajeitar.
     — Sim já entendi — disse Robson, frenético. — Vou entrar.
     — Boa sorte, amigão.
     Uma enxurrada de pessoas com guarda-chuvas nas mãos davam pulinhos para ver se via algo de importante há 50 metros de distância.
     Os automóveis na dianteira já tentavam trafegar na contramão, invadindo inclusive um canteiro com flores-de-lis, e começavam a buzinar como se dissessem: “vocês aí, como é que é?” enquanto seus motores ronronavam feito um urso malaio feroz. Os que estavam de motocicletas é que se deram bem.
    Tudo isso aconteceu um minuto antes de um bebê cair sobre a cabeça de Robson Augusto.
    Sim vocês ouviram bem. Um bebê.
    Robson ainda estava fora do carro, vejam só vocês. Seu Voyage se encontrava parado ao lado das grades da portaria de um condomínio residencial chamado Monte Olimpo, quando um forte raio rasgou o céu, e com ele, viera uma coisa mole e esponjosa sobre a sua cabeça...
     Foi tudo muito rápido. O baque chegou tão quente e violento contra a sua cabeça, que parecia que alguém tivesse lhe arremessado uma boa quantidade de lava.
     Sentindo seu corpo inteiro se queimar por dentro, Robson começou a gritar e depois a rolar desesperado no gramado próximo a uma árvore cipreste, berrando um monte de blasfêmias contra Deus e o mundo. Viu sua pele ir ficando cada vez mais vermelha... e um cheiro de vísceras se dispersou no ar, fazendo com que ele olhasse de lado e visse uma poça craniana envolvida com o que restara de um cordão umbilical esparramado no chão feito uma pequena serpente... Céus, aquilo parecia ter saído de algum conto de Palahniuk.
     Não restava dúvidas: um bebê recém-nascido havia caído diretamente contra a sua cabeça.
     Rostos curiosos se amontoaram em volta das sobras do bebê, inclusive o cara do Palio que vivia reclamando da cidade, dizendo que se algum dia o prefeito fizesse uma obra de drenagem com recapeamento naquele local, e heim eim eim, tudo iria se...
     Uma senhora com bobes no cabelo gritou, e mais gritos vieram junto com o dela. Alguns vomitaram, e a última coisa que Robson fez antes de perder os sentidos, foi erguer a cabeça na direção da janela do 11° andar do condomínio Monte Olimpo.
     Lá em cima ele viu, em meio a penumbra de uma janela sem grades, a forma escura de um rosto pertencente ao provável assassino — ou assassina — do bebê.
                                               
     Acordou em um quarto de hospital, sem saber exatamente porque o colocaram ali. Suas lembranças iam voltando pouco a pouco, como se alguém tivesse lhe dado um sedativo para elefante. Ninguém merecia passar por aquilo, ninguém mesmo, pois a vida, às vezes, nos pregava uma peça, como um movimento perfeito de um jogador de xadrez destruindo o nosso peão, nos obrigando a pensar o mais rápido possível em uma saída. E a saída de Robson foi...
     Só precisou dar uma rápida olhada em volta para descobrir que não estava em uma clínica qualquer, afinal de contas. Aquilo em sua volta era um sanatório — um asilo para delinquente, ou um depósito para loucos, o que quer que você queira nomear — disso ele tinha certeza absoluta. A plaqueta acima da porta dizia: SE FRIO FOSSE PSICOLÓGICO ISSO DAQUI IRIA NEVAR O ANO INTEIRO.
     Robson achou que havia algo de errado ali, depois percebeu que esse algo de errado era consigo mesmo.
     Estava deitado de barriga para cima na cama, em decúbito dorsal, sem ao menos poder mover os braços. Resolveu então levantar o pescoço e olhar o próprio corpo, descobrindo que este estava envolvido com uma camisa de força. Impulsionou-se, movendo os membros, até que rolasse e se estabanasse no chão. Alguém teria que te dar uma boa explicação para isso, e teria que ser já.
     — Olá! Alguém? — chamou, sem sucesso.
     As paredes acolchoadas em sua volta cheirava a mofo, e por um momento, Robson achou que aquilo fosse obra de Katia... Sim! Katia devia estar tirando uma com a sua cara, como daquela vez em que ambos foram passar um longo feriadão no Parque Nacional da Chapada da Diamantina, na Bahia, e que ela, aproveitando que ele tinha pegado no sono debaixo de uma cachoeira, colocou uma cobra coral dentro de suas calças; ou da vez em que ele próprio tentou furá-la na barriga com uma chave Philips quando ela resolvera brincar dizendo que estava grávida. Robson não queria ser pai de jeito nenhum. Para ele, ser pai acabava com a privacidade de qualquer homem são.
     De repente, ouviu-se um barulho de vozes e pranchetas pelo lado de fora no corredor. Dois médicos caminhavam em sua direção.
     — Você viu o que esse cara fez com a própria filha recém-nascida, Jairo? — um deles dizia, acerbamente. — O cara é maluco, deveriam tê-lo enfiado em uma câmara de gás.
     — O pior foi o estado em que a mulher dele ficou — disse o sujeito chamado Jairo. — Eu mesmo, se pudesse, o esmagaria com as minhas próprias mãos!
     — Quando a gente acha que já viu tudo nessa vida...
     — Vou dizer uma coisa a você, Léo: eu quase vomitei todo o meu café da manhã quando vi aquela balbúrdia de sangue pela televisão.
     Robson ia escutando... ia escutando... até que, com o corpo encolhido feito uma bola num canto da parede acolchoada, chorando que nem um porco num matadouro, ele finalmente lembrou do que lhe ocorrera na noite anterior... Quer dizer, ele lembrou da VISÃO que lhe ocorrera na noite anterior... quando toda a sua força pareceu se esvair de seu corpo feito água escorrendo de uma balde com o fundo rachado. Tudo que ele precisava agora era de mais uma dose de LSD.
     Cada pessoa tinha o seu próprio ponto de vista. Robson Augusto dos Anjos, tinha dois.
     No condomínio Monte Olimpo da rua Cinco de Julho, a forma escura do rosto que ele vira do assassino do bebê na janela do 11° andar... era na verdade, o rosto dele mesmo.

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