sábado, 14 de dezembro de 2013

Sinfonia da morte

"...And They summoned me over to join in with them
                                                             To the dance of the death
                                              In to the circle of fire I followed them
                                                           Into the middle I was led..."
                                           
                                                    DANCE OF DEATH, IRON MAIDEN.


Ele não gostava de escolher os títulos antes de escrever, mas muitas vezes aquilo funcionava. Servindo como uma luz na escuridão, uma forma de se localizar e controlar-se em meio a tantas ideias. Um jeito de conversar apenas sobre uma coisa.

Estralou os dedos e bebeu o último gole de café, já frio, que restava em sua caneca e então iniciou seu trabalho.

“Eram tempos difíceis, a Sinfonia da Morte já ecoava por todos os cantos do mundo, mas nem todos a ouviam.

Inaudível, mas não inevitável e sendo assim, com o passar dos dias e noites, a canção do ceifador se espalhou, ganhando a cada novo amanhecer, mais seguidores. Homens e mulheres que caiam e levantavam, que deixavam de viver, mas ainda vagavam.

Corpos sem-almas, marionetes de uma força desconhecida.

— O fim dos tempos virá com o vento! — Disse um profeta de rua no centro de Curitiba pouco antes das notícias sobre o vírus se espalharem pela mídia. Mas ninguém ligou para ele na época, ninguém o ouviu.


Os moradores da capital paranaense, só deram conta do perigo quando as autoridades governamentais tomaram voz em razão ao que vinha acontecendo no mundo e no restante do país.

O Brasil então criou um projeto de sobrevivência e em poucos dias os Campos de Segurança foram montados nas duas maiores metrópoles do país. E assim, aqueles que não padeciam perante ao vírus que começava a se alastrar pelas terras tupiniquins, fugiam para São e Rio de Janeiro em busca de segurança.

Não me pergunte o porquê de alguns serem imunes, não sei responder, sou apenas um contador de estórias, um profeta tão sábio como o mendigo da rua que anunciou que o fim dos tempos viria com o vento.

Dona Rita, uma senhora de setenta e dois anos que morava sozinha em uma ruazinha calma do bairro do Boqueirão, não fugiu. Não fugiu por que não sabia qual era a situação do mundo. Não fugiu por que seus hábitos e conceitos sobre a sociedade eram pra lá de exóticos.

Já fazia mais de dez anos que a anciã vivia trancada dentro de sua casa, tendo como única companhia Zico, seu gato.”

Felipe analisou o escrito e viu que a personagem Rita, não passava de uma simples imitação de uma de suas vizinhas. Uma velha que muitos chamavam de louca por não se socializar a anos com os demais moradores do condomínio. Riu, riu por que no mesmo dia havia lido um texto sobre a Arte como representação da realidade. Era os efeitos das leituras transparecendo de forma amadora em supostos contos de terror.

Fechou-se contra pensamentos que lhe desviavam de seu foco e voltou a escrever. Mesclando aquilo que conhecia com o que sentia.

“A velha Rita não recebia visitas. Nunca tivera um filho e seu marido estava debaixo da terra a mais de quinze anos. Permanecia dentro de sua simples casa apenas esperando a morte.

Não achava que tinha uma vida chata, mas sabia que era uma pessoa infeliz e solitária. As vezes tentava fugir da patética rotina, mas ao mesmo tempo não se esforçava muito.

Sua última tentativa aconteceu em uma sexta-feira.

Acordou disposta, as oito horas da manhã. Naquela dia tinha objetivos pré-estabelecidos. Iria preparar uma torta de uva e depois terminar o novo cobertor de Zico.

Colocou a torta no forno e encarou o relógio. Trinta e cinco minutos, era esse o tempo que o prato demoraria para ficar pronto.

Enquanto a torta assava, foi até a sala, sentou em uma das poltronas e começou a tricotar.

Quinze minutos se passaram e ela ouviu palmas.

Levantou da poltrona e foi até uma das janelas que davam de frente para a rua. Olhou para o portão e o indivíduo que lá avistou não era nada familiar.

Um homem com roupas pretas, sujas e um velho boné vermelho na cabeça. Deduziu que ele era um desses miseráveis que enchem as ruas desde os princípios dos tempos, um mendigo (Profeta?).

Foi até a porta, abriu e perguntou ao andarilho o que ele queria:

— Posso ajudá-lo?

O mendigo respondeu com uma voz baixa.
— Sim senhora, se Deus for bom comigo. — Tossiu forte. — Preciso de algo para comer, a mais de dois dias não como nada, já pedi em outras casas mas ninguém me atende. — Tossiu outra vez, parecia estar muito doente.

— Aguarde um momento meu filho, vou ver o que posso fazer por você.

Ela entrou de novo na casa e foi até a cozinha. Lá abriu uma das portas de seu armário, pegou um pacote de pães e olhou dentro.

— Quatro pães, acho que isso é o bastante. — Falou para si.

Fechou o pacote e se dirigiu até o portão onde o homem estava parado, ainda de cabeça baixa.

— Tome meu filho, é isso que tenho hoje.

O mendigo aceitou o pacote, o segurou firme e retribuiu com um estranho sorriso amarelado.

— Obrigado minha senhora, obrigado mesmo! Que Deus lhe abençoe por saciar minha fome!

— Que nada, espero que isso seja o bastante, vá com Deus!

O sem-teto virou as costas e começou a caminhar. Sua tosse o chacoalhava. Dona Rita conseguiu ver um esforço do mesmo para se recompor e então começar a comer um dos pães.

Retornou a casa, encostou a porta e voltou a tricotar, satisfeita.


Só dez minutos depois é que lembrou-se da torta. Tudo por que sentiu um leve cheiro de queimado.

Correu para cozinha e vestiu suas luvas, abriu o forno e conseguiu tirar a forma antes que a torta inteira se estragasse.

Colocou ela em cima de um balcão e a encarou.

— Meu Deus, como fui me esquecer dessa belezinha!

Mas logo depois tomou um susto, pois ouviu um barulho na porta, como se ela estivesse sendo empurrada.

Seu primeiro pensamento foi de que era Zico o causador do barulho.

Saiu da cozinha para conferir e ao dar o primeiro passo para dentro da sala teve uma surpresa.

Logo a sua frente, o mendigo lhe encarava, já não era mais o mesmo.

— Por favor, eu lhe dei tu...

Antes que a velha tivesse a oportunidade de terminar a frase, o mendigo soluçou um conjunto de sons sem sentido e então avançou para cima dela. Avançou como um animal, derrubando Rita no chão.

Já não era mais um homem, em seus ouvidos a Sinfonia da Morte tocava alto.

Embalado pela música, mordeu o pescoço da velha, fazendo a mesma gritar de dor. Sangue começou a escorrer pelo carpete, a mordida havia sido profunda.

O mendigo agia como se estivesse hipnotizado, ajoelhou-se ao lado do corpo da senhora e começou a rasgar a garganta da mesma, fez isso até a velha paralisar, fez isso até a vida se esvaziar por completo do corpo da idosa.

Sentiu o cheiro do sangue, viu suas mãos todas lambuzadas e então partiu para o que realmente interessava.

Não bastava apenas matar, havia uma necessidade ainda maior. Uma fome que era reforçada a cada nota daquela macabra melodia que agora estava espalhada pelo ar.

O zumbi riu, e então enfiou a boca na cabeça de Rita. Mordeu com força. Primeiro arrancando os cabelos e o couro cabeludo, depois abrindo um buraco que ia direto para o cérebro.

O monstro avançou, aprofundando cada vez mais o ferimento e mastigando, mastigando sem parar.

Sua barba já estava encharcada de sangue e ele continuava comendo, engolindo, mastigando, engolindo. Cabelos, pele e o delicioso cérebro. Mastigando e engolindo.

Comeu tudo que conseguiu e ao termino do ato, levantou com passos lerdos e caminhou para fora da casa, satisfeito.

Minutos depois, Zico acordou.

Acordou com sede e foi atraído até sala por um cheiro diferente. Viu a dona esticada no chão e foi em sua direção. Delicadamente o velho gato começou a lamber o sangue espalhado pelo carpete e depois o rosto da Falecida Rita. Enjoado com o azedo gosto, Zico resolveu voltar a dormir, se aconchegou ao lado de sua companheira e fechou os olhos.

Ninguém sonhou.

Lá fora o mendigo vagava sozinho, em uma cidade quase vazia. Mas não iria demorar muito para que encontrasse outros mortos-vivos. O vírus que aos poucos se espalhava por toda a população mundial, havia chegado naquela região do Paraná a menos de uma semana.

A doença que era transmitida através do ar e causava a morte instantânea daqueles que a respirassem, e depois uma estranha volta do funcionamento cerebral, desconstituída de inteligência e pensamento, transformando o indivíduo em um zumbi, demorou, mas também alcançou a capital paranaense.

Se Rita soubesse, teria saído dali junto com todos os outros moradores que misteriosamente eram em grande parte imunes. Esses já haviam abandonado a cidade, rumando para São Paulo, atrás do tão procurado Centro de Segurança...”

Parou de escrever e minimizou a janela do texto, desanimado ao ver que o conto não estava bom o suficiente. Levantou e caminhou até a cafeteira para encher sua caneca.

Divagava sobre as novas possibilidades que o texto poderia tomar, pensou até em apagar o pouco que havia feito.

Sim, era muito difícil escrever sobre zumbis. Refletiu um pouco mais sobre sua experiência de criação e acabou ficando com nojo do texto que escrevera.

— Está simples, mal escrito e aquele “Final” ficou mais do que doentio... Ah, coitada da Rita! — Falou o escritor. A estranha mania de falar sozinho agora era um característica de sua personalidade.

Caminhou até a janela com a caneca na mão e encarou a cidade.

Concluiu que pelo menos o título e a passagem do profeta da rua haviam ficado boas.

— O fim dos tempos virá com o vento! A sinfonia da morte!

Respirou fundo, imaginando o que aconteceria se o seu simples conto se tornasse real, ou melhor, se a realidade se tornasse seu conto.

Pois na televisão, todos os noticiários faziam cobertura sobre o misterioso vírus que vinha matando dezenas nos últimos dias.

— Com certeza não haveria escapatória, todos iriam dançar. — Sussurrou Felipe para o horizonte com um leve sorriso no rosto, enquanto sua percepção em relação à sua criação era alterada.

Voltou até o computador e salvou seu texto, por hora estava satisfeito.

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